As mulheres de Henry James

Arshile Gorky (1904-1948), Retrato de Ahko, 1937.
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Por YVES SÃO PAULO*

Comentário sobre as protagonistas femininas na obra do escritor norte-americano.

Aparentemente, Henry James foi um celibatário. Nunca se casou, e não parecia ser inclinado a uma vida boêmia de libertinagens sexuais. Alguns de seus biógrafos analisam suas correspondências em busca de pistas acerca de sua sexualidade. Existem especulações de que James pudesse ser homossexual, dado o conteúdo de algumas de suas cartas. De toda forma, a vida de solteiro parece ter auxiliado as viagens do escritor pelo velho continente, onde se estabeleceu, apesar de nascido nos EUA. Assim como parece ter auxiliado seu caráter de observador social, sendo convidado a eventos por onde quer que fosse, permitindo a análise de particularidades sociais.

Muitos dos escritos de Henry James são testemunhos das sociedades de sua época, em especial do comportamento e das concepções conservadoras da velha civilização europeia. Daí surge seu apreço pelas protagonistas femininas, figuras que melhor salientavam um século de transformações comportamentais. Muitas foram as novelas dedicadas às mulheres, carregando seus nomes já no título. Estas novelas costumam vir com um dos temas mais caros a James, o tema internacional.

O tema internacional é utilizado por Henry James como recurso para analisar a diferença entre a psicologia de estadunidenses e europeus vivendo sob regimes político-sociais diferentes. Neste sentido, podemos enxergar Henry James seguindo passos semelhantes ao de seu irmão, o filósofo e psicólogo William James, na tarefa de construir uma identidade intelectual para o jovem país mesmo tendo Henry, cedo em sua prolífica carreira de ficcionista, se estabelecido na Inglaterra.

Suas histórias eram enviadas para o outro lado do Atlântico, onde figuravam nas muitas revistas literárias da época, permitindo a James se manter como escritor ao longo de toda vida. Contudo, apesar dos muitos escritos publicados, sua fama nunca foi popular, sendo bem quisto pelos círculos intelectuais admiradores de seu estilo. Mesmo após sua morte, o nome de Henry James carrega mais fôlego que sua obra, sendo relembrado ainda por seu estilo, e ainda mais por suas histórias de fantasmas.

As histórias de fantasma, por sinal, serviram de inspiração para a série da Netflix A maldição de Bly Manor. O mais popular dos livros de Henry James segue esta tendência, A outra volta do parafuso, história de terror publicada por um punhado de editoras brasileiras e que serve de linha principal para a mencionada série.

Mas o nosso foco no presente texto são as novelas protagonizadas por mulheres, quando Henry James aponta para uma diferente disposição psicológica entre as mulheres vivendo numa democracia e as mulheres e homens europeus mais inclinados ao status hereditário de suas condições sociais e econômicas. Para além de interessante testemunho a respeito da naturalização da emancipação feminina num cenário democrático, as novelas aqui selecionadas de Henry James oferecem um pouco do espírito transformador e igualitário que esperavam que a democracia carregasse, o que poderia levar a ainda maiores transformações.

Pandora

A novela não é narrada em primeira pessoa, mas assume o ponto de vista do alemão Conde Otto Vogelstein em viagem para os EUA onde assumirá um cargo em Washington. Na parada de seu navio a vapor em Southampton, na Inglaterra, ele acompanha a subida de novos passageiros, incluindo a jovem estadunidense Pandora Day que lhe captura o olhar. O conde não consegue desviar sua atenção da criatura, ainda que não seja sua aparência o que chame tanto sua atenção, mas seus modos.

O primeiro encontro entre as duas personagens se dará depois de zarpada a embarcação, depois de ter passado o conde algum tempo observando os jeitos da moça que viaja com a família. Numa confusão envolvendo a propriedade de cadeiras para sentar ao sol contemplando o oceano, Pandora Day e Conde Vogelstein se conhecem e se apresentam. Ela buscava uma cadeira para os pais idosos, em mais uma de suas ações de tomar a iniciativa de líder da família, resolvendo todos seus problemas. Para o Conde, esta iniciativa é muito peculiar. Uma jovem não deveria tomar as rédeas para resolver os problemas de sua família.

Pandora abre um novo universo para Vogelstein. O narrador já informava os interesses do conde por visitar e morar nos EUA numa condição de estudioso de comportamentos deste povo sob regime democrático. Já nesta caixa flutuante que o leva para o outro lado do Atlântico, ele tem seu primeiro contato com uma novidade que não cessará de causar-lhe estranhamento e maravilhamento.

Pandora Day é uma daquelas moças que Vogelstein descobrirá, já em terras estadunidenses, se tratar de uma self made girl, uma garota independente, que trabalha, usa das ocasiões sociais para fazer contatos que lhe abram as portas. É interessante para o leitor ler as entrelinhas de algumas situações e de alguns diálogos. Henry James não promove o cinismo de defender que Pandora consegue o que consegue pela liberdade e por saber usar desta liberdade; num diálogo numa festa com a elite do Distrito Federal, conjecturando a respeito das self made girls, uma dama diz, “é porque nós permitimos”. As portas não se abrem para todos, mas às vezes elas se abrem para quem está às proximidades.

O que fica patente a esta novela é a construção de uma personagem psicologicamente disposta a assumir a empreitada de ser a chefe de sua família. Seus pais são idosos e se põem à margem aguardando a primogênita resolver todas as intempéries. Por meio do tema internacional, James procura pintar esta personagem como possuidora de um frescor dado pela experimentação política do país de onde vem. Colocar um alemão da aristocracia marca esse estranhamento com pessoas aptas a subir de nível social, mas acima de tudo com a liberdade que possuem as mulheres, especialmente as mais jovens, em assumir o papel de gestoras.

Não podemos negar que esta tendência já era comum nas fatias de renda mais baixa da sociedade, mas se apresenta com verdadeira surpresa quando testemunhada nos setores de renda mais alta, dados a um conservadorismo que mantenha seus privilégios. Pandora busca agarrar todas as oportunidades que se lhe aparecem, não estranhando que sua viagem à Europa que antecede o princípio da narrativa tenha sido para “angariar cultura”, mostrar os pilares da cultura ocidental à irmã mais nova. Esta é também uma fonte de aprendizado para a própria Pandora que se inserirá em meio a um hábito cada vez mais comum dentre os estadunidenses com um pouco mais de posses: o turismo cultural. Com o aprendizado de seus meses de viagem pela Europa, a retornada Pandora saberá se colocar em meio à elite burguesa de Washington, num movimento que eventualmente lhe renderá uma posição de trabalho na Holanda.

Daisy Miller

O sucesso desta novela foi tal que o nome de Daisy Miller é usado pelo narrador de Pandora (publicada anos depois) como um recurso para falar de um certo tipo de garota estadunidense, a garota independente dada a flertar por esporte. Diferente de Pandora, esta novela se passa na Europa, acompanhando a temporada que a jovem Daisy Miller passa por lá. Novamente, a perspectiva é masculina, acompanhando a confusão causada na mentalidade masculina ao encontrar tal personagem singular.

O interessante na construção de personagens por Henry James, como no caso do protagonista masculino Frederick Winterbourne, é que apesar de ser ele dos EUA, foi educado na Europa, assim angariando algumas qualidades da moral do velho continente. Existem rumores de que Frederick Winterbourne se relacione com uma dama mais velha que ele teria ido visitar em Vevey, na Suíça, mas isso não impede a sua natureza condenadora de uma personagem como Daisy Miller.

Por sua vez, Daisy está completamente encantada por tudo que vê na Europa, num arroubo romântico comum às personagens femininas de Henry James que se encantam com a cultura europeia, se maravilham com o cenário visitado. Contudo, Daisy Miller possui uma diferença das demais personagens, tendo ela o interesse por fazer parte da alta sociedade europeia que testemunha.

Winterbourne está impressionado com a beleza de Daisy Miller, e por isso continua a acompanhá-la, a encontrá-la, ainda que desaprove a tendência dela de flertar, também presente na maneira como ela se veste. O conflito de classes, que já se podia notar em Pandora, e que será notado em maior proporção em Um episódio internacional, está presente aqui também. A tia de Winterbourne mais diretamente reprovará a relação dos dois e a crescente proximidade do sobrinho com a moça americana baseada na relação pautada entre a família de Daisy Miller e seu empregado. Uma família de alta classe não tem uma relação tão amigável com seus empregados.

Daisy Miller se vê cercada pelos valores morais europeus, mesmo ao buscar a companhia de compatriotas que por viverem há tanto tempo na Europa também passaram a viver baseados num outro conjunto moral. A reprovação do comportamento de Daisy Miller vem de todos os lugares, e poderíamos dizer que é o que vem ao encontro de sua queda posterior.

Apesar da pintura progressista dada aos EUA, a novela recebeu críticas negativas que viam as moças estadunidenses sendo coloridas de tal forma que parecia indicar que todas as moças americanas são coquetes. No conjunto da obra, vemos a tentativa de Henry James de descrever a mulher estadunidense, especialmente a jovem, como independente, e com dificuldade de divisar as distinções morais entre classes – em especial a distância entre pessoas de classes diferentes. Nesta obra em particular, notamos a tentativa de progressivo distanciamento de Daisy Miller deste universo de censura.

Um episódio internacional

No mesmo ano de publicação de Daisy Miller, saiu Um episódio internacional. Novela um pouco mais longa, tem a particularidade de descrever eventos acontecidos dos dois lados dos Atlântico, com personagens originárias das duas partes. Novamente, os EUA são representados pelas personagens femininas enquanto a Europa é representada pelas personagens masculinas.

O que encontramos nesta novela são dois ingleses, um membro da alta sociedade e seu acompanhante visitando os EUA a negócios – não nasceu em família tão privilegiada quanto seu compatriota, mas pertence às altas classes políticas do parlamentarismo. Do outro lado, duas mulheres provenientes de Boston, a cidade retratada por Henry James como uma espécie de capital intelectual dos EUA desta segunda metade do século. O foco do quarteto é a relação entre o aristocrata inglês, Lorde Lambeth, com a jovem bostoniana Bessie Alden.

O grupo se encontra na casa de veraneio pertencente à irmã de Bessie, a senhora Westgate. Na verdade, pertencente a seu marido sempre ausente, tratando de negócios em Nova York, surgindo na narrativa apenas para enviar a dupla estrangeira para a ilha. Bessie Alden é uma ávida leitora, com uma visão romântica da Inglaterra e de sua aristocracia. Aproxima-se, deliciada, de Lorde Lambeth que se surpreende com a personagem. É uma moça bastante opinativa, que lhe pergunta sobre muitas coisas que ele não sabe responder. A proximidade entre os dois aos poucos vai minando a visão romântica alimentada por Bessie em suas leituras: Lorde Lambeth é um aristocrata, mas de pouca cultura, não tem muito a falar sobre a Inglaterra, sobre sua posição, sobre seus envolvimentos políticos, mesmo sendo ele membro da Câmara dos Lordes. Sua posição privilegiada se baseia unicamente na sorte de seu nascimento.

De todo modo, a primeira impressão feita pelos amigos ingleses em sua temporada de verão nos EUA é positiva. Divertem-se bastante numa casa sempre de portas abertas, recebendo vários convidados, administrando passeios pelos vilarejos locais e pela beira da praia – ocasionalmente há alguém numa das salas a fazer leituras para o grupo. Num desses passeios ao ar livre surge o convite para que Bessie e a irmã visite Lorde Lambeth na Inglaterra.

O grande choque da novela vem nesta transposição de cenário, quando os ingleses se transformam em anfitriões. A senhora Westgate, que já havia ido à Inglaterra e possui alguns amigos por lá, sabia que o comportamento das pessoas nesta sociedade conservadora é consideravelmente diferente. Não deveria Bessie ficar alimentando esperanças de se encontrar com Lorde Lambeth. De todo modo, se encontram. Lorde Lambeth parece realmente interessado nas peculiaridades de Bessie. Mas seus pares, seus parentes, de pouco aceitam essa relação. A senhora Westgate adverte que certos comportamentos de Bessie aceitáveis nos EUA não são aceitos na Inglaterra – tal como advertiam Daisy Miller.

O grande rompimento, contudo, é de ordem intelectual. A inicial admiração de Bessie por Lorde Lambeth provém de uma idealização do que seria a aristocracia do velho continente. Moradora da culta Boston, Bessie não consegue admitir a postura iletrada de Lorde Lambeth. Ela queria participar de saraus com artistas, intelectuais, mas as festas de que participa Lorde Lambeth dificilmente agregam estas pessoas, normalmente membros de classes mais baixas. Novamente se forma uma relação de classes, tão acentuada na Europa para um estadunidense do século XIX. É particularmente interessante interpretarmos esta maneira como Henry James aponta para a falta de mérito de quem permeia as classes mais altas. Pessoas que pela sorte do nascimento são dotadas dos mais altos privilégios, dentre eles o de poder se agraciar com uma vida de ócio.

*Yves São Paulo é doutorando em filosofia na UFBA. Editor da Revista Sísifo, autor do livro A metafísica da cinefilia (Editora Fi, 2020). Escreve sobre cinema no blog Siga a Cena.

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