Por HELCIO HERBERT NETO*
Disco de 1974, em parceria com Arnaud Rodrigues, não se reduz à sátira, mas associa traços da cultura popular como futebol, música e ironia à política
Delirar de tanto fazer rir – com Baiano & os Novos Caetanos o comediante Chico Anysio testou as fronteiras entre o humor e a canção com o trabalho conceitual de estreia, em 1974. Da experiência em parceria com o também ator Arnaud Rodrigues, emergiu um álbum de sonoridade inclassificável com uma inconveniente lucidez contra as autoridades brasileiras. Músicos experientes foram reunidos para alcançar a atmosfera, no mínimo, excêntrica: típica do período em que o primeiro disco do projeto foi lançado.
As canções ironizam um hippismo retardatário, é verdade. Havia sido no já distante fim da década de 1960 que John Lennon sentenciara com a composição de “God”: the dream is over. No Brasil dos discos Novos Baianos FC de 1974 e Araçá Azul, lançado por Caetano Veloso no ano anterior, ainda vigorava o tropical flower power – ambiguamente presente na estética do conjunto formado pelo humorista. Mas o clima de Baiano & os Novos Caetanos é amigável, com saudações a Gal Costa, Maria Bethânia até a seu irmão.
O espetáculo é formado a partir do elenco. A canção de abertura “Vô batê pá tu” traz as assinaturas de Rodrigues e Orlandivo, simplesmente o símbolo maior do sambalanço. O gênero, contemporâneo à bossa nova, era mais quente e conquistou os subúrbios com picardia: componente fundamental para Baiano & os Novos Caetanos. O conjunto chegou a contar com o músico Renato Piau, que ao longo da vida acompanhou Luiz Gonzaga, Tim Maia e, durante longas décadas, o amigo Luiz Melodia.
O impacto do álbum se deve à criatividade dos artistas, mas não é exagero creditar a repercussão à atenção para a cultura popular de Chico Anysio. Homem de radiodifusão, enquanto humorista forjou tipos que se comunicavam diretamente com o público. Ora pela caracterização, exagerada ou não; ora pela profunda conexão com o dia a dia. Antes de ajudar a formar a comédia televisiva no Brasil, havia sido radialista e passou por diferentes setores das emissoras. Inclusive o esportivo.
Acima de tudo em um período autoritário. Foi no ano do lançamento de Baiano & os Novos Caetanos que a tentativa de tirar os militares do poder pelas armas no Araguaia foi esmagada. Foram assassinados integrantes do movimento – muitos dos quais tiveram seus corpos ocultados pelos executores. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, cerca de 60 vítimas seguem sem paradeiro. Informações dos desaparecidos na região amazônica ainda são exigidas pelas famílias. Justamente na floresta: o cenário da sonoridade lisérgica de Chico Anysio.
Antes de o ambientalismo se tornar uma pauta urgente o grupo reclamava da destruição dos ecossistemas, em contraponto às políticas dos ditadores que, de 1964 a 1985, ocuparam o Palácio do Planalto. As megalômanas políticas expansionistas para o norte do país em nada tinham a ver com o papo bucólico do disco que combinava percussão, rock rural e inclusive ciranda em clima que à toda hora lembra uma rede à sombra de qualquer árvore.
Ao entrar em 1974 em alguma loja de discos você esbarraria em gôndolas com Cuban Soul 18 Kilates de Cassiano; Quem sabe sabe quem não sabe não precisa saber de Zé Rodrix; Tudo Foi Feito Pelo Sol dos Mutantes; Tim Maia Racional Vol. 1; Canta, Canta Minha Gente de Martinho da Vila; Gita de Raul Seixas; A Tábua de Esmeralda de Jorge Ben; Mote e Glosa de Belchior; o segundo LP de Secos & Molhados; ou o álbum homônimo de Jorge Mautner. Ainda que sob a etiqueta de diferentes gêneros, o experimentalismo os conectava a Baiano & os Novos Caetanos.
Nesse caso em especial, a indisciplina como estética ainda fazia gargalhar. Depois de outros lançamentos e de longo hiato, a indústria fonográfica sondou Chico Anysio a respeito da possibilidade de um retorno ao projeto musical nos anos 2000. O motivo era o sucesso de vendas com Tiririca. Aproveitar a tendência parecia comercialmente atrativo, mas não tinha nada a ver com o vinil que agora completa meio século. Ao se recordar da proposta de emular “Florentina”, o humorista apenas riu da piada fora do tom.
*Helcio Herbert Neto é pós-doutorando no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da UFF. Autor do livro Palavras em jogo [https://amzn.to/4aaGzfF]
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