Barbárie em ambiente high-tech

Imagem: Wendelin Jacober
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Por ROBERTO VITAL ANAV*

Sindicatos são esvaziados e depauperados, movimentos sociais são agredidos e criminalizados, indivíduos críticos sofrem discriminação e barreiras à progressão profissional e social

Por ocasião dos sessenta anos do golpe civil-militar de 1964, para além do debate sobre o erro crasso do Presidente Lula, de interditar atividades governamentais de lembrança crítica, repúdio ao golpe, defesa da democracia e homenagem às vítimas da ditadura, bem como dos atos não oficiais, ocorridos não obstante por todo o país, merecem destaque outros episódios.

Ressalta-se aqui a republicação, nas redes sociais, de publicações e depoimentos de época. Entre eles, a edição especial da revista Manchete imediatamente posterior ao golpe, celebrando-o e registrando grandes manifestações de massas em seu favor – em especial, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, organizadas pela cúpula da Igreja Católica no Brasil.

Essas lembranças fazem necessariamente rememorar episódios mais recentes em que a elite burguesa, majoritariamente associada ao imperialismo, em especial estadunidense, patrocinou e fomentou manifestações de massas com conteúdo reacionário e golpista: as “dancinhas” e manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff – verdadeiro golpe parlamentar-judiciário contra a democracia, os direitos sociais e a soberania nacional; as manifestações em favor da Operação Lava Jato e da prisão de Lula; a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e sua grande votação, ainda que derrotada, em 2022; por último (até o momento), a demonstração parcial de força do bolsonarismo, após a derrota do golpe de 8/jan/23 e o múltiplo desmascaramento do próprio ex-presidente, em recente manifestação na Avenida Paulista em São Paulo.

Esses episódios, observados em conjunto, permitem identificar alguns traços estruturais da realidade social e política brasileira, bem como da evolução das lutas de classes e dos embates políticos a elas relacionados, ao menos nas últimas sete décadas. Sugerimos a seguir três lições de maior significado passíveis de extrair dessa observação envolvente.

(i) A burguesia e o imperialismo não suportam, neste quintal dos EUA, nem mesmo reformas limitadas e parciais, bem inferiores às conquistas do welfare state em boa parte da Europa Ocidental, bem como nos EUA, Canadá, Japão e Austrália, durante as décadas de 1950, 1960 e 1970.

(ii) A burguesia, quando se sente realmente ameaçada, consegue formar ampla opinião nas classes médias, dividi-la e fazê-la pender majoritariamente para o seu lado, bem como parte menor, porém significativa, da classe trabalhadora. Para tanto, utiliza-se de todos os amplos meios de que dispõe: a mídia oligopolizada (hoje, também, boa parte das redes sociais digitais); as faculdades privadas de elite, incluindo institutos e cursos on-line em profusão; a cúpula militar; as oligarquias políticas tradicionais; e – acima de tudo – as organizações religiosas. Entre elas, predominou, em 1964, a cúpula reacionária da Igreja Católica; na atualidade, o foco são as igrejas evangélicas proliferadas.

(iii) As organizações do movimento operário e popular, frequentemente perseguidas e caluniadas, e os partidos políticos a elas relacionados na política institucional, por vezes alvos de campanhas difamatórias e perseguições judiciais, têm uma tendência muito forte a acomodar-se ao domínio e à institucionalidade burguesa nos períodos de seu crescimento em ambientes (eventuais) de relaxamento político. Nessas circunstâncias, os partidos de esquerda de base operária-popular focam apenas em eleições e projetos parlamentares e de governo (Marx chamava isso de “cretinismo parlamentar”, referindo-se à burguesia francesa; Lênin adaptou a expressão aos grandes partidos social-democratas na Europa de princípios do século XX). Abandonam o trabalho de base, passam a olhar as reivindicações populares independentes com desconfiança (“manipulados pela direita para radicalizar e queimar os governos de esquerda”) e criam uma burocracia quase vitalícia nos sindicatos e movimentos, como escudo e área de confiança, empenhados em não radicalizar ou pressionar muito pouco além da (necessariamente) limitada agenda governamental.

Nesse contexto, qualquer solavanco socioeconômico (decorrente da natureza instável e cíclica do capitalismo) gera ou aumenta o desencanto social com “o sistema” e a política tradicional, contexto no qual a esquerda aparece agora aos olhos populares como integrada. Essa esquerda institucionalizada adotou, mesmo de forma parcial e restrita, a agenda neoliberal: com Lula 1 e 2, o ajuste macroeconômico, com Meirelles no Banco Central e juros muito elevados; agora, a convivência forçada com Campos Neto, mas também a reforma tributária cheia de concessões à Faria Lima (centro do capital financeiro nacional e internacional no Brasil); por exemplo, a enganosa cobrança de IR sobre os fundos de investimento dos super-ricos e dos fundos offshore denunciada pelo economista e especialista Eduardo Moreira como vitória da Faria Lima e não do governo; ou a adoção da bandeira ‘farialimer’ de “déficit zero já”, que requer, além da contenção antissocial de gastos, a distribuição de dividendos extras da Petrobras para completar o caixa do governo, gerando tensão com parcelas da própria gestão pública federal e com “os mercados” (eufemismo para o capital financeiro e especulativo dominante); a gestão na Educação, que não revogou o Novo Ensino Médio, como exigiam inúmeras associações de educadores e especialistas em Educação, e se cerca de conselheiros e assessores extraídos de organizações educacionais privadas. Haveria mais a citar, obviamente, mas extrapola este espaço.

De maneira mais global, nos casos – já ocorridos – em que a direita tradicional se desgasta junto com a esquerda institucional, as elites burguesas e o sócio maior imperialista recorrem a grupos funcionais “de fora” do “sistema”: militares treinados ideológica e praticamente nos EUA, grupos do Judiciário, idem (vide as relações Moro-Dallagnol-Departamento de Estado dos EUA); igrejas, muitas vezes importadas ou inspiradas nos EUA; ou grupos políticos antes isolados e marginais – são exemplos o nazifascismo nos anos 1920-30, o neofascismo europeu contemporâneo (Melloni na Itália, Orbán na Hungria, Le Pen na França, o Vox na Espanha, o SD na Suécia, o AfD na Alemanha), e ainda políticos vistos como outsiders, a exemplo de Trump, Bolsonaro, Milei e Kast no Chile.

O desgaste dos partidos tradicionais, à direita e à esquerda, relaciona-se ao vazio político criado pelo neoliberalismo, política a serviço do capital especulativo com poder de expansão esmagadora sobre os próprios Estados nacionais. A limitação da soberania dos Estados, sob a imposição de um código de boa governança mundial e um sistema de avaliação extra-nacional formado por agências de rating, rankings e indicadores de competitividade do Fórum Econômico Mundial e políticas ortodoxas impostas conjuntamente pelo FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu e repercutidas na maioria dos Bancos Centrais e Ministérios das Finanças mundo afora, reduzem dramaticamente o espaço das políticas econômicas e sociais e a autonomia das sociedades e governos em relação a elas.

Assemelha-se ao governo invisível de uma Internacional do Capital, especialmente do capital especulativo ou rentista. Os cidadãos percebem de forma difusa que seu voto, quando supostamente livre, possui pouca ou nenhuma efetividade sobre as condições concretas de vida.

O padrão individualista, antiassociativo e antissindical de valores, disseminado pela mídia, pelos cursos médios e superiores de elite (reproduzido nos cursos de menor qualidade para segmentos de classe média e até, parcialmente, populares) gera indiferença às ações coletivas e causas sociais em parte expressiva da população. As contrarreformas trabalhistas e previdenciárias dessocializam o trabalho em diversas profissões e impõem o trabalho vitalício e a luta pela sobrevivência individual e familiar.

Essa é a barbárie em ambiente high-tech que o capitalismo imperialista consegue reproduzir em escala planetária. Nessas condições, sindicatos são esvaziados e depauperados, movimentos sociais são agredidos e criminalizados, indivíduos críticos sofrem discriminação e barreiras à progressão profissional e social.

A resistência a esse estado de coisas tem sido crescente: manifestações de massas cada vez maiores têm sacudido o planeta, exemplificadas pelo Occupy Wall Street e em seguida o Black Lives Matter nos EUA; pela revolta dos coletes amarelos e contra a piora previdenciária na França; pela ampla manifestação antifascista contra o AfD na Alemanha; pelas manifestações gigantescas contra o genocídio palestino Gaza em todos os continentes; sem contar os grandes movimentos massivos na América Latina, como a reversão do golpe na Bolívia, as manifestações populares no Chile e Colômbia e própria eleição de Lula em 2022.

Alguns movimentos sindicais têm avançado em suas lutas (a exemplo dos metalúrgicos automotivos e artistas de Hollywood nos EUA e de vitórias parciais em outros países, incluindo o Brasil). Mas, em geral, as massas populares deparam-se com as limitações dos sistemas políticos para incorporar mudanças reais nas condições de vida da maioria; com a estreiteza institucional da esquerda tradicional e a ausência real de alternativas transformadoras com força de massas, clareza programática e estruturas organizativas fortes e criativas; com a burocratização e adaptação institucional das estruturas organizativas tradicionais dos partidos e movimentos que buscam representá-las.

O fascismo puro ainda não é viável até o momento, pois fascismo significa destruição, aniquilamento de todas as organizações operárias e populares. Mesmo parcialmente cooptadas (com muitas tensões na sua base, em decorrência disso), essas organizações permanecem em atividade. Fascismo não é cooptação, é destruição. Os neofascismos e o bolsonarismo não chegaram lá, mas nem por isso deixaram de ser devastadores.

Basta citar, no caso brasileiro, reunindo o ciclo regressivo Temer-Bolsonaro:

(1) a saúde, cuja destruição iniciou-se antes da pandemia, com a supressão de 40 mil leitos hospitalares, impondo a criação dos famosos e precários hospitais de campanha, tendo se escancarado na explosão da COVID, com o triplo ou o quádruplo de mortes do que indica a participação do Brasil na população mundial e no número global de fatalidades da pandemia;

(2) o desemprego, agravado durante a pandemia, para o qual a “Carteira Verde-e-Amarela” representou um triste e perverso contra remédio;

(3) a eliminação de direitos trabalhistas e previdenciários da maioria – encobertos (o que enganou não pouca gente) pelo mote do “Combate aos Privilégios”, todos mantidos, aliás, como o das filhas de militares ‘solteiras’, os dos parlamentares, juízes e procuradores, os super-salários e os benefícios extra-salariais da cúpula governamental e militar, do Legislativo e do Judiciário etc. – enquanto o trabalhador comum, principalmente de baixa renda, foi o mais prejudicado; de outro lado, a fiscalização do Ministério do Trabalho e as próprias regras de seu exercício foram severamente afetadas, levando, entre outros efeitos destrutivos, à proliferação de casos de trabalho análogo à escravidão revelados mais recentemente, após o efeito deletério da contrarreforma trabalhista, que precarizou enormemente as relações de trabalho;

(4) o espraiamento da fome e da exclusão social, revertendo o processo bem-sucedido dos três governos petistas, de eliminação do Brasil do Mapa da Fome da ONU, de extensão do trabalho assalariado com direitos plenos, de reforço à agricultura familiar e das políticas de assistência social; e trazendo de volta a miséria e a fome em massa, a exclusão social, os crescentes milhares em situação de rua, o trabalho precarizado, a imposição de aposentadorias e pensões abaixo de qualquer patamar de dignidade humana;

(5) o esganamento material e ideológico da Educação (escolas militares, vilipêndio das universidades, Novo Ensino Médio, Escola Sem Partido e perseguição aos professores empenhados na construção de uma consciência crítica embasada no método científico e na crítica social entre seus alunos etc.); da Ciência (cortes brutais nas bolsas de pós-graduação, levando à precariedade e abandono por parte de mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos; redução das pesquisas quantitativa e qualitativamente (variedade temática etc.); e da Cultura (ataques a instituições como o IPHAN, museus etc., combate contínuo aos instrumentos de fomento, censura explícita e instigada, redução do público pela ausência de política pública de estímulo e financiamento, preferência de gestores públicos por toda parte pelo entretenimento religioso ou midiático pasteurizado, em detrimento de manifestações artísticas criativas locais, nacionais e internacionais), com artistas e criadores reduzidos à sobrevivência básica ou até abaixo desta.

Observando os resultados apenas nos campos educacional e cultural, verifica-se: (a) cada vez maior emulação do lixo cultural estadunidense: BBB, A Fazenda, humor de baixíssimo nível, proselitismo religioso, economia exclusivamente neoliberal, noticiário político reduzido a “quem rouba, quem trai, quem conspira, quem concorre”, padronizando e nivelando por baixo os conteúdos de efetivo interesse social; (b) espetacularização de desastres e violência; (c) shows de artistas expressivos da produção mais baixa e descartável – com alta rotatividade –, da cultura pasteurizada que cria e condiciona seu próprio público massivo, alegando ‘satisfazer a demanda e o gosto do público’; etc.

Ao lado disso, observam-se uma crescente desadaptação cognitiva e de conhecimento de estudantes majoritariamente provenientes do ensino público aos requisitos de uma educação superior de qualidade e emancipadora em termos profissionais e de cidadania; a difusão gigantesca de fake news e ataques à ciência pelas redes sociais, atingindo grandes parcelas da população vulneráveis; e ainda a difusão de atitudes e valores agressivos em relação ao conhecimento científico e humanístico;

(5) Meio Ambiente: a devastação em larga escala, a política tristemente popularizada pela expressão “passar o trator”, a desmoralização mundial com a irrefreada devastação da Amazônia, os gravíssimos crimes ambientais da Vale em Mariana e Brumadinho e da Brasken em Maceió, os apagões elétricos Sul-Sudeste, na cidade de São Paulo e outros locais do país, dão a mostra do aprofundamento do abandono de padrões mínimos de exigência de sustentabilidade dirigidos pelo Estado às empresas atuantes no país, em todos os ramos de atividade. Relacionar este aspecto à precarização geral do trabalho, relacionada no item 3, leva automaticamente à rememoração da frase de Karl Marx em O capital: “A produção capitalista […] só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador” (MARX, Karl. O capital: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 570, 571).

O silêncio burguês e dos meios cultos ligados à elite social sobre esses ataques à própria construção nacional em termos democráticos, sustentáveis e civilizatórios indica o descolamento completo da burguesia associada ao imperialismo da efetiva construção de uma nação soberana, inclusiva e criadora de efetivo desenvolvimento socioeconômico. O empresariado, sob liderança do segmento financeiro-especulativo concentrado na Avenida Faria Lima em São Paulo, distribuiu-se entre apoiadores diretos e explícitos dos retrocessos citados, além de amplos segmentos de apoio mais discretos ou indiferentes e uns poucos que externaram eventuais ressalvas muito limitadas e segmentadas.

Na prática, a classe capitalista beneficiou-se enormemente do processo de destruição de direitos para ampliar as margens de lucros, especialmente do setor financeiro e dos grupos mais oligopolizados nacionais e estrangeiros, bem como de arrivistas recém-chegados. A mídia empresarial oligopolizada, associada à burguesia hegemônica, invariavelmente instigou e apoiou os movimentos golpistas antidemocráticos voltados à destruição ou ao bloqueio de quaisquer avanços sociais – como exemplifica o artigo citado no início deste texto.

Posteriormente, alguns de seus órgãos, ameaçados pela radicalização reacionária dos regimes e governos que ajudaram a implantar, frequentemente atingindo a liberdade de imprensa, adotaram tons semicríticos contra estes. Entretanto, a grande mídia, ao adotar tom mais crítico ao governo passado, não descuidou de estabelecer limites e condicionamentos aos partidos e movimentos populares, visando sua adaptação à ordem burguesa associada ao imperialismo, em sentido geral, e sua possível cooptação às alternativas políticas reorganizadas a partir da crise e derrota daquele governo.

Alguns órgãos da grande mídia são até capazes de realizar boas reportagens sobre algumas das mazelas descritas acima, porém sempre desvinculadas do contexto geral de destruição do tecido social e das fontes reais da riqueza, enquanto processo sistemático inerente à produção capitalista, apresentando-as, em lugar disso, como “casos” e “situações” locais ou setoriais.

O conjunto de fatores de esvaziamento da política e da legitimidade institucional para bilhões de seres humanos, brevemente sintetizados acima, constitui o caldo de cultura do fascismo, do neofascismo e das alternativas autoritárias intolerantes e violentas que se apresentam como “antissistema”. O capitalismo, em geral, e sua versão neoliberal em especial, é contraditório com a democracia, particularmente com qualquer forma de efetiva participação popular nas questões vinculadas às condições de vida e trabalho da maioria do povo.

Não há espaço suficiente para aprofundar a dimensão institucional especificamente brasileira da crise, mas faz-se necessário ressaltar a “descidadanização” da “Constituição Cidadã” por mais de cem emendas que descaracterizaram muitos dos direitos ali implantadas pela pressão das caravanas populares dirigidas ao Congresso Constituinte em sua origem. Além disso, o cotidiano brasileiro registra contínuas e flagrantes violações dos direitos ainda remanescentes, como exemplificam:

(i) a prisão inconstitucional de Lula sem processo tramitado em julgado, sob silêncio cúmplice do STF e do próprio TSE ante a violação da democracia eleitoral em 2018; (ii) a violência institucionalizada, sem defesa para as vítimas (a juventude negra exterminada nas comunidades, as mulheres pobres – e algumas até de faixas mais elevadas – pelo feminicídio em alta, a comunidade GLBTQIA+ constantemente agredida, às vezes de forma fatal);

(iii) a flagrante diferença, testemunhada com impressionante frequência, entre o tratamento a criminosos provenientes da elite social ou das camadas populares, pelas polícias militarizadas e pelo judiciário classista; (iv) a intolerância religiosa, com agressões morais e até físicas dirigidas especialmente contra as religiões de matriz africana – sem que os princípios constitucionais de igualdade perante a lei, liberdade individual e religiosa e o próprio direito à vida sejam efetivamente protegidos, no dia-a-dia, por nenhuma instituição estatal.

Essas situações, parcialmente amenizadas durante os doze anos de governos petistas, agravaram-se de forma brutal desde a crise econômica e política de 2015 até 2022. Algumas políticas públicas deste último ano e quase meio reverteram parte desse desastre social e político, mas ainda há enorme caminho e muitos obstáculos a vencer.

Resta, por fim, um vício de origem na Constituição de 1988, com o qual se perpetua aquele que talvez seja o maior impasse para uma república verdadeiramente democrática de liberdades, direitos e soberania popular e nacional: a tutela militar sobre o Estado. Esta vige no país desde o golpe republicano de Deodoro-Floriano, na imposição e derrubada de Getúlio Vargas, até culminar na ditadura militar; reeditar-se na pressão sobre a Constituinte pela inclusão na CF-88 do Art. 142, permitindo a intromissão das Forças Armadas na ordem interna (arbitrariedade inexistente em nenhuma democracia do planeta), bem como na advertência do general Villas Boas Correa ao Supremo para que mantivesse a prisão inconstitucional de Lula; e reforçar-se com o loteamento do Governo Federal por mais de seis mil militares no governo do ex-capitão proto-fascista, amante da ditadura e fã declarado do torturador-mor da República, beneficiado pela violência contra a Constituição supra citada.

Por conseguinte, sua reedição no golpe fracassado de 8/jan/23, com a revelação recente do envolvimento de membros da alta cúpula militar, não faz mais que atualizar a urgência de expurgar definitivamente a tutela militar sobre o país, se quisermos construir uma república efetivamente democrática.

Trata-se do pilar essencial, requisito fundamental à adoção de iniciativas sociais e políticas voltadas à resolução dos gravíssimos males sociopolíticos e econômicos relacionados acima.

Nada disso, porém, terá a eficácia necessária, caso os movimentos sociais e partidos institucionais a eles relacionados não alterem essencialmente sua estratégia política e de comunicação. Um novo enraizamento popular, capaz de combinar a presença real nas comunidades e locais de trabalho e a atividade multiplicada nas redes sociais, é indispensável. Um envolvimento profundo com as questões essenciais da sobrevivência, do trabalho digno e da defesa (e autodefesa) dos numerosos alvos de violência institucional e informal impõe-se como prioritário. Uma mudança de foco, sem abandonar o terreno eleitoral – que mantém sua importância –, porém entrelaçando-o com a militância social, a organização popular e dos trabalhadores e o investimento na formação de lideranças, quadros intermediários, profissionais com consciência social e novas camadas de dirigentes, é um caminho inadiável.

A burguesia e o imperialismo possuem recursos inesgotáveis para construir sua base de sustentação, por dentro e por fora das instituições. Movimentos sociais e partidos com perspectiva transformadora não podem pretender competir com as mesmas armas. Devem voltar a fazer aquilo que sempre souberam melhor, nas condições concretas do presente. Condições que incluem as novas mídias e redes, o impacto cultural neoliberal-individualista, a fragmentação do trabalho, mas também a contínua renovação da luta social, pela própria força das contradições inerentes ao capitalismo e sua vocação voraz de destruidor da força de trabalho, da natureza e da democracia.

*Roberto Vital Anav, economista, é doutor em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Autor de O retorno de Karl Marx: a redescoberta de Marx no século XXI (Perseu Abramo/Serpente). [https://amzn.to/3W4wHjk]


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