Por JORGE SCHWARTZ*
Apresentação do organizador do dicionário sobre Jorge Luis Borges
“De los diversos géneros literarios, el catálogo y la enciclopedia son los que más me placen. No adolecen, por cierto, de vanidad. Son anónimos como las catedrales de piedra y como los generosos jardines”. (Jorge Luis Borges, apud Antonio Fernández Ferrer, Borges A/Z, p. 160).
Poderia começar esta breve introdução fazendo considerações acerca do excesso que significa publicar mais um dicionário sobre Jorge Luis Borges; poderia também refletir sobre o papel da biblioteca ou da enciclopédia em sua vida e literatura. Acredito que pouco tenho a acrescentar aos verbetes específicos a respeito desses tópicos aqui incluídos. Em todo caso, nenhum dos dicionários ao meu alcance foi concebido como trabalho em equipe ou inclui um número tão extenso e variado de colaboradores. Planejada a princípio para o leitor brasileiro, esta obra, com seus mais de mil verbetes, poderá ser de utilidade a um público bem mais amplo, e não só àquele dedicado exclusivamente à literatura.
A história do Borges babilônico (título emprestado de uma referência que Julio Cortázar faz ao mestre em Cartas a los Jonquières) teve início há muitos anos, como mero exercício de leitura — exercício que Jorge Luis Borges sempre privilegiou ao da escrita, em particular quando se tratava da leitura de enciclopédias.
No fim da década de 1990, a Editora Globo de São Paulo publicou as Obras completas de Jorge Luis Borges em quatro volumes (Prêmio Jabuti de Tradução), que preparei com Maria Carolina de Araujo, minha colaboradora e assistente editorial. Baseados nas pesquisas e em inúmeras consultas feitas para essa edição, conjecturamos que, com os extensos materiais ao nosso dispor, poderíamos elaborar um glossário ou o que no começo chamamos “Guia de leitura de Borges para o Brasil”, ou simplesmente “Guia Borges”.
Falei “exercício” de leitura porque o projeto foi pensado inicialmente para ser realizado por alunos das áreas de graduação de Espanhol e de História da América, da Universidade de São Paulo: os alunos deveriam compor os verbetes, com o apoio de bolsas de Iniciação científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
Durante os primeiros dois anos, os seminários com os estudantes dedicaram-se à definição de um corpus: nomes próprios, termos e expressões extraídas dos quatro volumes das Obras completas cujo detalhado repertório pudesse despertar o interesse do leitor brasileiro. Chegou-se a uma lista exorbitante que ultrapassou sete mil verbetes. Foi quando percebemos com mais clareza aquilo que já suspeitávamos: o caráter infinito da erudição de Jorge Luis Borges e a empresa impossível de construir uma provável enciclopédia de uma mente enciclopédica por excelência. Uma metaenciclopédia.
O processo seletivo do corpus dos termos foi, sem dúvida, subjetivo e arbitrário. O que seria importante esclarecer ao leitor de Borges no Brasil que também despertasse o interesse de um leitor que não fosse brasileiro? Começaram então a surgir áreas de conhecimento que impediam que a realização do projeto ficasse limitada a um grupo de estudantes de graduação: literaturas argentina, inglesa, francesa, italiana, oriental, judaica, finlandesa, norte-americana, alemã ou anglo-saxônica; temas diversos como a poesia, a tradução, as matemáticas e a filosofia; também o mundo da história e da cultura argentinas, especialmente o do século XIX e da primeira metade do XX.
Definimos, desde o início, que não faríamos interpretação de textos. Além disso, evitamos repetir informações de fácil acesso pelos meios da informática (Google, Wikipédia) e adotamos a norma de que todos os verbetes fariam referência específica à obra de Jorge Luis Borges.
Na organização deste volume, o rico tecido de relações entre os diferentes verbetes teve de se subordinar à tirania do critério alfabético; toda vez que se fez necessário, recorremos ao uso da remissão de um verbete a outro.
Percebendo que alguns assuntos mereciam uma abordagem mais extensa, inauguramos a categoria dos “verbetes temáticos”. Entre os especialistas convidados para a elaboração desses pequenos ensaios, encontram-se nomes como Alberto Manguel, Alfredo Alonso Estenoz, Ana Cecilia Olmos, Annick Louis, Beatriz Sarlo, Claudia Fernández, Daniel Balderston, Davi Arrigucci Jr., David Oubiña, Edgardo Cozarinsky, Enrique Mandelbaum, Enrique Sacerio-Garí, Inés Azar, Ivan Almeida, Júlio Pimentel Pinto, Julio Schvartzman, Magdalena Cámpora, María de los Ángeles González Briz, Martín Greco, Michel Lafon, Pablo Rocca, Patricia Artundo, Rafael Olea Franco, Ricardo Piglia, Saúl Sosnowski, Walter Carlos Costa.
Além da imensa quantidade de consultas que realizamos, principalmente aos próprios autores dos verbetes, dois especialistas se dedicaram a uma leitura crítica das versões finais: Alfredo Alonso Estenoz, do Luther College em Iowa, e Júlio Pimentel Pinto, da Universidade de São Paulo. Para a supervisão dos verbetes sobre a cultura e literatura do Oriente, contamos também com a colaboração de Christina Civantos, da Universidade de Miami. Coube a Gênese Andrade a delicada tarefa da versão de textos originais em espanhol para o português. Da nossa plêiade de colaboradores locais, merece destaque Paulo Ferraz de Camargo Oliveira, que nos acompanhou ao longo dos anos elaborando e revisando verbetes.
Houve casos, considerados de exceção, em que incorporamos verbetes já publicados, como vários daqueles que vieram à luz no caderno mais!, suplemento da Folha de S. Paulo (1o de agosto de 1999), sob o título “abc de Borges”, com colaborações de excelência. Outros, por exemplo, foram generosamente cedidos por Marcela Croce e Gastón Sebastián M. Gallo, autores da Enciclopedia Borges, e por Edgardo Cozarinsky e Eduardo Berti, autores da Galaxia Borges.
Uma das exceções mais curiosas, talvez a mais curiosa de todas, é o verbete sobre Jorge Luis Borges, elaborado pelo próprio escritor como “Epílogo” ao clássico volume das Obras completas, de 1974, que saiu pela Editora Emecé de Buenos Aires. Nas páginas finais desse volume, o verbete se apresenta como um texto redigido para uma hipotética “Enciclopedia Sudamericana”, que seria publicada em Santiago do Chile cem anos mais tarde, portanto em 2074. O verbete é sobre “Borges, José Francisco Isidoro Luis”, com a deliberada substituição de “Jorge” por “José”.
Alguns instrumentos foram indispensáveis em nossas pesquisas: a clássica edição das Oeuvres complètes, da Bibliothèque de la Pléiade, em dois volumes, anotada por Jean Pierre Bernès, e a mais recente edição crítica das Obras completas de Borges, em três volumes, anotada por Rolando Costa Picazo e, no caso do primeiro volume, também por Irma Zangara. Tiveram igualmente grande utilidade alguns dicionários, como: Borges: Una enciclopedia, de Daniel Balderston, Gastón Gallo e Nicolás Helft; Borges, libros y lecturas, de Laura Rosato e Germán Álvarez, publicado em Buenos Aires pela Biblioteca Nacional em 2010; ainda, de Daniel Balderston, The Literary Universe of Jorge Luis Borges; de Evelyn Fishburn e Psiche Hughes, Un diccionario de Borges; Reasoned Thematic Dictionary of the Prose of Jorge Luis Borges, de Ion T. Agheana; Ficciones de Borges, de Antonio Fernández Ferrer, e Borges A/Z, organizado por esse mesmo autor (para a prestigiosa coleção La Biblioteca de Babel, de Franco Maria Ricci).
A lista de agradecimentos é enorme, começando pelos 66 colaboradores, que nunca deixaram de responder às nossas insistentes dúvidas. Lamento, profundamente, ter de registrar aqui duas perdas irreparáveis: Michel Lafon, um dos mais sofisticados críticos de Jorge Luis Borges, que redigiu em especial para o nosso livro o verbete “Pierre Menard”, sem dúvida o personagem mais famoso da segunda metade do século xx para a teoria da literatura. E Ricardo Piglia, que tanto fez pela divulgação da literatura de Borges, e que não poderia estar ausente do nosso projeto. Nenhum dos dois terá a alegria de ver o Borges babilônico publicado.
O maior agradecimento, no entanto, é para a minha infatigável parceira, a coordenadora editorial Maria Carolina de Araujo, que, ao longo dos anos, não se furtou a lidar com todas as dificuldades próprias à elaboração de um livro muito próximo a um dicionário e com colaboradores tão diversos. Last but not least, sem a contribuição do CNPQ os alunos não teriam ingressado neste fascinante universo, que os manteve ocupados durante vários anos.
Vi e ouvi Borges pela primeira vez por ocasião do Prêmio Jerusalém, na Universidade Hebraica de Jerusalém (1971). Depois, na memorável visita que o escritor fez a São Paulo, acompanhado de María Kodama, em 1984, e que as várias biografias sobre ele ignoram.
Passei a ensiná-lo nas aulas de graduação da área de Espanhol da Universidade de São Paulo. Mas, de fato, só aprendi a lê-lo ao lado de Emir Rodríguez Monegal, durante minha permanência em Yale (1977-8). A Emir, in memoriam, dedico este trabalho.
Para terminar, gostaria de me apropriar das palavras de Jorge Luis Borges no prólogo ao Livro dos seres imaginários, ele mesmo uma espécie de dicionário: “Um livro desta índole é necessariamente incompleto; cada nova edição é o núcleo de edições futuras, que podem se multiplicar até o infinito. […] Como todas as miscelâneas, como os inesgotáveis volumes de Robert Burton, de Fraser ou de Plínio, o Livro dos seres imaginários não foi escrito para uma leitura consecutiva. Gostaríamos que os curiosos o frequentassem, como quem joga com as formas mutantes que revela um caleidoscópio”.
*Jorge Schwartz é professor titular em literatura hispano-americana na USP. Autor, entre outros livros, de Fervor das vanguardas (Companhia das Letras). [https://amzn.to/4b5sEsd]
Referência
Jorge Schwartz (org.). Borges babilônico: uma enciclopédia. São Paulo, Companhia das Letras, 2017, 572 págs. [https://amzn.to/3HtMq3h]
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