Por MATEUS MENDES*
O veto do Brasil à Venezuela vem de uma convicção equivocada, assentada numa concepção minimalista de democracia e numa leitura errada da conjuntura internacional
Por mais que se reconheça que as limitações impostas a Lula hoje são muito maiores que em seus primeiros mandatos, a postura do Brasil em relação à Venezuela deixa a impressão de que muitos dos equívocos são por convicção. Dito de outra forma, certamente não há margem de manobra para propor retirar a suspensão da Venezuela do Mercosul. Daí a vetar sua entrada para o Brics, vai uma distância.
As condicionantes
A política externa é uma política pública e, como toda política pública em um Estado capitalista, é influenciada pela resultante da disputa entre as frações da burguesia doméstica.
Nos países dependentes, como o Brasil, a burguesia possui três frações, distintas pelo grau de autonomia em sua base de acumulação. Enquanto a burguesia compradora não possui base própria de acumulação, a burguesia nacional é a fração que possui base própria de acumulação. Entre ambas, há a burguesia interna, que possui base própria de acumulação, porém é fortemente dependente do capital internacional.
Essa diferença em relação ao capital internacional-imperialista terá como consequência relações distintas com o imperialismo. Enquanto a fração compradora possui laços estreitos com o imperialismo, a nacional, mais autóctone, costuma defender maior autonomia. Já a burguesia interna oscila, apoiando a submissão ou a autonomia do país a depender de uma série de fatores.
Com o golpe de 2016, claramente a balança pendeu para as forças pró-imperialismo. Seria ilusório derivar que a vitória de Lula em 2022 alterou esse quadro. Logo, a análise da política externa brasileira deve ser feita reconhecendo-se também essas mesmas condicionantes. Reconhecer tais limites, contudo, não demove a sensação de que a política externa brasileira está sendo mais realistas que o rei no que diz respeito à nossa relação com a Venezuela.
Política externa brasileira e a Venezuela
Em abril de 2002, quando houve o golpe que tirou Hugo Chávez do Palácio Miraflores por 47h, quem falasse em ciclo de esquerda na região seria tomado de louco ou paranoico. Isso não impediu que, sob liderança de FHC, a região fechasse questão no não reconhecimento do governo golpista.
Quando havia em Caracas e em Brasília governos de esquerda, os dois países tinham relações excelentes. Bom exemplo disso foi a escolha do nome de batismo da Refinaria Abreu e Lima (PE), oportunidade na qual Lula assentiu, a pedido de Hugo Chávez, em homenagear o general recifense que lutara ao lado de Bolívar. Outro exemplo foi a disposição do governo brasileiro em trazer a Venezuela para o Mercosul, fato que só se concretizou na esteira da suspensão do Paraguai.
Em 2012, alinhado a essa direita hidrófoba, o parlamento do vizinho platino era o único óbice à entrada do vizinho amazônico-caribenho. O golpe desfechado contra Lugo justificou a suspensão do país, o que eliminou os embaraços à entrada da Venezuela, feita em ato contínuo a suspensão. É bom que se frise: tal resposta ocorreu em Brasília.
Em que pesem as afinidades ideológicas, a entrada da Venezuela no Mercosul era estratégica por razões políticas e econômicas. Significava integrar um mercado desde a Patagônia até o Caribe. A inclusão da Venezuela agradava aos industriais brasileiros, que viam, na vizinha presa na armadilha do rentismo petroleiro, uma abertura de mercado preferencial.
Não obstante, a maré reacionária e autoritária que promoveu o (neo)golpe no Paraguai não tardou a alcançar o Brasil. À época, a presidenta Dilma Rousseff pôde contar com o apoio de Nicolás Maduro. Muito antes, a Venezuela já era um dos temas preferidos da turba golpista, que era liderada – ora, que ironia – pelos tucanos.
Quando o golpe se consumou, uma ofensiva contra a Venezuela teve início. Em março de 2017, quando Michel Temer o empossou chanceler, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) disse que “não podia deixar de lembrar a preocupação (…) com a escalada autoritária do governo venezuelano”. Em 5 de agosto, em São Paulo, a Venezuela foi suspensa do Mercosul. Três dias depois, Brasília participou da criação do Grupo de Lima, concertação cujo objetivo explícito era isolar Caracas.
Entretanto, nesse quesito, a página mais infeliz de nossa história viria em 2019. Sob Jair Bolsonaro, o Brasil participou do que a própria Usaid reconhece ter sido uma tentativa de golpe travestida de ajuda humanitária. Fracassada a patacoada, meses depois o Brasil reconheceu o autoproclamado presidente Juan Guaidó.
De lá para cá, o que se viu foi que Nicolás Maduro não titubeou em denunciar o processo golpista que por aqui se desenrolava. Chamou as coisas pelos seus nomes: a destituição de Dilma Rousseff de “golpe”; a prisão de Lula de “prisão política” e “canalhice vergonhosa”.
Portanto, mesmo considerando as limitações às quais a política externa brasileira de Lula 3 está sujeita, a postura brasileira merece críticas. Não reconhecer prontamente a vitória de Maduro foi grande equívoco. O mínimo que se esperava era solidariedade, ao menos pelo fato de que os opositores de lá são tão ou mais golpistas que os daqui.
O principal candidato oposicionista foi Edmundo González Urrutia. Incensado como um moderado pela mídia internacional e por setores do governo brasileiro, quando o jovem González era o número 2 da embaixada da Venezuela em El Salvador ele colaborara com os esquadrões da morte salvadorenhos no âmbito da Operação Condor.
Ainda assim, na eleição de 2024, González foi testa-de-ferro de María Corina Machado. Partícipe do golpe de 2002, Machado se notabilizou pela defesa de políticas ultraliberais, à lá Javier Milei, e por liderar um grupo político marcadamente violento, que em 2017 linchou, esfaqueou e queimou Orlando Figuera (22) vivo em uma manifestação em Caracas pelo simples fato de o jovem ser chavista. Machado, como toda a direita venezuelana, apoiou a tentativa de golpe em 2019.
Logo, não é possível exigir a prisão de Jair Bolsonaro e dos golpistas de 8 de janeiro e achar razoável normalizar Machado, González e sua entourage.
Além disso, o Art. 4º da nossa Constituição diz que nossas relações internacionais se regem pelos princípios da autodeterminação dos povos e da não-intervenção. Adicionalmente, do ponto de vista filosófico, as bases da contestação partem de uma visão minimalista de democracia, a mesma que considera o golpe de 2016 um percalço menor. Por último, mas não menos importante, tal gesto ignorou totalmente o contexto geopolítico.
Nesse sentido, o veto do Brasil à entrada da Venezuela nos Brics é um sintoma de uma concepção equivocada de política externa e de leitura da conjuntura.
Brics e geopolítica
Os Brics são uma concertação de países emergentes e em desenvolvimento assentada em três pilares: cooperação em política e segurança; cooperação financeira e econômica; e cooperação cultural e pessoal. Seu principal objetivo é alterar o sistema de governança global, especialmente no que diz respeito às instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) e a dolarização da economia internacional.
Trata-se da defesa de uma ordem multipolar, portanto, de uma articulação de caráter geopolítico. Mais que isso: uma articulação geopolítica que congrega potências que desafiam econômica e militarmente os EUA e Ocidente. Nesse sentido, a tentativa de alguns em negar a oposição dos Brics ao Ocidente deve ser interpretada como discrição ou diversionismo.
Desde a primeira reunião em 2009, o grupo incorporou a África do Sul, passando a ser Brics; criou o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), banco de fomento cujos recursos estão disponíveis não apenas para seus membros, mas para países emergentes em geral, e o Arranjo Contingencial de Reservas (ACR), fundo destinado a garantir liquidez aos países membros em caso de crise financeira ou cambial em curso ou iminente; incluiu como novos membros Arábia Saudita, Emirados Árabes, Etiópia e Irã; e criou uma nova categoria, a de “membro associado”, da qual fazem parte Argélia, Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Indonésia, Malásia, Tailândia, Nigéria, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. E aqui está o erro brasileiro: a Venezuela era para ter sido incluída e não o foi por decisão brasileira.
A entrada da Venezuela para os Brics seria mutuamente benéfica. Nossos vizinhos poderiam ver aliviadas as restrições ilegalmente impostas pelo Ocidente. Os Brics, além de acrescentarem ao portifólio a maior reserva de petróleo do mundo, deixariam claro que não cabe aos EUA dizer quem deve ser incluído ou excluído do sistema internacional.
O incômodo e a inquietação aumentam quando se constata que o Brasil não precisava fazer nada, bastava deixar o fluxo seguir. Como não se tratava de uma iniciativa brasileira, o ônus político seria baixo. Nem mesmo a tresloucada suposição de que Lula é um infiltrado dos EUA faz sentido, afinal, ano passado entrou o Irã e, esse ano, Cuba.
Ademais, as alegações de que a decisão seria uma resposta aos comentários grosseiros vindos de Caracas também não se sustentam. Por piores que tenham sido, todos vieram em reação à postura equivocada brasileira de imiscuir-se no processo eleitoral venezuelano. E, novamente, não há nada que indique que o governo brasileiro foi constrangido a agir assim.
Não se justificando o veto por algum constrangimento, resta a convicção. Uma convicção equivocada, assentada numa concepção minimalista de democracia e numa leitura errada da conjuntura internacional. A falsa polêmica sobre a qualidade da democracia da Venezuela é algo entre biombo e aríete do cerco que pretende substituir Maduro por um títere que franqueie suas reservas petrolíferas, dizime o chavismo e afaste a China e Rússia do hemisfério. Definitivamente, o Brasil não precisava contribuir para isso.
*Mateus Mendes é doutorando em economia política internacional na UFRJ. Autor, entre outros livros de Guerra híbrida e neogolpismo: geopolítica e luta de classes no Brasil (2013-2018) (Expressão Popular).
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