Por JOÃO LANARI BO*
Comentário sobre o filme, “Ar”, de Aleksei German Jr.
A guerra da Ucrânia deflagrada por Vladimir Putin tem incontáveis sequelas no plano humano — são tragédias e tragédias que circulam no ciclo efêmero das notícias sensacionalistas, de rápido consumo, configurando uma (quase) rotina para o espectador perplexo.
No plano cultural outro incontrolável fenômeno veio à luz — o cancelamento de qualquer produto russo dos circuitos de consumo, salvo as raríssimas exceções de praxe. Uma delas aconteceu em 23 de agosto, no Cine Brasília, na capital do país: a exibição, em sessão promovida pela embaixada russa, do excepcional Ar (2023), de Aleksei German Jr.
Ar é um filme de guerra, da “guerra patriótica”, como os russos referem-se à Segunda Guerra Mundial. Estamos em 1942, em um campo de aviação perto de Leningrado (hoje São Petersburgo). Pilotos de caça enfrentando rivais alemães superiores, aviões russos lentos e precários, até seus rádios são piores do que os dos alemães.
A novidade: um esquadrão de mulheres, recém-formadas na escola de aviação, sem experiência real de combate, junta-se ao grupo. Katya vem de uma pequena aldeia, Masha de uma família próspera de Moscou, Marika é georgiana. Zhenya, cujo passado vai se revelando ao longo do filme, é filha de um herói-piloto que foi assassinado nos expurgos de Stálin poucos anos antes (a mãe também foi executada). Ela foi obrigada, como tantos outros, a renegar o pai como “inimigo do povo”: levada a um orfanato, foi estuprada pelo inspetor.
A ação começa nas margens do lago Ladoga, com um brutal bombardeio no comboio de suprimentos da sitiada Leningrado. A expectativa de Hitler era asfixiar e liquidar a cidade com um mínimo de perdas para as forças de seu país. De setembro de 1941 a janeiro de 1944, foram algo como 870 dias de cerco quase integral, que levou à morte mais de um milhão de pessoas, um terço da população. Levantar voo para tentar impedir o massacre dos comboios era vital.
As imagens tem um tom bege-acinzentado, característico do diretor. Uma persistente neblina difrata o ar, independente da época do ano e do ponto geográfico para onde a guerra leva o esquadrão — e o efeito é um sutil distanciamento, pessoas vivas parecem saídas de velhas e desbotadas fotografias.
O filme tem seis grandes episódios de combate aéreo. Inicialmente, seriam aeronaves reais de modelos Yak-1 soviético e os alemães Messerschmitt e Stuka. Na República Tcheca encontram-se originais desses modelos, mas não foi possível utilizá-los. A opção foi usar aviões modernos “maquiados” por computador, e um imenso painel de LED no fundo, com altura equivalente a um prédio de quatro andares, mostrando imagens do céu.
Close-ups de atrizes e atores dentro de cockpits foram filmados com a ajuda dos estabilizadores especiais, que imitavam mergulhos ou curvas. Situações de desequilíbrio e vertigem ganham uma inesperada credibilidade. Alterações musculares levemente perceptíveis nas faces denotam estados psicológicos diante da tenuidade atmosférica. O som, ensurdecedor, suspende a cena.
O acolhimento machista ao contingente feminino, previsível, tem um leve contraponto no comandante – a escassez de pilotos é dramática, e o próprio esquadrão tem uma subcomandante mulher, com quem ele se relaciona. Se a expectativa de vida já era baixa, com a chegada das mulheres inexperientes pode piorar. Não há lugar para super-heróis, são todos — homens e mulheres — pessoas comuns em transformação, tendo como substrato existencial um pesadelo constante, nos sonhos e na realidade.
Não ocorrem milagres e coincidências felizes. Não há cenas de trégua com canções edificantes que acalmam e dão esperança, típicas das narrativas convencionais. As mortes não são dramatizadas, são um dado imediato da realidade.
A convivência e a camaradagem vão adensando, sempre limitadas pelo limiar da morte súbita. Pouco a pouco morrem as aeronautas. Aleksei German Jr. esmerou-se para criar um filme carregado de tensão entre personagens, mas sem os gatilhos usuais do gênero — não é a guerra codificada hollywoodiana, é a guerra deslocada para o cenário soviético, naquele momento com uma incerteza colossal diante da potência do agressor.
Não faltam acontecimentos pungentes a pontuar a narrativa, angústias que se repetem, situações-limite. Paranoias reaparecem: falar mal de motores antiquados dos aviões pode sugerir traição, e execução. Paira, naturalmente, o heroísmo de resistência associado ao período — mas, ao contrário do pieguismo dos filmes feitos sob o mandato estético do realismo socialista, não há positivação artificial de personagens. Todos podem morrer, a qualquer momento.
Paira, também, uma característica marcante nos filmes russos sobre guerras: a obsessão pela total (ou quase total) aniquilação de unidades militares em combate, que, contrário às expectativas, termina conduzindo a bons resultados, até mesmo desejados, dessa forma — a vitória na morte. Zhenya é atingida, consegue saltar de paraquedas e cai numa trincheira em Stalingrado.
A batalha que assombrou por meses aquela cidade aproximava-se do fim — e a guerra não seria a mesma, o horizonte da derrota nazista era plausível. Ninguém sabe quantos morreram na extensa frente oriental: Aleksei German Jr. fala do caos nos arquivos soviéticos, muito foi perdido, seriam 27 ou 35 milhões de vítimas fatais.
A URSS foi pioneira em utilizar mulheres na aviação de combate: Stálin emitiu uma ordem em 8 de outubro de 1941 para implantar três unidades da força aérea compostas por combatentes femininas. Asas, de 1966, é um belíssimo filme de Larissa Chepitko que tem como protagonista uma mulher, no pós-guerra, aviadora condecorada na Guerra patriótica. Na guerra, os esquadrões femininos eram chamados de “Bruxas da noite” pelos alemães. O grupamento de “Ar” é ficcional, mas reflete um sem número de situações reais, inclusive — e sobretudo — a catástrofe da guerra.
Um filme crítico das guerras, portanto. Aleksei German Jr. não se posicionou abertamente contra a invasão da Ucrânia, como alguns dos diretores russos conhecidos no Ocidente — Kirill Serebrennikov, Alexander Sokurov e Andrey Zvyagintsev — mas tampouco exaltou a chamada “operação especial”, como Nikita Mikhalkov e outros.
Para ele, ocorreu uma falência gradual na globalização e foi inevitável o consequente esvaziamento do diálogo. Seu filme foi exibido na Rússia, mas pouquíssimas vezes no exterior — uma exceção foi o Festival de Tóquio, em 2023. “Cedo ou tarde o diálogo será retomado — e a cultura será a primeira ferramenta para isso”, concluiu.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]
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