Por MAYSA TORRES DOS SANTOS*
Comentário sobre o livro organizado por Ricardo Musse
O livro China contemporânea: seis interpretações traz reflexões de alto nível teórico a respeito dos principais temas que envolvem o debate em torno da chamada China contemporânea. Tendo em vista a atualidade e a popularidade do tema, devido à ascensão da economia chinesa e ao destaque internacional que a China tem conquistado nas últimas décadas desde a abertura econômica e as reformas de 1978, a contribuição dos autores traz alguns pontos polêmicos e não consensuais, mas também fundamentais para o debate na teoria política marxista.
O primeiro texto, de Alexandre de Freitas Barbosa, intitulado “A ascensão chinesa e a economia-mundo capitalista: uma perspectiva histórica”, apresenta elementosintrodutórios para o debate a respeito da China contemporânea. O autor faz um resgate histórico acerca do desenvolvimento da economia e da política chinesa. Nesse sentido, Alexandre de Freitas Barbosa expõe na primeira parte de seu texto as razões pelas quais considera que na China o capitalismo não se desenvolveu. Nota-se que há, desde a gênese do desenvolvimento econômico chinês, um forte controle estatal que, de acordo com Barbosa, é exercido por meio dos mandarins letrados — ou seja, o controle estatal é uma característica chinesa que antecede o modo de produção socialista.
Dentre os autores do livro, o diferencial de Alexandre de Freitas Barbosa se dá devido ao fato de o autor considerar que os modelos utilizados sobretudo pelos economistas ocidentais, como “capitalismo de Estado” e “socialismo de mercado”, têm reduzido potencial analítico para tratar da China, de modo que a principal dificuldade para a análise da economia chinesa, no ponto de vista do autor, residiria na esfera conceitual. Porém, a despeito dessa avaliação, o autor considera a China capitalista devido à sua conexão global, ainda que cercada pelo poder do Estado.
Apesar de desenvolvimentos teóricos distintos, os dois textos seguintes, intitulados respectivamente “Apontamentos sobre a geopolítica da China” (de Elias Jabbour e Alex Dantas) e “Comentários sobre a economia política chinesa” (de Wladimir Pomar), possuem conclusões similares, razão pela qual apresentarei as principais reflexões desses autores em conjunto. Como afirmado anteriormente, faz-se necessário desenvolver a análise histórica sobre o controle estatal na China para compreender esse país na atualidade. Nesse sentido, os autores trazem elementos pouco conhecidos da história chinesa para compreendermos as causalidades que a levaram à posição na qual a China se encontra na contemporaneidade.
Comecemos pelo ponto em que esses autores convergem com o texto de Alexandre de Freitas Barbosa: a abundância material chinesa e as origens do controle estatal na China. No texto de Elias Jabbour e Alex Dantas, assim como no texto de Alexandre de Freitas Barbosa, os autores demonstram que a abundância de água e solo fértil levaram a um rápido desenvolvimento das forças produtivas materiais — condição que, para os autores, conduziu ao surgimento de uma larga economia de mercado. Porém, Elias Jabbour e Alex Dantas introduzem um conceito presente no debate marxista sobre a transição socialista: o modo de produção asiático. Assim, os autores defendem que a China já surge como uma forma primitiva de Estado desenvolvimentista.
Enquanto Elias Jabbour e Alex Dantas demonstram, a partir do contexto de abundância material da China, o surgimento de um Estado de tipo desenvolvimentista, Wladimir Pomar, em seu texto “A economia política chinesa”, retoma a história da China para compreender as mudanças a partir das reformas econômicas de 1978. Contudo, Wladimir Pomar inicia sua apresentação a partir da Revolução Chinesa, defendendo que devido ao atraso das condições econômicas e sociais, o desenvolvimento econômico e social foi a diretriz fundamental da economia política marxista.
Com relação ao modelo político econômico da China, Elias Jabbour e Alex Dantas defendem o socialismo de mercado como mais aplicável à China contemporânea. Resumidamente, os autores mantêm essa posição, sobretudo devido à grande intervenção do Estado chinês na economia. O conceito de “Nova Economia de Projetamento”, então, é adotado pelos autores como resultado da planificação econômica, organização e racionalização da produção em grande escala e pelo fato de acreditarem que as teorias convencionais, tanto ortodoxas como heterodoxas, não seriam suficientes para explicar a China.
O texto de Bruno Hendler, intitulado “Crise de hegemonia e rivalidade EUA-China”,aprofunda e endossa a contribuição dos autores anteriores, pois o autor, embora não foque na discussão a respeito do modelo econômico chinês, demonstra, com base em alguns indicadores de desenvolvimento — o PIB chinês em comparação ao norte-americano, o índice de exportação, importação e o debate monetário —, como a China logrou disputar com os EUA a reorganização da economia mundial.
O texto de Bruno Hendler nos faz entender, ou ao menos questionar, a abrangência do desenvolvimento chinês nas últimas décadas. Se nos textos anteriores vimos o tipo de modelo econômico existente na China e, sobretudo, a forte presença estatal na economia e na política, nesse texto é possível compreender como o modelo político econômico, independente da denominação defendida pelos autores, pôde chegar ao ponto de disputar a hegemonia mundial. A exposição do autor, portanto, se opõe à argumentação de orientação ideológica liberal, segundo a qual a intervenção estatal e o planejamento econômico são típicos de economias atrasadas ou, também, não são capazes de gerar riqueza suficiente para competir no mercado internacional.
Em seu texto “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa”, Francisco Hardman, diferentemente dos autores anteriores, traz a reflexão a respeito da cultura e da literatura chinesa. Dentre a vasta e sofisticada apresentação de Francisco Hardman, julguei relevante destacar o seguinte elemento trazido pelo autor, pois retoma uma característica ideológica presente na Revolução Cultural: o fato de ele colocar, de antemão, que não pretende nenhum tipo de dualismo geográfico-histórico na análise, mas se propõe a pesquisar as várias fusões ocorridas, considerando, também, as mudanças determinadas pelas relações de produção capitalistas.
Vê-se, portanto, que o autor faz um movimento muito importante para os estudos sobre China ao mobilizar aspectos oriundos da Revolução Cultural. O primeiro deles é considerar a questão camponesa como determinante na cultura chinesa e, em segundo lugar, a falibilidade do dualismo ocidental para tratar da China.
O texto de Luiz Enrique Vieira de Souza traz um tema que mobiliza estudiosos e, sobretudo, críticos ao modelo chinês: a questão ambiental. Apesar de o governo chinês defender a noção de “civilização ecológica”, Souza identifica os limites desse conceito na China. Inclusive, Luiz Enrique Vieira de Souza faz um adendo necessário: o sentido atribuído à “civilização ecológica” configura um campo em disputa entre as elites políticas chinesas, apesar do seu relevo enquanto diretriz para a formulação de políticas públicas.
Segundo o autor, o conceito de civilização ecológica, nesse sentido, foi cunhado como uma alternativa aos modelos ocidentais de desenvolvimento sustentável. Souza conclui que a contradição desse conceito é que há analogias com as insuficiências dos projetos de modernização ecológica nos países capitalistas do Ocidente: o crescimento econômico permanece como dogma inquestionável, assim como os processos de reforma ambiental são negociados no interior do atual modelo de produção.
Apesar de o livro abordar diferentes temas, as preocupações e perspectivas compartilhadas por esse conjunto importante de autores contribuem para a compreensão da política econômica da China contemporânea, bem como da posição desse país com relação às principais questões que despertam o interesse e as críticas dos estudiosos do assunto.
*Maysa Torres dos Santos é mestranda em ciência política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicado originalmente na revista Crítica marxista, no. 56 [https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/cma/article/view/1880]
Referência
Ricardo Musse (org.). China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte, Autêntica, 2021. 208 págs. [https://amzn.to/46YLsYz]
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