Considerações sobre o voto “evangélico”

Imagem: Paulinho Fluxuz
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Por JULIAN RODRIGUES*

Crítica do conservadorismo evangélico dissimulado

Em tempos de obscurantismo, expectativas positivas sempre tornam quase obrigatória a leitura de um artigo escrito por um físico, professor da USP, e ainda por cima publicado no site A Terra é Redonda [https://aterraeredonda.com.br/sobre-o-voto-evangelico/]. Nunca tinha ouvido falar no professor Osame Kinouchi, especializado em física estatística, sistemas dinâmicos, neurociência computacional, redes neurais. coordenador do Laboratório de Física Estatística e Biologia Computacional da USP São Carlos.

O tema de seu artigo, “Sobre o voto “evangélico”” é inescapável. Entender o mundo evangélico e como a esquerda brasileira deve se relacionar com essa população, disputando valores e ideias. Tratava-se de uma réplica a outro artigo, de Rubens Pinto Lyra também postado em A Terra é Redonda, intitulado “O voto dos evangélicos” [https://aterraeredonda.com.br/o-voto-dos-evangelicos/] que demonstrou como aspectos doutrinários do cristianismo protestante se conectam com o bolsonarismo, para além da precariedade da formação dos pastores e da “teologia da prosperidade”.

Depois de uma razoável descrição das correntes protestantes e suas diferenças, o físico uspiano avança também ao chamar a atenção para a forte predominância de mulheres,  pretos, pobres entre a base evangélica.

Em defesa de sua religião (sim, o físico-professor- cientista é evangélico  praticante – não me peçam para ressaltar esse oximoro, para ser rotulado como preconceituoso)  – o autor elenca vários elementos reacionários do catolicismo, como a infalibilidade papal, a proibição de métodos contraceptivos e o veto às mulheres no sacerdócio.

Até aí, tudo bem. Só que a vida é dura. O que parece esquisito, geralmente é mesmo estranho. Ao defender, corretamente, que os evangélicos não são um bloco monolítico, em seguida o professor  parte para defesa do empresário Edir Macedo.

O autor, então, “sai do armário” e nos   tasca o seguinte parágrafo:

“Quantos votos Haddad perdeu ao colocar no seu plano de governo de 2018 as bolsas de estudo extras para os transexuais? Não ganhou nenhum voto LGBT a mais, pois essa comunidade iria votar nele de qualquer jeito, com ou sem esse item no programa. Mas com esse item perdeu votos em todo segmento heterossexual, não apenas “evangélico”, mas também católico e espírita, e mesmo ateu de centro-direita, onde uma propaganda ardilosa espalhou que, fazendo isso, Haddad considerava os transexuais como “superiores” e merecedores de “privilégios”  em relação aos heterossexuais. Afinal, as bolsas poderiam ser dadas sem problema algum após se vencer as eleições, mas porque  colocar esse item específico na propaganda eleitoral? Apenas para dar munição aos bolsonaristas?”

Minha primeira reação foi de perplexidade.

A  quantidade de absurdos reacionários concentrados  em tão poucas linhas me levou a questionar o motivo que levou um site, altamente qualificado, progressista, publicar esse  lixo direitista.

Como ex-coordenador LGBT do governo Haddad e criador do Transcidadania (primeiro programa  governamental de promoção da cidadania e dos direitos humanos das travestis, mulheres transexuais e homens trans),  dá  para imaginar a temperatura do meu sangue ao ler essa bobajada.

O autor nem disfarça. Primeiro, fala em “OS” transexuais, deliberadamente ressaltando o sexo biológico das travestis e mulheres trans, desrespeitando a identidade de gênero delas, igualzinho a qualquer fundamentalista religioso.

Depois, ele fala em “segmento heterossexual”. Como se todos homens hetero fossem preconceituosos – dos ateus a todos católicos. E admite, implicitamente, que a totalidade dos  homens evangélicos heterossexuais são homofóbicos e transfóbicos. O que está longe muito longe de ser verdade.

Aí, o cientista parece que vai denunciar as fake news bolsonaristas. Nada, ele as classifica são apenas “propaganda ardilosa”.  A arte de passar o pano atingiu novos patamares, nesse eufemismo.

O salto no raciocínio é peculiar. A culpa  pela má fé  bolsonarista, que faz a distorção da proposta política do PT  não é de Bolsonaro, é do Haddad! Por que ousou tocar nesse tema?? Era mais fácil fingir que não defende os direitos LGBTI!

(Nem vou mencionar a abissal ignorância do sujeito: ele contrapõe heterossexuais  a transexuais: o sabichão rezador não se deu ao trabalho de estudar o básico – não sabe a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero).

Entretanto, o mais grave ainda está por vir. O  cara  sugere que a melhor tática para ganhar eleições é não dizer o que se pensa. Esconder nosso  programa de esquerda – adaptar-se  ao senso comum. Tipo assim: a gente engana os eleitores e depois que ganharmos, secretamente executaremos nossas extravagâncias feministoides, gayzistas, etc.

Orgulhoso, confesso que ajudei a elaborar o tópico LGBTI do programa Haddad-2018. Reparem: nem de longe essa pauta foi o centro da nossa propaganda de massas. O evangélico-uspiano acaba apenas reproduzindo certo senso comum bolsonarista.

Pergunto: então para ganhar a eleição a esquerda deve  mimetizar o senso comum conservador? Fingir de conta que não somos pela transformação social? Nos disfarçarmos para que não saibam que somos anti-liberais, feministas, antirracistas, distributivistas, ambientalistas, a favor das liberdades sexuais?

Ao final das contas, o artigo em questão tem um mérito grande. Revela nitidamente o que muitos homens-brancos-heterossexuais-velhos  (que se reivindicam da esquerda pensam –  e não dizem).

Acontece que uma esquerda socialista que não seja feminista, libertária, antirracista, ecossocialista  não tem nenhuma condição de sobreviver no século 21.

Wake up, manos!

*Julian Rodrigues, professor e jornalista, é ativista de Direitos Humanos e da causa LGBTI.

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