Contra a superexploração do trabalho

Imagem: Marek Piwnicki
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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR & SILAS PEREIRA ALVES RAMOS*

A luta contra a escala 6×1 não é apenas por dias de descanso, mas pela recomposição da dignidade laboral. Se o capital transforma o tempo em mercadoria, a resistência deve transformá-lo em consciência de classe

1.

No segundo semestre de 2024, tomou o espaço virtual e o itinerário da Câmara dos Deputados, a proposta de Emenda Constitucional, elaborada pela deputada Erika Hilton em conjunto com o Movimento Vida Além do Trabalho e seu representante, Rick Azevedo, em torno da inconstitucionalidade da escala de trabalho do modelo 6×1.

A discussão ganhou forte ressonância na arena pública, figurando inclusive nas grandes mídias hegemônicas como O Globo, Estadão e Folha de S. Paulo. As mobilizações já têm sido construídas há meses pelo VAT, tanto no ambiente virtual, quanto nas ruas, com a realização de manifestações, panfletagens e agitação nas redes, possibilitando que parcelas expressivas da juventude trabalhadora, que até então não tinham experienciado o movimento de massas, em função do refluxo histórico sofrido pelas entidades e organizações de esquerda, se viram integradas às questões levantadas pelo VAT.

A classe trabalhadora ganha, mesmo que do ponto de vista tático, ao inserir no debate público o tema da degradação do trabalho oriunda do aprofundamento da crise do capitalismo e seus reflexos nefastos em sua qualidade de vida.

A possibilidade de um horizonte de ofensiva contra a lógica neoliberal, dado que reconstitui a relevância da busca coletiva e pelas forças da própria classe da solução de um problema ligado à condição material, já representa, por si, uma grande vitória. Lembre-se que o receituário neoliberal impõe as percepções da privatização dos conflitos e da individualização do sofrimento.

Trata-se, igualmente, de um passo importante na reconstrução da consciência de classe, vez que a pauta da redução da jornada de trabalho é um componente histórico e fundamental da luta das trabalhadoras e dos trabalhadores, da formação de suas organizações e sindicatos, das reflexões dos teóricos de esquerda, a começar pelo próprio Marx.

Em tempos de fragmentação cada vez maior da malha sindical construída no século XX, de uma ofensiva incessante do capital sobre os direitos trabalhistas e de uma luta fratricida entre os trabalhadores e trabalhadoras por empregos, mesmo que precários, e da consequente perda de identidade de classe, acompanhada de uma crise programática dos partidos e das lideranças de esquerda, o VAT surge como uma possibilidade de promover a renovação das lutas populares e a criação de uma nova agenda política, baseada na expansão de direitos à classe trabalhadora, reacendendo, inclusive, a necessária chama da utopia.

Essa disputa se caracteriza como central para o nosso tempo, seja por sua contemporaneidade, a saber, a discussão cada vez maior sobre o lugar político, social e simbólico que se convencionou ser ocupado pelo trabalho em nossos padrões de sociabilidade e os impactos psíquicos causados por essa sujeição; seja pela ligação direta com o modo pelo qual o trabalho se conformou na sociedade brasileira e em seu padrão de reprodução econômica e de geração de valor violentamente erigidos.

Quanto à contemporaneidade desta demanda e sua emergência nos tempos atuais, em que se multiplicam os diagnósticos psíquicos como depressão, ansiedade e burnout, este último possuindo uma origem e relação umbilical com a lógica de trabalho e o tempo de sujeição ao ambiente e ao itinerário laboral, que, embora tenha a sobrecarga como definição clínica, encontra suas raízes na organização do trabalho, no seu meio ambiente, nas estratégias de gestão que visam o aumento da produtividade e nas relações de poder intrínsecas à esta dinâmica.

Esse debate também se liga às características estruturais e estruturantes da formação social e da economia brasileira, isto porque formada pelo escravismo como componente embrionário da dinâmica produtiva que constituiu o Brasil, o trabalho é um elemento sempre a ser subalternizado pelas elites econômicas desta estrutura, que se manifesta hoje na superexploração do trabalho.

2.

A superexploração do trabalho, conceituada por Ruy Mauro Marini, diz respeito à forma própria pela qual se dá o processo de extração de valor nos países subdesenvolvidos – ou dependentes –, em que o trabalho é explorado de forma peculiar e digamos, mais “intensa”. Sendo assim, o mundo do trabalho, já doentio e indutor por sua própria natureza, ganha contornos ainda mais perversos.

Em primeiro lugar, porque se trata de uma exploração mais concisa, em que não se favorecem condições para a devida recomposição vital. Daí se estabelece uma primeira relação com um objeto que tem marcado os debates recentes, os prejuízos à saúde física e mental advindos das jornadas exaustivas e com pouco intervalo para um mínimo descanso.

Outro traço importante da superexploração é a remuneração abaixo do valor da força de trabalho, o que se manifesta por maneiras diversas, como um salário inferior ao mínimo existencial e o prolongamento das jornadas de trabalho, ainda mais sem a proporcionalidade pecuniária, motivos pelos quais a superexploração se liga ao maior sofrimento e ao agravamento e à perpetuação dos índices de pobreza.

A superexploração, como elemento formador da dependência, fornece um caminho para explicar porque mesmo em períodos de expressivo crescimento econômico, os trabalhadores continuam a ser submetidos a condições extenuantes e até com piora de seu padrão de vida.

O direito e as instituições, de forma ainda mais acentuada nos últimos anos, operaram no sentido de reafirmar e atualizar as estruturas de superexploração.

A subjetividade jurídica trabalhou para construir um arcabouço legal que confere um ardilosa legitimidade a esta patologia social, por meio, por exemplo, da “terceirização”; do contrato intermitente; da possibilidade de redução de direitos por negociação coletiva; do permissivo de, por ajuste individual, se instituir um banco de horas e outras formas de realização de horas extras habituais sem o pagamento correspondente; da negação do direito de greve; dos obstáculos ao acesso à justiça; e, sobretudo, pela não rejeição jurídica das mais variadas formas de burlar a aplicação de direitos trabalhistas, notadamente, a “uberização” e a “pejotização”.

Fato é que compreender no que consiste, na essência, a jornada de trabalho e, a partir disto, buscar a sua redução, é o passo necessário – e mínimo – para que se possa retomar o caminho das lutas coletivas de trabalhadores e trabalhadoras enquanto classe, no sentido da criação de novas formas e estruturas organizativas, que acompanhem as formas sociais contemporâneas, sem perder o horizonte fundamental da construção de um modelo de sociedade em que não existam a exploração do trabalho e, muito menos, a superexploração.

Basicamente, as organizações sindicais precisam superar os limites superar a divisão por categoria que, como estratégia de divisão e controle, lhe foi imposta no período do Estado Novo, para que possam, com a força coletiva da classe, buscar formas satisfatórias que imponham freio e até revertam as diversas ofensivas do capital sobre os direitos sociais dos últimos anos (lei da terceirização, reforma da previdência, contrarreforma trabalhista etc.).

Quando trabalhadores e trabalhadoras, de forma espontânea, trazem para o espaço público a contradição fundamental entre trabalho alienado e condição de vida, tem-se a demonstração nítida de que conhecem bem a sua realidade e de que compreendem que, para alterar esta realidade, só podem efetivamente contar com as próprias forças, revelando, assim, as limitações e o sentido de classe de uma democracia que pouco, ou quase nada, lhe tem fornecido substancialmente em termos de qualidade de vida.

O cerne da superação da escala 6×1 é dizer não a um modo predatório e violento de exploração do trabalho, o que permite à classe trabalhadora alçar novos e mais contundentes passos em termos de melhoria das suas condições de trabalho e de vida, assim como de reavivar o horizonte socialista.

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores) [https://amzn.to/3LLdUnz]

*Silas Pereira Alves Ramos é advogado.


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