Por Cícero Nardini Querido
Não é possível pensar a saúde desvinculada de outros processos sociais, como emprego, habitação, transporte, acesso à alimentação, prevenção e medicações.
Não deve ser segredo para mais ninguém que as doenças que afetam o ser humano recebem maior ou menor atenção da sociedade conforme os grupos que elas afetam, o impacto econômico que causam e o contexto político que as envolve. A repercussão midiática e os investimentos direcionados para pesquisa e assistência em saúde são mais norteados por esse envoltório do que por uma análise estritamente técnica e desinteressada dos impactos em morbimortalidade.
A negligência do olhar público à emergência do HIV, quando a doença era reduzida a um “câncer gay”, é evidência clara e relativamente recente. O impacto mundial persistente das doenças classificadas pela OMS como “doenças tropicais negligenciadas” (dentre as quais figuram dengue, doença de Chagas, hanseníase) não nos deixa dúvidas. Surpreendentemente fora dessa lista, a tuberculose causa mais de 1 milhão de mortes no mundo, todos os anos, segundo dados da mesma OMS.
Nos últimos meses, toda a atenção pública se voltou para a emergência da Covid-19. A doença causada pelo novo coronavírus tem de fato imenso potencial de transmissibilidade, além de letalidade aparentemente superior às demais infecções respiratórias comuns. Por sua potencial gravidade e sobretudo por seu impacto nos sistemas de saúde no mundo todo, não pode ser tratada com negligência: nem por parte das autoridades de saúde, e nem por cada um de nós, do ponto de vista individual.
Abordar a questão de forma cínica e irresponsável, como faz o presidente brasileiro, é mais uma expressão de seu discurso de ódio e da necropolítica que o mesmo cultiva, em contexto de pandemia ou fora dela.
Entretanto, num contexto em que muitas questões ainda não foram respondidas, inclusive pelos maiores estudiosos do tema, é fundamental manter um olhar crítico para as medidas em implementação. Não temos razão para acreditar que, enquanto a epidemia acontece, as pessoas deixarão de morrer ou sofrer por outros problemas de saúde, como doenças cardiovasculares, insuficiência renal crônica, neoplasias etc. Cabe perguntar se um direcionamento intensivo de leitos, recursos e profissionais para atendimento unicamente de Covid-19 não pode tornar precária a assistência às demais condições de saúde de nossa população.
Há grande vigilância sobre os números da Covid-19, e grande interesse, por parte dos governantes, em ostentar publicamente resultados mais favoráveis. Isso não pode ocorrer, no entanto, às custas de prejuízo para a saúde dos atuais “invisíveis”, ferindo princípios básicos de nosso sistema de saúde, como o da integralidade do cuidado.
Ademais, não é possível pensar a saúde desvinculada de outros processos sociais, como emprego, habitação, transporte e acesso à alimentação e medicações. Fazê-lo seria reduzir “saúde” a um recorte muito específico e enviesado da estatística, assumindo pretensamente que todos serão impactados por essas medidas da mesma forma, em um país que é absolutamente desigual.
O debate fundamental que se impõe não é o de saúde “versus” economia como por alguns colocado, mas uma discussão a se travar fundamentalmente dentro do campo da saúde, em sua mais abrangente concepção. A única certeza, até o presente momento, é a de que apenas um sistema de saúde universal e devidamente financiado pode mitigar os impactos de uma epidemia como a atual.
Em meio à tanta incerteza, lavem as mãos e defendam (todo) o SUS.
*Cícero Nardini Querido é especialista em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e médico assistente do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP)