Cultura como tradição

Jackson Pollock, Untitled, 1953–54
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Por ALFREDO BOSI*

Palestra na série da Funarte “Cultura brasileira: tradição contradição”

“Cultura como tradição” é um tema que, à primeira vista, parece o próprio óbvio. Evidentemente, quando se pensa em cultura, pensa-se em um processo que vem sendo trabalhado há muitos anos, há séculos, e que se recebe e que se transmite.

Gostaria, inicialmente, de relatar uma experiência pessoal que tem muito a ver com o tema. Há vinte e tantos anos eu era estudante em uma faculdade italiana, na Universidade de Florença. Tinha recebido uma bolsa para estudar Estética na Faculdade de Letras de Florença e já havia terminado o curso de Letras Neolatinas na USP. Florença é uma cidade única; naturalmente, todos sabem que é o grande centro da arte renascentista. Mas, naquele tempo, pelo menos do ponto de vista do conforto doméstico, e do que se pode aferir pelos nossos padrões médios, mais próximos do estilo norte-americano, Florença era uma cidade muito desconfortável.

Eu morava no sótão de uma casa de seis andares que não tinha elevador. A casa servira desde o século XVII como albergue de criados, cavalariços dos condes Serristori. Era uma habitação muito antiga, e uma coisa prosaica como, por exemplo, um chuveiro, não existia nessa casa. Assim, quem tivesse o hábito um tanto estranho e perturbador de tomar banho com frequência, deveria palmilhar dez ou doze quarteirões e procurar na estação de trem do centro um lugar de banhos públicos. O que era um pouco penoso, sobretudo no inverno. Então decidi que, apesar dos meus proventos serem muito parcos, devia comprar um chuveiro elétrico.

A dona da casa era uma viúva de romance, avarentíssima, e via com intranquilidade esses meus hábitos. Imagine quanta água eu iria gastar… Ela temia também que a instalação daquela engenhoca, que ela mal conhecia, fosse danificar o seu apartamento. Vamos que as águas que corressem do banho inundassem o apartamento! Porque no chão, ladrilhado com muita arte, não havia lugar para escoar as águas, não havia ralo, pois chuveiro não estava previsto por aqueles que construíram a casa há quatrocentos anos. Vi que precisava tomar alguma providência prática. Mas o que eu poderia fazer? Ela me aconselhou o seguinte: que eu comprasse uma bacia plástica grande, um bacião, e me colocasse dentro dessa tina para tomar banho, mas tomasse muito cuidado para não respingar fora. Terminado o banho, eu deveria despejar as águas pelo telhado do sótão. Mas como fatalmente iria molhar as adjacências do bacião, ela me deu um saco de serragem, que eu deveria espalhar para secar o chão. Depois, eu pegaria toda a serragem, amontoaria em um pano e a poria para secar ao sol (se houvesse) no telhado. Era uma operação assaz complicada, e até um brasileiro fanático por tomar banho desanimava. Seria mais fácil, realmente, palmilhar os dez quarteirões até o centro.

Mas o que me chamou a atenção, embora isso tenha acontecido há 25 anos, foi o que veio depois. De fato, procurei uma loja de artigos domésticos e adquiri o maior bacião que havia lá, uma tina enorme de plástico. Todo contente, voltei para casa com aquele embrulho muito incômodo. No apartamento mostrei o pacote para a viúva. Ela me olhou com um olhar severo. Senti que fizera alguma coisa errada. Ela me perguntou: “Foi o senhor que carregou esse bacião da loja até aqui?” Respondi que sim, e ela me disse uma frase que poderia servir de lema para esta palestra. Ela me olhou com uma mistura de espanto e, talvez, uma ponta de desdém, e me disse: “O senhor tem cultura, mas é muito democrático.” Isto porque eu tinha carregado a bacia pela rua afora. Ela achou que eu, sendo uma pessoa culta, deveria pertencer a um certo grupo humano que não carregava bacião de plástico na rua. Ela fazia essa distinção.

No momento estranhei, achei até que ela estava dizendo um contra-senso, que as duas partes da proposição, ou seja, as duas orações que ela havia emitido, eram contraditórias, criavam quase um paradoxo. A primeira parte era esta: “O senhor tem cultura”, e a segunda era: “mas é muito democrático.” Quer dizer, eu esperaria normalmente que uma ideia se seguisse à outra, que houvesse em vez de um mas, um portanto, um logo, que fosse uma conclusão da primeira parte. “O senhor tem cultura, logo deve ser democrático.” Mas realmente essa frase que me pareceu estranha, tanto que eu não a esqueci mais, e que tive muita dificuldade de discutir naquela hora, mantinha atrás de si séculos de uma ideologia conservadora, de classes sociais muito diferenciadas, de estratos culturais também igualmente diversificados. Percebi que eu estava diante de uma pessoa que espontaneamente exprimia uma lógica de classe bastante forte.

Mas acho que vale a pena raciocinar. O que ela dizia na sua espontaneidade, no fundo, era isso: A cultura é alguma coisa que a gente tem. Porque ela disse: “O senhor tem cultura”. Então a cultura é alguma coisa que a gente tem, como se possui uma casa, um automóvel, enfim, um bem, um bem de consumo, um bem de circulação, alguma coisa que se pode obter, que se pode comprar e, finalmente, ser proprietário dela. E, depois, percebi que esse ter cultura, ou seja, esta soma de objetos culturais, também dava direito a certos privilégios, diferentes dos hábitos das demais pessoas. Quer dizer, as pessoas que tinham cultura deviam exibir certos comportamentos, e deveriam ser poupadas de certas ações, de certos trabalhos mais penosos, mais pesados, que deveriam ser destinados às pessoas que não tinham cultura. Realmente, a cultura aparecia como uma divisão.

Essa primeira conclusão nos leva imediatamente a situar a cultura na sociedade de classes como uma mercadoria, como algo que se pode, obter, ou, então, se recuarmos um pouco até uma sociedade pré-capitalista, ou capitalista atrasada, podemos dizer que cultura é também uma coisa que se herda, uma herança. Os dois conceitos estão mais ou menos próximos. O que ela dizia na sua frase espontânea era isto: a cultura é um bem, um bem muito especial, um bem que se aproxima dos bens de luxo, dos bens supérfluos, e só as pessoas ricas, só os grupos de poder aquisitivo que dispõem de lazer podem fruir desse bem. E mais ainda: a cultura dá à pessoa um halo, uma auréola de diferença. Ela é diferente, alguma coisa como, na sociedade do Antigo Regime, era a aristocracia.

Podemos dizer que, depois da Revolução Industrial, a aristocracia não existe mais, não existe mais a nobreza de sangue, não existe mais a nobreza de privilégio. Podemos até aceitar isto como um fato histórico consumado pela revolução burguesa. Mas a cultura, ou uma determinada concepção de cultura, acabou substituindo a ideia de aristocracia na sociedade capitalista, só potencialmente democrática. A cultura serve como divisor de águas: há pessoas que a têm e há pessoas que não a têm. Às vezes, isso parece uma fatalidade, como ser ou não ser nobre, é alguma coisa que vem, é um bem de raiz, é um bem de família. A esta visão de cultura eu chamaria de reificada, isto é, uma visão que considera a cultura como um conjunto de coisas. Ser culto, ter cultura, é ter acesso a livros, ter acesso a discos, ter acesso a aparelhos de som muito requintados, que são caros, exigem espaços.

A própria arquitetura passa a funcionar de acordo com essas novas necessidades. Quem tem cultura e precisa de um aparelho de som grande, vai precisar também de uma sala especial na sua casa. O que acontece? A arquitetura começa a moldar-se de acordo com essas necessidades específicas, o que é o contrário da ideia de pobreza. Porque a arquitetura da pobreza é uma arquitetura multifuncional. Numa casa pobre, o mesmo espaço pode servir para comer, para dormir, para trabalhar; enfim, a plurifunção do espaço, a sua flexibilidade, é própria de uma cultura de pobreza. Mas à medida de que se quer imitar o estilo rico de viver, ou que se é efetivamente rico, as funções têm que ficar drasticamente separadas. Existirá o espaço da cozinha, o espaço da sala, o espaço da sala de jantar, o espaço da sala de estar, o espaço do livro, o espaço do disco; e mais, o espaço da televisão, o espaço da conversa informal. E não raro o espaço pelo espaço. Os espaços serão multiplicados, diferenciados e não haverá tolerância para o convívio das funções.

Eu acredito que deve estar no subconsciente linguístico e social dos povos que vieram de uma estratificação colonial, ou então de uma estratificação pré-capitalista (com nobreza e povo muito diferenciados), deve estar no subconsciente dessas formações a ideia de que a cultura tem que ser vista em si, isolada e reificada. Daí, quem sabe, a ideia de uma Secretaria da Cultura, um Ministério da Cultura, um Palácio da Cultura. O palácio é o lugar onde a cultura deve ser vista, apreciada em si, elogiada, sem que tenha uma relação direta com o cotidiano, aliás sem dever ter qualquer relação direta com o cotidiano, porque este não é, de fato, considerado como cultura. Verifica-se, por esse conceito, que a cultura não pode ser democrática: O senhor é muito culto, porém muito democrático.

Pelo conceito reificante as duas instâncias tornam-se exclusivas.

Se nós queremos, ao contrário, construir uma sociedade democrática, acho que, nesse particular, devemos repensar a fundo o conceito de cultura e destruir em nosso espírito ou, pelo menos, relativizar fortemente a ideia de que a cultura é uma soma de objetos. Porque os objetos, considerados “em si”, os quadros, os livros, as estátuas, ocupam um determinado lugar no espaço, eles são sempre o outro. Por mais que eu contemple este quadro, na medida em que eu o considere como um fato, como um objeto fora de mim e fora do meu convívio, eu olharei para ele um pouco como um crente olha para o fetiche. É a ideia do fetichismo. É alguma coisa que eu não entendo, não vou entender nunca, e aliás é até muito bom que eu não entenda, porque isso dá ao objeto um mistério, um fascínio, uma magia, que se distancia de mim e faz com que eu o reverencie, como alguma coisa que eu não vá nunca alcançar.

Na sociedade de massas em que nós vivemos, isto ocorre a todo momento. Não que as pessoas estejam sempre diante de obras de arte, elas estão diante de obras da tecnologia, das obras que a indústria multiplica. E o fato de as pessoas não participarem da construção desses objetos, porque são obra de uma indústria muito especializada, o fato de elas se servirem e olharem esses objetos, comprarem, venderem, mas não serem capazes de entender o seu mecanismo interno, é alienante, profundamente alienante. Isto deveria produzir em nós um certo sentimento de culpabilidade. Vou dar um exemplo: eu estou com um relógio que me foi dado por uma pessoa que me é muito cara. Esse relógio é bonito. Quando olho para ele sinto, justamente porque estou convicto, cada vez mais, de que a cultura é participação, sinto um vago sentimento de culpa. Por quê? Porque esse relógio marca não só as horas, os minutos, o dia, o mês: enfim, não só o que os relógios marcam, mas ele marca as fases da Lua. Há uma Lua nele, contra um céu estrelado, que caminha pelo mostrador. Num certo momento quando é lua nova, ela desaparece, depois volta no crescente, chega ao esplendor da lua cheia e vai minguando novamente, até desaparecer sob o mostrador.

Por que fico com sentimento de culpa? Eu devia ficar simplesmente encantado com um objeto, assim, tão rico, um objeto tão belo, um objeto que tem dentro de si tanta ciência, tanta precisão, tanta técnica, que mistura astronomia com relojoaria. Mas é por isso mesmo que eu sinto algum vexame porque não entendo como é isso possível, não compreendo como a máquina do mundo inteiro pode estar dentro de um relógio. Imagino que deve haver uma série de engenhos que de sete em sete dias movem aquela lua, e o fazem de maneira tão sutil que a Lua, diariamente, percorre uma parte desse céu. Mas é uma coisa que transcende muito o meu conhecimento, talvez porque eu seja uma pessoa formada em Literatura, em Ciências Humanas, e não tenha um conhecimento científico mais aprofundado.

Imagino que esta seja uma situação típica: milhares de nós, milhões de nós que somos da sociedade de massas, estamos a todo momento lidando com objetos que significam o fruto de uma culfura refinada, de séculos, e não os entendemos. Mas colocamos o relógio no pulso com a maior facilidade, olhamos, compramos, vendemos, temos com esses objetos uma relação de uso, de consumo, de desgaste; provavelmente, um dia vamos esquecer esses objetos, vamos perdê-los e somos, por assim dizer, indignos de usar aquilo que não entendemos. Este microfone que estou usando, um computador que nós apertamos, e de repente tudo se ilumina, é um milagre. Não era possível para o homem pré-histórico, para o homem da Idade Média, para o homem da Idade Moderna, para o homem até do século XIX, seria um milagre espantoso, e nós o realizamos a todo momento, tudo isso sem a menor comoção, só ficamos irritados quando falta luz. Aí telefonamos para reclamar que está faltando luz. Parece que é um dever que os outros nos forneçam esse milagre. São realmente poucos os que podem entender todo o mecanismo que vem desde as águas da represa até os fios da nossa casa e produz para nós o fenômeno da luz.

Digo que todos esses exemplos ilustram a ideia de que ter cultura é possuir uma alta soma de objetos da civilização. É uma ideia (ou uma atitude) que nos barbariza; no fundo, somos bárbaros no sentido de que usamos os bens mas não conseguimos pensá-los. No entanto, cultura é vida pensada. O projeto de cultura que gostaríamos que vingasse numa sociedade democrática é aquele que desloca o conceito de cultura e mesmo o conceito de tradição. Em vez de tratar a cultura como uma soma de coisas desfrutáveis, coisas de consumo, deveríamos pensar a cultura como o fruto de um trabalho. Deslocar a ideia de mercadoria a ser exibida para a ideia de trabalho a ser empreendido. Acho que é essa a ideia-chave, o projeto que eu diria recuperador: uma concepção que resgatasse o caráter mercantil, exibido e alienante que a cultura assumiu e vem assumindo na sociedade de classes.

A cultura é um processo. A palavra cultura traz em si uma raiz latina; vem do verbo colo, que significava “cultivar a terra”. No caso de Roma, como se tratava de uma civilização de raízes agrárias, os termos que se referiam à cultura intelectual avançada ficaram ligados ainda a toda uma metaforização, a todo um imaginário da terra. Diferentemente dos gregos, cuja palavra que mais se aproxima de cultura é paideia: aquilo que se ensina à criança. Paidós, pedagogia, pedagogo. O conceito grego de cultura está voltado para a criança, para a alma da criança que deve ser trabalhada até transformar-se em adulto. É um conceito qué nos parece mais humanizante. No caso dos romanos, não. O conceito romano é prático, refere-se a alguma coisa que se trabalha fora de nós, a terra. É o cultivo do solo (colo) do qual saem as formas participiais do passado (cultus) e do futuro (culturus = aquilo que se vai cultivar).

Daí, as três dimensões (1) cultivo; (2) culto; (3) cultura. No espírito da língua romana, a cultura está ligada a um trabalho duro, á um trabalho de conquista, a um trabalho de vitória sobre a natureza às vezes brutal porque a sua primeira fase consiste no domínio da terra. Pode-se dizer hoje que se trata de uma visão o seu tanto “repressiva” da cultura, pela qual a natureza tem que ser domada, domesticada; assim como “educação” quer dizer “ato de puxar para cima o que está lá em baixo”, ou seja, fazer um esforço de arrancar dos instintos uma força que produza algo de mais alto.

Mas qualquer consideração que se faça implica, no fundo, a ideia de trabalho: quer na linha grega, que nos é hoje mais simpática, pois liga cultura com criança, cultura com pessoa; quer do ponto de vista romano, em que a cultura é comparada à ação de limpar a terra, depois semear, depois regar, depois podar, principalmente podar. Se a gente deixa os galhos, a planta não dá frutos, fica uma coisa selvagem espinhosa, por isso é preciso podar, cortar para sobrarem só os troncos e algumas varas mestras de onde vão sair as folhas, as flores e os frutos. Mas tanto um conceito quanto o outro trazem em si a ideia de um processo: a cultura é sempre um resultado que se conquista. Eu devo trabalhar os meus pensamentos para, eventualmente, escrever. Isso é cultura.

O fato de eu comprar um livro e – isso acontece frequentemente – não o ler, mas comprá-lo para tê-lo e poder olhá-lo e segurá-lo na mão ou então de ter um disco, ter um quadro, enfim tudo aquilo que objetiva a cultura, não tem nenhum sentido para esta concepção, que eu chamaria de ergótica, usando o étimo ergon (grego), que quer-dizer ação e trabalho. Concepção ergótica da cultura: a cultura como ação e trabalho. Eu considero isso fundamental porque desfaz aquele primeiro conceito, que era, aliás, o conceito da dona da casa que me julgou excessivamente democrático para ter cultura. Se a cultura é uma soma de objetos que as pessoas têm ou herdam, as pessoas ricas a têm e as pessoas pobres não a têm. A cultura dos pobres seria um nada, eles precisariam obter aqueles bens para serem cultos. O que é oposto à ideia de trabalho, porque, nesta, todos têm acesso à cultura: não se trata mais de um problema de classe, o ser humano será culto se ele trabalhar; e é a partir do trabalho que se formará a cultura. É o processo e não a aquisição do objeto final que interessa.

Acredito que essa visão ergótica e processual de cultura nos pode ajudar muito. Em primeiro lugar, do ponto de vista ideológico, passamos a dar importância aos momentos do processo produtivo. É a produção (enquanto arte) que forma o homem culto, e não o consumo dos símbolos, que, naturalmente, fará parte do processo, mas não enquanto um absoluto. E em segundo lugar, de um ponto de vista educacional mais universal, em vez de pensarmos em vender mercadorias culturais, pensaremos em estudar e realizar obras. Obra significa exatamente trabalho, enquanto processo e enquanto resultado. Uma casa está em obras; terminada, é uma obra. De opus deriva o verbo operar; de operar, operário. Obra é o que o operário faz. Fugimos, assim, dos laços e rompemos os grilhões de uma concepção estática e burguesa de cultura. E começamos a refletir sobre ideias que podem trazer consequências profundas, principalmente para a educação.

Vou dar alguns exemplos para particularizar essas ideias, procurando mostrar a você como é que entendo a chamada “aquisição do conhecimento”. São exemplos bastante simples, e muitos deles tirados de minha experiência.

Hoje se fala muito em ecologia. Ecologia, uma palavra de origem grega que quer dizer “conhecimento da própria casa”. Porque eco vem de Oikos, “casa”. O mundo é a nossa casa, a ecologia é a ciência que estuda a nossa casa. É uma coisa muito simples no fundo, no entanto tão importante pelo que a gente vê de devastação da natureza. Como é que se adquire uma cultura ecológica? Existem centenas de livros sobre ecologia, existem livros desde o curso primário até a universidade, desde conselhos práticos até uma ciência extremamente complexa que une a biologia com a geografia e com outras ciências humanas. Existe na verdade uma ciência chamada Ecologia.

Agora, quem é que tem cultura ecológica? É a pessoa que lê esses livros? Esses livros podem ser lidos, nós podemos escolher uma boa bibliografia e ler estes livros. E depois de lidos vamos passar para outra ciência, ou outra atividade, e aquilo fica como uma matéria morta. Porque nós supusemos que conhecer ecologia era possuir aqueles livros. Mas não é verdade. A Ecologia, como qualquer outra ciência, é um conjunto de obras dos homens. Nós temos que ser operários, Se nós formos operários do conhecimento ecológico, toda aquela tradição cultural que já existe há tantos anos e que formou esta ciência, será por nós assimilada e a construiremos como uma nova ciência. Veja o que aconteceu na cidade onde eu moro: vivo numa cidade próxima de São Paulo, que pertence à metrópole, à Grande São Paulo, uma cidade que se chama Cotia.

Essa cidade, como todas as outras da periferia de São Paulo e também da periferia do Rio de Janeiro, está terrivelmente ameaçada pela poluição, pela destruição da natureza, pela invasão de fábricas altamente tóxicas. E o que as fábricas querem é exatamente isso. O que desejam os industriais? Ficar perto do centro, perto do Rio, perto de São Paulo, e à beira da estrada, porque aí é mais fácil levar os produtos e também aí chegam mais facilmente os operários que moram nas cidades-dormitório. Por isso, as cidades que se comunicam com o eixo, com o Grande Rio ou a Grande São Paulo, estão ameaçadas pela mais terrível poluição. Mas o que fazer?

As pessoas que moram na periferia já fugiram da cidade grande, muitas delas querendo evitar a poluição, e foram cair no quintal da metrópole. Então elas começam a lutar; e para lutar é preciso trabalhar, é preciso estudar.[1] Elas começam a ver, por exemplo, que uma das características fundamentais das cidades periféricas é que elas não têm nenhuma lei de zoneamento. E por que não existe lei de zoneamento? O cidadão vai à Prefeitura e percebe que o prefeito não quer fazer uma lei de zoneamento. Pois, com a lei, ele estaria impedido de instalar fábricas onde os industriais seus amigos querem. Mas ele também deseja que muitas fábricas se instalem, porque rendem impostos. Por isso, ele e os vereadores seus aliados e clientes irão sabotar sistematicamente aquele grupo de cidadãos impertinentes chamados ecologistas inimigos do progresso, que afinal estão cobrando o que ele não quer fazer.

Mais tarde, os cidadãos aprendem que precisam ir falar também com autoridades estaduais e vão bater às portas do Secretário dos Negócios Metropolitanos. É uma pessoa muito importante, que não entende nada de ecologia, mas que afinal está lá e recebe bem os cidadãos numa sala cheia de poltronas e almofadas. Os militantes, embora já escolados, se sentem meio coagidos lá dentro por causa da pompa e da oratória com que são recebidos, mas depois saem com as mãos vazias. O Secretário não pensou no assunto, mas promete pensar; na verdade, ele não quer “mexer com os prefeitos”. Vai ver, estes poderão votar nele na próxima disputa à candidatura de governador do Estado. Prefeito costuma ser presidente do diretório municipal do partido, e ele vai agora contrariar um prefeito por causa desse grupo de ecologistas importunes? Depois, esses mesmos cidadãos se põem a percorrer todos os órgãos técnicos e consultivos do Estado (Sabesp, Cetesb, Consema…) e começam a entender profundamente de administração e, ao mesmo tempo, vão sabendo quais são as indústrias que poluem de fato, quais as que não poluem, e vão aprender leis e portarias, e vão falar com os deputados de todos os partidos.

Em seis meses eles estão peritos em ecologia e adquirem um conhecimento político do tema, mas começam também a perceber com grande espanto que as pessoas mais competentes, mais técnicas, não sentem os problemas específicos tanto quanto eles. Ou se os entendem cientificamente, não costumam fazer conexão entre os seus conhecimentos e a ação política; vice-versa, os políticos não fazem nenhuma conexão com os estudiosos. Eles começam a perceber o quê? O absurdo do mundo, o que já é alguma coisa. As coisas do mundo burocrático estão desvinculadas, ninguém tem nada com ninguém (ou se tem, prefere não dizer que tem), cada um está postado atrás do seu guichê potencialmente irritado com as pessoas que vão lá incomodar o “dolce farniente” das repartições. Uma bela lição. Mas não é para desesperar.

Em geral, quando começamos a entender mais fundamente as coisas ficamos desesperados, mas a política é uma arte que pratica a virtude da esperança. Os militantes percebem afinal que o que eles estão fazendo é cultura: eles estão vinculando intimamente duas instâncias tão diversas que parecem até disparatadas: as leis do Estado e o conhecimento do meio ambiente. Eles fazem a união e produzem cultura.

Se não houver militantes assim, os livros de ecologia vão ficar na estante e vão continuar perfeitamente inúteis. Você pode comprar cinco metros encadernados de ecologia e exibi-los na sua casa: “Veja, eu gosto muito de ecologia! A minha paixão é a ecologia, eu sou louco pela natureza, não derrubo nem uma árvore!” Mas aquele conhecimento todo será um conhecimento que John Dewey chamava de “inerte”. Uma expressão muito feliz. “A escola costuma transmitir ideias inertes.” Inertes quer dizer que não agem. Ora, isto é cultura? Inicialmente nós pensaríamos que sim, que a cultura são aqueles livros. Mas a cultura não são esses objetos, a cultura é o trabalho feito pelas pessoas que querem realmente conhecer por dentro os mecanismos, ou da Natureza ou do Estado; no caso, as duas coisas acabam ficando juntas.

Outro exemplo: quando se fala em “cultura popular”, parece que nós estamos no coração da tradição. Muitas pessoas pensaram que eu ia fazer uma palestra sobre folclore: “O professor Bosi vai fazer uma palestra sobre ‘Cultura como Tradição’. Que será que ele vai falar?”. “Ele vai falar sobre folclore; provavelmente, cultura popular”, porque não existe nenhuma cultura tão arraigadamente tradicional quanto a cultura popular. A palavra folklore em inglês antigo significa “discurso do povo”, “sabedoria do povo”, “conhecimento do povo”: folclore e cultura popular são palavras sinônimas. Nós usamos a palavra inglesa, mas se quiséssemos dizer “conhecimento que o povo tem”, conhecimento popular no sentido objetivo, estaríamos dizendo a mesma coisa. O que é saber folclore?

Este é um problema importante agora. Há secretarias de cultura, ministérios de cultura, palácios de cultura; enfim, o Estado, como aparelho de Estado, pensa em conservá-lo. Existe a Fundaçao Pró-Memória, uma Fundação que trabalha justamente na restauração de obras antigas, na sua conservação. Existem coisas a serem conservadas, não só objetos como também cerimônias, cultos, festas, músicas, tudo isso é cultura popular. Se alguém me perguntasse: “O quê que o Estado deve fazer com a cultura popular? Oh! Que grave responsabilidade! O que o Estado deve fazer com essa cultura que está aí, deteriorada, corrompida pelas comunicações de massa? O que fazer com isso?” O primeiro pensamento que me ocorre é drástico: não fazer nada! “Por favor, não mexa com o que não é da sua conta!” A primeira ideia que me ocorreria seria esta: o Estado é uma estrutura tão diferente, tão heterogênea, tão exterior à cultura popular que realmente o melhor é não forçar contactos indesejados.

O meu mestre em folclore é o professor Oswaldo Elias Xidieh, que vive em Marília, há muito tempo afastado da rotina universitária. Ele me ensinou, e eu acredito, porque os exemplos que ele me deu foram probantes: a cultura popular não morre, não necessita de injeções aqui, injeções lá. Se ela for, de fato popular, enquanto existir povo ela não vai morrer. Cultura popular é a cultura que o povo faz no seu cotidiano e nas condições em que ele a pode fazer.

As pessoas, preocupadas com as instituições em si mesmas, se queixam: “Ah! Na minha terra, no interior, havia certas festas de rua, mas agora está tudo morrendo. O que vamos fazer?” Mas Xidieh não se impressiona com a mudança das aparências porque sabe da continuidade do processo no dia-a-dia. Vivendo a experiência popular até o fundo, foi a candomblés, foi à umbanda, estreitou relações amigas com mães-de-santo, conseguiu até mil pedidos na umbanda, e fez com eles uma belíssima análise sociológica. Em suma, ele me ensinou a não me preocupar em “conservar a cultura popular”, em si mesma, mas em conservar o povo. Entenda-se: o importante, o fundamental aqui, são os agentes culturais. Se o sistema social é democrático, se o povo vive em condições – digamos “razoáveis” – de sobrevivência, ele próprio saberá gerir essas condições para que a sua cultura seja conservada. Não pela cultura em si, mas enquanto expressão de comunidade, de grupos, de indivíduos-em-grupo. Não faz sentido querer absolutizar o folclore, como tampouco é salutar absolutizar os objetos da chamada “alta cultura”.

Só pude entender essas ideias mais a fundo, por dentro, quando, na mesma cidade de periferia em que vivo, fui a uma festa de São João em um bairro caipira. Há alguns bairros caipiras em redor de São Paulo. Não pensem que para conhecer um bairro caipira seja preciso tomar um avião e voar até Araçatuba, ou ir até o Paraná. A cultura caipira mais arcaica não está longe da cidade de São Paulo. É um fenômeno que já foi bem estudado e que se explica: ao redor da vila de São Paulo os jesuítas iam refugiar-se dos seus majores inimigos, uns delinquentes também conhecidos pelo nome de “bandeirantes”, os quais queriam aprisionar os índios e viviam sempre às turras com os padres. Quando se chegava a um impasse, a Câmara de São Paulo decretava a expulsão dos jesuítas. Escorraçados da Vila de São Paulo de Piratininga, foco das bandeiras, eles iam para os aldeamentos próximos. Um se chamava aldeamento dos Pinheiros, que hoje é o bairro de Pinheiros, em São Paulo. Outros eram Embu, Cotia e São Miguel Paulista.

São cidades que estão em torno de São Paulo ainda hoje, algumas delas eram aldeamentos jesuíticos, onde se conserva aqui e lá, ainda, uma pracinha, uma igrejinha colonial anterior ao Barroco. Os jesuítas estavam lá, domesticando os índios – não quero dizer que eles queriam a liberdade absoluta dos nativos: eles eram uma alternativa para o índio que, ou era escravizado pelo bandeirante e vendido para as fazendas de açúcar, para os engenhos da Bahia, ou ficava aldeado com os jesuítas. E formaram-se núcleos de cultura indígena que, com o tempo, se transformaram em núcleos de cultura cabocla, caipira. A chamada cultura caipira, paulista, mais tradicional remonta àquele tempo.

Mas voltemos à festa de São João para a qual fui convidado; era uma festa de catolicismo rústico. Uma festa de catolicismo rústico é uma festa sem padre, porque os padres pertencem a uma faixa do catolicismo culto; evidentemente, são pessoas que estudam, são homens que pertencem a uma determinada cultura letrada. Embora se aproximem do povo iletrado, eles não participam diretamente do que seria o catolicismo rústico que a Igreja incorpora, sempre que pode. Mas alguma coisa fica muito renitente. Eu percebi nesta festa de São João que não havia padre. Havia um capelão. Lá pelas dez da noite o capelão apareceu. Ele não era padre, era um leigo e não tinha recebido a menor educação religiosa formal. Eu perguntei: “O senhor vai agora começar as rezas?” Eu pensava que ele fosse puxar rezas de Igreja, mas ele disse: “Ah! São rezas que eu aprendi com meu pai que também era capelão em Sorocaba, que aprendeu com meu avô que também era capelão em Arariguama, no século XIX.

Então percebi que capelão era uma função religiosa leiga que tinha por finalidade puxar as orações. Começou com algumas orações cristãs tradicionais: Ave-Maria, Pai-Nosso, e chegou a hora em que ele rezou uma oração que hoje se reza pouco, a Salve Rainha, uma oração antiga, medieval. E quando ele começou a rezar eu fiquei estarrecido, vi aqueles caipiras de pé no chão, todos bem alterados com uma dose de pinga, gente que eu conhecia como pedreiros nas construções daquele bairro de classe média, que estava invadindo os terrenos da velha cultura caipira. Eu conhecia aquelas pessoas como empregadas domésticas, pedreiros e ajudantes de obras.

A impressão que se tinha é que eles não tinham cultura mais nenhuma e, quando muito, ouviam rádio de pilha. Porque ouviam rádio de pilha, a cultura deles era a cultura de massa. Eles ouviam rádios de pilha, gostavam de Roberto Carlos. E por que eles não teriam o direito de ouvir rádio de pilha e gostar de Roberto Carlos? Mas eu pensava que fosse só isso. E não era. Quando o capelão começou a cantar a Salve Rainha, eu fiquei atônito: ele rezava em latim, não só rezava como cantava. E cantava de uma maneira muito bela. Porque a letra era em latim, mas a música era um samba rural paulista, um samba rural muito bem entoado. Depois da Salve Rainha, ele começou uma ladainha também em latim.

A ladainha de Nossa Senhora é muito longa e, naturalmente, toda feita de invocações. Algumas muito belas: rosa mística, torre de marfim; em latim: rosa mística, turris eburnea. E o povo responde: “ora pro nobis“. Ele cantava e uma senhora negra ia à frente de mais ou menos umas trinta pessoas. Todos cantavam, todos cantavam em latim. A senhora ia à frente entoando diferentemente conforme a invocação. Quando se dizia, por exemplo, “torre de marfim”, ela levantava os braços: “torre zebúrnea“.[2] E eram evoluções muito solenes, muito belas, uma para cada invocação. E foi assim que eu assisti a esse fenômeno de catolicismo rústico. Não era candomblé, não era macumba, não era um culto africano. O nosso caboclo paulista, pelo menos até pouco tempo, não conhecia essas formas afro-brasileiras. Ele conhecia sobretudo o catolicismo rústico, que herdou dos portugueses e, de alguma maneira, simplificado, adaptado pelos jesuítas.

Eu estava diante de um fenômeno autêntico e extraordinário de cultura como tradição e cultura como obra, porque aquilo era trabalhado e vivenciado, naturalmente de maneira cíclica, em toda festa de São João. Mas o meu espanto naquela noite parecia que não ia acabar tão cedo porque, depois disto, eles foram lavar o santo. Havia um arroio, um regato no fundo do loteamento, eu nunca tinha reparado, era o riozinho deles. Este regato servia para a lavagem do santo; no caso, São João. Eles foram em procissão e eu fui atrás. Vi que a pessoa incumbida de levar o santo até as águas estava com as mãos estendidas, as mãos espalmadas, mas vazias. E assim foi até a beira do regato. Ela se debruçou sobre o regato, banhou as mãos vazias, levantou-se, sempre cantando uma série de hinos de procissões muito antigos. Depois voltaram. Só depois de eu perguntar é que me disseram que haviam roubado o São João da capela. Mas isso não quer dizer nada, porque a cultura popular não é fetichista, ela não lida com coisas, mas com significados, e os significados estão dentro do espírito. Tanto ela lida com o significado que se lavou o santo sem o santo. Uma lavagem metafísica, mas que no entanto foi feita com o mesmo fervor e os mesmos cantos, nada se alterou. Digamos então que algum curioso, antropólogo, estudioso de artes populares, vá lá flagrar esse momento e grave aquela melodia, que era realmente de uma grande beleza, cheia de descantes finais, emotivos, subidas e descidas de voz, como só realmente um improvisador é capaz de fazer; ou digamos que alguém dotado de gosto plástico quisesse fotografar todos aqueles movimentos, a lavagem do santo sem santo; ou que algum cineasta surrealista dissesse: “Vamos ver como é que se lava um santo feito de ar”.

Tudo isso viria para nós aqui, e eu poderia ir até o museu de arte em São Paulo, numa noite de tédio: “Vamos assistir a esse fenômeno de cultura popular”. Eu acho que seria realmente, no mínimo, uma profanação, ou um ato de consumo, a gente iria ver aquelas coisas, não ia significar nada. Porque a cultura se constrói fazendo; para eles, a festa era cheia de sentido. Não que a gente esteja impedido por uma barreira de classe social de ver as coisas, mas é um ver muito diferente do participar. É um ver que não apreende certos significados de base. Mas às vezes pode acontecer uma fusão.

Vou dar outro exemplo. Na aldeia de Carapicuíba, que é também próxima de São Paulo, no dia três de maio, há a festa de Santa Cruz uma das festas mais tradicionais, mais antigas, mais raras do folclore brasileiro. É no dia três de maio, porque antigamente se pensava que fosse o dia do descobrimento do Brasil, e nesta aldeia de Carapicuíba há uma família que há anos e anos faz a festa de Santa Cruz. Eu moro relativamente perto e vou assistir sempre a essa festa. Eles plantam uma cruz na pracinha, que é uma pracinha do século XVI, e, depois, alguns tocadores de viola e de um instrumento muito estranho que parece uma zabumba tocam junto com uma viola rústica. E dançam.

O que me impressionava é que o dançar deles parecia um dançar de índios, um dançar que não jinga com o corpo. O índio, do qual derivou o caboclo paulista, o índio tupi, arrasta os pés, não jinga com o corpo, só os pés fazem o ritmo. Nesta festa de Santa Cruz, eles se aproximam da cruz, fazem uma reverência e voltam, se aproximam e voltam, três ou quatro vezes. E cantam alguma coisa incompreensível, eu não consegui entender nenhuma palavra, embora provavelmente fosse em português. E como hoje existem faculdades de Turismo, com cursos de folclore, os professores mandam os seus alunos fazerem pesquisas. Se têm que fazer uma de folclore, vão para Carapicuíba porque há a festa do dia 3. Mas, nessa última festa, eu tive um certo desprazer de ver ônibus e ônibus parados, ônibus turísticos parados naquela pracinha tão exígua. De gravador em punho, ficavam querendo entrevistar aqueles caboclos, fazendo as perguntas mais estapafúrdias: “O governo não ajuda o senhor?”, “O senhor não acha que essa festa está em decadência porque o governo não tem dado verbas?” Eles olhavam e não sabiam o que responder. Mas eu achei curioso porque até do maior mal, que são as faculdades de turismo, pode sair algum bem.

Essas moças que faziam o curso eram pessoas simples, eram pessoas pobres. Percebi pela cor, havia muitas moças mulatas que estavam fazendo esses cursos. E elas ficaram realmente apaixonadas, esqueciam um pouco aquilo que a professora mandara perguntar e queriam entrar na dança. A dança de Santa Cruz é muito solene, só para homens, depois daquelas evoluções eles se retiram e acaba. Há um momento, porém, antes de a dança se extinguir, em que eles fazem uma espécie de cordão e dão a volta na praça. Nesse exato momento os assistentes podem entrar, são convidados a entrar na dança. E eu olhei bem para aquela fusão de raças e culturas que estava acontecendo na minha frente. Enquanto os caipiras mantinham o corpo duro e faziam gestos hieráticos, muito solenes, só moviam os pés, as mulatas da faculdade gingavam e rebolavam.

Claramente, elas estavam sentindo a dança de Santa Cruz como um samba mesmo. Elas transformaram aquilo num samba, e todos dançaram juntos, eles cumprindo a sua devoção, sem olhar para os lados, naquele ritual solene, e elas se requebrando, se movimentando para todos os lados, traduzindo para o seu ritmo a festa de Santa Cruz. Vejam só a complexidade do processo! A cultura de massas, no caso, a subcultura universitária das escolas de turismo, estava, sem querer, entrando em cheio, com toda a sua inconsciência; e como os seus agentes eram também povo (as alunas mulatas), produzia-se um outro perfil, diferenciado e, no entanto, ainda tradicional, da festa de Santa Cruz.

Mas volto ao que me dizia o mestre Xidieh: a cultura popular é assim mesmo. A cultura popular estava incorporando e assimilando uma forma, também sua, o samba urbano de origem afro-brasileira, que deu à cerimônia uma outra dimensão.

Mas não é só o traço hierático, solene, que faz parte da cultura popular. A cultura popular é também jocosa, gosta de humor. Na cidade praiana de São Sebastião, mestre Xidieh colheu uma série de histórias do tempo em que Jesus andava por este mundo, histórias que o povo conta, relatos que se entroncam em narrativas da Idade Média e dos chamados “Evangelhos Apócrifos”, anônimos que falam sobre as andanças de Jesus, de Nossa Senhora, dos apóstolos… e que, evidentemente, não se encontram nos quatro textos canônicos de Marcos, Mateus, João e Lucas. A Igreja deixou correr os “Evangelhos Apócrifos”, mas não canonizou nenhum, já que era praticamente impossível controlar as suas fontes. Xidieh transcreve no livro Narrativas pias populares[3] algumas dessas históricas contadas pelos caiçaras de São Sebastião e que reinventam casos da tradição apócrifa. Muitas delas têm por herói, ou anti-herói, a São Pedro que, segundo a visão popular, era dado a fazer espertezas, era o espertinho dos apóstolos. Mas as astúcias malogradas de São Pedro é que dão um fundo cômico às narrativas. Essa é a alegria do caipira, ver o esperto sair logrado ao se deparar com alguém mais esperto do que ele. Eu vou contar uma dessas histórias para dar uma ideia do que é esse tesouro da cultura caipira.

São Pedro ficava muito aborrecido com a mania de Jesus fazer Jejum. E ficar sempre em casa de pobre, onde a gente recebe pouco alimento. Ele vivia resmungando dizendo: “Quem não pode não se estabelece. Que mania é essa de andar pelas ruas. A gente fica com fome andando o tempo todo. Se ao menos a gente fosse nas casas dos ricos…” Jesus ouviu a queixa de Pedro e disse: “Está bem, Pedro, vamos hoje à casa de um rico. Quem sabe se a gente consegue passar melhor.” Então, bateram à porta de um homem rico. Eram os três: Jesus, Pedro e seu irmão, André. O rico abriu a porta e pensou: “Vou pregar uma peça nesses vagabundos que estão aí, que ficam pedindo esmola em vez de trabalhar.” E disse baixinho para o seu criado: “Ponha esses três numa cama grande. Durante a noite cada um vai levar uma sova, só que não vão saber quem é que deu a sova, e serão capazes até de se acusarem uns aos outros.”

E como São Pedro nessa hora andava pela casa procurando comida, nada percebeu. Mas no final da noite, quando eles foram dormir, o dono da casa disse novamente para o criado: “Olhe, para aquele que se deitar na beirada da cama, dê um doce, mas só para aquele que está na beirada da cama”. São Pedro ouviu. E naturalmente na hora de escolher o seu lugar na cama, disse para Jesus e para André: “Eu quero ficar na beirada, não me acostumo em outro lugar, só na beirada”. E assim ficou ele na beirada. Durante a noite veio o criado e deu uma valente de uma surra naquele que estava na beirada, conforme o dono tinha mandado. E São Pedro ficou agoniado, sem poder dizer nada. Levantou-se e ficou andando pela casa, quando ouviu o patrão dizer: “Agora está na hora de você dar uma recompensa para aquele que ficar no meio”. São Pedro correu lá e disse a Jesus: “Olha, eu não me acostumei na beirada, não é o meu lugar. Essa cama é muito esquisita, eu quero ficar no meio”. Jesus aceitou e Pedro ficou no meio. Passou algum tempo, veio o empregado e deu outra surra memorável naquele que estava no meio, Aí São Pedro disse: “Eu não tenho sorte mesmo, vai ver que esse não é o meu lugar”.

Levantou-se e ouviu a terceira recomendação: “O presente mesmo é para aquele que está no cantinho, para este é o bom presente”. Então ele foi incomodar André que estava no cantinho e disse: “André, vai para o meio que eu quero ficar no cantinho”. E recebeu a terceira sova. De manhã cedo Jesus agradeceu a boa pousada que eles tinham recebido, a cama tão cômoda, e foram embora. Perguntou: “Então Pedro, você acha que é bom ficar em casa de rico?” E Pedro respondeu: “Não é bom, não. A genta pode estar no canto, no meio ou na beirada que apanha sempre”.

Essa história, além da narrativa e da graça que tem, traz todo o problema da relação de classes. O povo sabe que a relação com o rico é muito perigosa, uma relação muito cheia de decepções. É bom acautelar-se e é preferível, afinal, não pedir pousada em casa de rico. E há muitas outras histórias. Na prática da cultura popular, rente ao cotidiano, existe uma sabedoria que, muitas vezes, se traduz em formas canônicas. Pode traduzir-se em historietas ou em provérbios que são, não raro, contraditórios.

Engana-se quem pensa, partindo de uma visão genérica da cultura popular, que esta seja muito homogênea e que diga sempre as mesmas coisas. Comecei a fazer uma pesquisa de provérbios quando escrevi um ensaio sobre alguns contos de Guimarães Rosa. Consultei um excelente trabalho feito pela Professora Martha Steinberg sobre provérbios ingleses comparados com brasileiros.[4]

Embora aí se confirme o pressuposto de que a sabedoria popular se reproduza em formas semelhantes em toda parte do mundo, a pesquisadora constatou um fato novo: os provérbios ingleses são muito parecidos com os provérbios brasileiros, mas diferenciados dos norte-americanos. Tudo indica que a prática popular norte­americana tenha criado raízes próprias, modos de ser peculiares, ao passo que ingleses e portugueses (no caso, luso brasileiros) conservaram a fonte comum, que é a vida medieval. Acho que vale a pena testar essa hipótese. Outra coisa que eu verifiquei: há provérbios contraditórios no conteúdo e na forma. Por exemplo: “Ajuda-te e Deus te ajudará”. O que quer dizer esse provérbio? Que não se deve esperar tudo de Deus, é preciso trabalhar, ajudar-se para conseguir alguma coisa. É um ditado realista. Quem quer ser ajudado pelo Alto deve fazer algum esforço, não ficar sempre esperando milagre.

Mas há outro provérbio que diz o oposto: “Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga”. Ou seja, de que adianta levantar muito cedo se o dia é de azar? Mais vale quem Deus ajuda. E ainda há outro que diz: “Deus ajuda quem cedo madruga”. Afinal, a quem é que Deus ajuda? Percebe-se que se trata de experiências diversas. Há a experiência daquele que levantou cedinho para plantar, pois sabe que a hora antes do sol é boa, e que assim fazendo, tudo vai dar certo. Pois Deus ajuda quem cedo madruga. Quando vierem as chuvas, tudo estará semeado e tudo crescerá. Mas há aquele outro que sabe que, na hora da colheita, podem vir as inundações, a seca, o incêndio, a queda do cruzeiro. Então o que adiantou ter madrugado para semear? Mais vale quem Deus ajuda…

Existe na sabedoria popular a presença dos contraditórios, das coisas reversíveis e das coisas perecíveis. A tendência mais forte, porém, reside na alta probabilidade que têm as coisas de voltar. Porque nada parece definitivo na cultura do povo. Este é um dos temas recorrentes da literatura de cordel, o velho que reaparece, tudo o que “morreu” continua e até pode voltar. Xidieh crê que o povo, no fundo, não só não se dá bem com a ideia do inferno para sempre, como tende a acreditar na reencarnação. Uma cultura quanto mais enraizadamente arcaico-popular, tanto mais tenderia a aceitar, ainda que não explicitamente, a possibilidade da reencarnação. Quantos “católicos” no Brasil (e até comunistas de carteirinha) vão à sessão espírita ou ao terreiro na esperança de se comunicarem com os seus mortos! O povo teria horror à ideia da morte definitiva, da condenação total. As pessoas fizeram mal, mas não foi por mal. Há sempre algum modo de resgatar o pecador, se não nesta, ao menos numa outra geração.

O correlato temporal da reversibilidade é a concepção cíclica da existência. Todo ano se planta, todo ano se colhe. Vem a chuva, vem a seca. A cultura de massas, quando quer imitar a força das práticas populares, procura, mas nem sempre consegue, apanhar o seu caráter de reversibilidade. Promove grandes eventos para os quais vão milhares de pessoas, que deliram, gritam, suam, mas depois vão para casa, acabou-se a festa. Falta, então, aquela perspectiva de a festa voltar, no tempo próprio, que é tão grata à cultura popular-tradicional. Mas quando essa perspectiva existe, tudo se funde, como no carnaval. Quando a cultura de massas alcançar reproduzir o fenômeno da reversibilidade, ela estará a meio caminho do sentimento popular. O ciclo é a figura da vida que não se apaga para sempre com a morte.

Todas essas ideias são opostas à concepção de cultura como mercadoria finita e descartável, exterior à vida intersubjetiva. Cultura como processo, cultura como trabalho, cultura como ato-no-tempo: este é o fio da meada que estou tentando desembaraçar aqui.

Uma última instância a ser chamada é a realidade da memória. Falar em cultura como tradição sem falar em memória é não tocar no nervo do assunto.

A memória é o centro vivo da tradição, é o pressuposto de cultura no sentido de trabalho produzido, acumulado e refeito através da História. Para Platão a memória é ativa. Aprender é lembrar, lembrar é aprender. Sabe-se que Platão acreditava na reencarnação, afetado como estava pela filosofia pitagórica e, talvez, por certas tradições religiosas orientais persistentes na Grécia clássica. A teoria do aprendizado de Platão pressupõe a existência de outras vidas anteriores à vida presente. Quem se lembra com agudeza e profundidade, desoculta o que estava coberto na própria alma. O que os psicanalistas chamariam de “fazer anamnese”, termo, aliás, já usado por Platão no Mênon e em outros diálogos.

Para o psicanalista ortodoxo a memória não recua além da infância; para Platão as lembranças remontam a épocas distantes, a um momento em que a alma pudera contemplar as verdades ideais e eternas. Todas as almas têm sede de saber e já a tinham nas vidas pregressas. Acontece que os deuses, cruéis em sua sabedoria, não se agradavam de ver que se desse um copo d’água para a alma sedenta e sôfrega antes de ela fazer um sacrifício, ao menos o sacrifício da espera. O conhecimento exige a purificação da paciência. As almas deveriam esperar um tanto para que o desejo se interiorizasse e se espiritualizasse dentro delas; só assim, o desejo se transformaria em conhecimento, pois entre um e outro ocorreria o tempo necessário à memória. A água oferecida pelos deuses era tirada de um rio chamado Lethe, rio do esquecimento.

Se as almas, arrastadas pela sede do desejo sem freio, bebessem a água do Lethe, sem a pausa do sacrifício, ao invés de aprender, cairiam na letargia, que é um estado de sonolência, de embrutecimento, de inconsciência. Voltariam aos seus instintos de brutos e, saciadas e entorpecidas muito rapidamente, seriam incapazes de dar o salto que leva ao conhecimento através da memória. Mas aquelas almas que esperassem e não tragassem sôfregas as águas do Lethe alcançariam o não-esquecimento, o des-ocultamento, a a-letheia, a alétheia. Quem sofreia o desejo que, saciado, leva ao entorpecimento, consegue chegar à verdade, que é lembrança pura, memória libertadora. Porque o esquecimento nos prende ao peso de um presente sem dimensões, quando é causado pela violência dos sentidos e pelo agrilhoamento da consciência. Ai daqueles que esquecem! As sociedades que se esquecem do seu passado, mesmo do seu passado recente, vagarão e errarão estupidamente sem encontrar a porta de saída que é a reflexão sobre o passado.

Segundo Platão, a memória é caminho para a república perfeita. Tudo o que Platão escreve tem uma finalidade: preparar o cidadão, educá-lo para construir a pólis, a república perfeita. E a república perfeita é constituída de homens que têm memória, homens que procuraram a verdade lembrando. Evidentemente, para nós isso é uma lição. Recentemente, eu tive que estudar a história da Nicarágua, nesta luta que todos nós, todas as pessoas minimamente decentes têm que endossar, que é a luta pela sobrevivência da Nicarágua diante do imperialismo norte-americano. Recentemente, tendo que escrever alguma coisa sobre a Nicarágua, que é um nervo exposto da América Latina, doendo, como todo nervo exposto, fui ver a argumentação dos inimigos da Nicarágua, dos que estão dominando a política norte-americana. É uma argumentação absolutamente brutal, absolutamente delinquente, porque eles dizem que a Nicarágua vai seguir o destino de Cuba, e os EUA não podem suportar isso. E que a Nicarágua é antidemocrática por causa do Sandinismo e por causa das relações com a URSS. São esses os argumentos que correm e que a opinião pública norte-americana às vezes engole.

E fui estudar a história da Nicarágua. Fui fazer o quê? Um ato de memória, de alétheia, de desocultamento. Está oculto o quê? Que os norte-americanos invadiram a Nicarágua, desde o século passado, quarenta vezes! E que em meados do século passado, um pirata norte-americano chamado Walker desembarcou com marinheiros norte-americanos e depôs o presidente, e ele próprio se erigiu em presidente da República da Nicarágua. Ele, flibusteiro, pirata norte-americano. O seu primeiro ato foi restabelecer a escravidão na Nicarágua que já tinha sido abolida antes de 1850. Então a gente pergunta: Existia URSS em 1850? Existiam os sandinistas em 1850? Existia o perigo cubano em 1850? Não! Então por que invadiram a Nicarágua em 1850? Os argumentos agora são hipócritas, porque o desejo é realmente o de dominar a América Central. A história como desocultamento é um desmascaramento. Deve-se estudar História para desmascarar o presente e para prevenir-se, se possível, no futuro.

Nessa linha de memória, há um trabalho de Ecléa Bosi[5] que dá um rumo bastante diferente à nossa Psicologia Social. Trata-se de uma entrevista com oito velhos que viveram a sua infância em São Paulo. Todos com mais de 70 anos de idade, reconstroem, cada um do seu ponto de vista, a história da cidade. Nós ficamos conhecendo o que os livros nem sempre trazem. Por exemplo, a Revolução de 32. Recentemente ouvimos muitos debates sobre o seu significado. Vocês devem lembrar-se de que houve, algum tempo atrás, um presidente chamado João Batista Figueiredo, filho de um general, Euclides Figueiredo, paulista, que lutou na Revolução Constitucionalista.

Em São Paulo, esse movimento é uma espécie de grande mitologia escolar. Muitos dos atuais membros da Academia Paulista de Letras, quase todos septuagenários, lutaram em 1932. 1932 é também um marco inesquecível para as classes altas de São Paulo, que se sentiram marginalizadas pela Revolução de 30. De resto, os intelectuais progressistas de São Paulo sempre se dividiram muito diante da interpretação do movimento, porque, de um lado, a Revolução de 30 havia sido efetivamente um passo à frente se comparada com a velha República oligárquica, e as medidas tomadas entre 1930 e 1934 foram efetivamente renovadoras. Getúlio era um estadista de grande visão e, naqueles anos, apoiado ou estimulado pelos tenentes, mudara a face do Estado brasileiro. De outro lado, havia a “revolução” constitucionalista, que reclamava uma lei liberal e rejeitava o centralismo de 30; era simpático esse lado liberal, embora viesse manipulado pelas classes ricas de São Paulo que tinham sido apeadas do poder, e que se uniam em um movimento armado contra Getúlio Vargas.

Tudo isso era contraditório, era dramático, era vivo. Em Memória e sociedade há depoimentos de velhos que participaram de 1932. Um dos entrevistados trabalhava no Instituto do Café, de onde saiu o primeiro grupo de combate. A revolução foi armada pelo Instituto do Café exatamente porque eram latifundiários (ou os bacharéis, seus filhos) que se sentiram prejudicados pelos tenentes. Foram as oligarquias agrárias que custearam o início do movimento. E esse entrevistado era um alto funcionário do Instituto. Quando ele rememora o período, levanta-se, ignora ou esquece que está falando com a entrevistadora: “Eu, Abel, digo à posteridade que vi a primeira morte de 1932, na Praça da República…” e põe-se a contar, ato por ato, o que ocorreu nas trincheiras e o que foi a grandeza de 1932. Toda a história emerge. É um documento vivo, realmente único, porque a testemunha se identifica com o cerne da (sua) História; e embora se possa dizer profundamente ideológico, nem por isso deixa de ser autêntico.

Depois, Ecléa entrevistou uma empregada doméstica, filha de escravos, chamada Risoleta. Esta preta, hoje cega, é vidente. Vê o futuro. Como os cegos da tragédia grega aos quais se arrancavam os olhos para que melhor vissem a realidade. O trabalho dela hoje é ver o futuro. Trabalhou durante meio século como criada em casa de paulistas de 400 anos que fizeram a Revolução de 1932. “Meus patrões eram favoráveis a 1932. Meu patrão, Aníbal, era contra Getúlio. Eu era getulista, mas não podia falar nada”. E continua: “Eu ficava quieta. E ainda tinha que fazer comida para os soldados”. Um dia começou a campanha: “Dê ouro para o bem de São Paulo”, uma campanha intensa. Ainda hoje há velhos que usam uma aliança com a inscrição “Dei ouro para São Paulo”. Ficou quase que uma expressão unitária: “ouro-para-o-bem-de-São-Paulo”, “tudo-para-o-bem-de-São-Paulo”.

E toda vez que ela falava ouro, falava para o bem de São Paulo: “Era o tempo do ouro para o bem de São Paulo. Minha patroa, da família Junqueira, riquíssima, latifundiários de café, os primeiros grandes barões do café de São Paulo. Os Junqueira, de olho azul, se casavam entre si, daí uma série de deformações… Um dia minha patroa estava num canto juntando ouro para o bem de São Paulo. Ela colocava brochinhos, colocava os braceletes, colocava os anéis, os brincos, ficou um monte de ouro para o bem de São Paulo. Aí eu vi um brochinho pequenininho, achei que era uma coisinha de nada. Então cheguei pra ela e perguntei: ‘Esse brochinho que a senhora está colocando aí nesse monte, será que a senhora não podia me dar, porque um dia eu não vou poder mais trabalhar e, se eu ficasse doente, teria pelo menos um brochinho para vender. Pode?’ E a patroa respondeu: ‘Nada disso! É tudo para o bem de São Paulo’.”

Risoleta ficou muito triste, se recolheu e chegou à conclusão de que não podia ficar daquele lado. Não que ela não quisesse o bem de São Paulo, mas ela não podia ficar daquele lado, naquela classe social. Até o fim da vida ela votou em Getúlio Vargas. O Estado Novo não existiu para ela, porque para os elementos mais populares essa palavra não existiu. Ficou com Vargas até 1954, até o suicídio. Então ela chora muito e diz: “Foi o Brigadeiro Eduardo Gomes que matou o Getúlio, e agora vão matar o Oswaldo Aranha.” As pessoas mais simples nunca acreditaram no suicídio, elas acharam que foram inimigos que o mataram. Até o pobre Brigadeiro, uma pessoa tão proba e tão idônea, foi acusado por ela.

Eu acho importante o cruzamento; quem for estudar 1932 tem que ler o depoimento do Abel. Apesar de toda a carga ideológica, ele estava empenhando a sua classe, a sua pessoa, ele lutou numa trincheira, sofreu na carne aquelas lutas. E o depoimento da Risoleta também é extremamente importante, porque ela estava de fora da classe dela, mas também dentro porque ela trabalhava, dava o seu suor para que aqueles quatrocentões de São Paulo pudessem levar a vida que levavam. Ela era filha de escravos, neta de escravos, e isso tudo em 1932 ainda tinha muita força.

O último testemunho que posso dar é o seguinte: no ano passado eu tive a oportunidade de falar sobre educação e constituições. Li as constituições todas e o que tratam de educação. E qual não foi a minha surpresa ao verificar que a constituição de 1934 era mais progressista que a de 1946! A carta de 1934, feita por deputados eleitos para isso, foi uma constituição democrática para a época. E lendo os seus artigos sobre educação verifiquei que, por exemplo, na questão do ensino público, foi uma constituição muito progressista. Nela se diz, pela primeira vez, que o ensino primário devia ser gratuito, um ensino universal. Era a proposta do ensino democratizado. E mais ainda, para o ensino secundário e universitário, devia haver “tendência à gratuidade”.

Quer dizer, era uma constituição que já pensava na evolução da sociedade de massas, e que o Estado deveria estar atento para prover as necessidades dessas mesmas massas por uma educação gratuita. A de 1946, tão louvada, como a constituição da redemocratização, só o é do ponto de vista institucional, mas do ponto de vista da participação do Estado na democracia não o é, porque é ela quem inaugura esta figura chamada “ensino público pago”. Explicitamente diz que os alunos que podem, devem pagar a universidade, o que dá campo, evidentemente, para uma série de interpretações. Isso até a constituição de 1967/69, a última, praticamente outorgada, que tivemos, que propõe concessão de bolsas de estudo e abre caminho para a privatização do ensino. Agora, não é bom lembrar? Não é bom voltar a pensar nas constituições anteriores? Assim, a memória de que falava Platão é um acesso à verdade e um acesso à democracia. Exatamente o contrário do que aquela senhora dizia: “O senhor tem cultura, mas é muito democrático”. Oxalá ela pudesse ter dito: “O senhor tem cultura, por isso é muito democrático”.

*Alfredo Bosi  (1936-2021) foi professor Emérito da FFLCH-USP e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Autor, entre outros livros, de Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica (Editora 34).

Publicado originalmente no site do Arte pensamento IMS.

Notas


[1] O que se relata em seguida é a memória muito sintetizada de uma luta ecológica que envolveu a comunidade de Cotia durante todo o ano de 1984. Apesar dos reveses sofridos, o problema acabou sendo sentido, e, ao que parece, as autoridades municipais e estaduais estão elaborando projetos de “racionalização do uso do solo”. Vamos esperar.

[2] Variante caipira de Turris eburnea.

[3] Oswaldo Elias Xidieh – Narrativas pias populares, São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros – USP.

[4] Martha Steinberg: 1001 provérbios em contraste, São Paulo, Ática, 1985.

[5] Ecléa Bosi, Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.

 

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