De pires na mão

Imagem: Gritt Zheng
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO ABRAMOVAY*

A retórica e a prática do governo tentam legitimar uma espécie de liberalismo miliciano.

Tontura, olhos pesados, um sono profundo e você só acorda no dia seguinte. Aí percebe que está num mundo novo. Não é mais possível qualquer atividade que conduza à emissão de gases de efeito estufa. O cidadão norte-americano, canadense ou chinês não pode tirar o carro da garagem. Luz elétrica ou internet, só algumas poucas horas por dia, já que a matriz energética destes países (e da maior parte dos outros) depende da queima de combustíveis fósseis. Se a vida não parar, o colapso do sistema climático, as secas, os incêndios, os furacões e a subida no nível do mar vão se tornar ainda mais destrutivos.

A pandemia ofereceu uma versão suave deste cenário apocalíptico. Em média, durante 2020, as emissões de gases de efeito estufa tiveram, globalmente, retração inédita de 7%. Tal declínio só foi alcançado com uma redução brutal das atividades econômicas e da interação social.

O ritmo de queda da dependência humana dos combustíveis fósseis é muito mais lento do que o necessário para evitar a intensificação dos eventos climáticos extremos. Por isso, Estados Unidos e União Europeia comprometem-se a reduzir pela metade suas emissões nos próximos dez anos. E, claro, não querem fazer isso paralisando a vida econômica.

O caminho então é duplo: em primeiro lugar, enfrentar interesses poderosos que ajudam a perenizar nossa dependência dos combustíveis fósseis. O mais importante, porém, é que estas metas só serão alcançadas caso melhorem muito as tecnologias ligadas às energias renováveis modernas e a sua armazenagem, para contrabalançar a intermitência da solar e da eólica.

Nos EUA serão introduzidos 50 milhões de automóveis elétricos e três milhões de pontos de abastecimento dos veículos com energia elétrica até 2030. A siderurgia, a produção de cimento e outros setores altamente dependentes de emissões terão que ser transformados e muito rapidamente. A agropecuária também terá que emitir muito menos que hoje.

São transformações que vão exigir investimentos altíssimos, mudanças de hábitos, novos padrões de produção e de consumo. E tudo isso só será possível se a ciência avançar e abrir caminho a tecnologias que tornem viáveis estes novos padrões. Em outras palavras, o que os especialistas chamam de “descabonização profunda” (que terá de ocorrer nos próximos dez anos) atinge diretamente a vida cotidiana dos cidadãos, a oferta de bens e serviços e tudo isso supõe pesquisa de ponta.

E nós? O dado mais importante para a reunião climática convocada pelo presidente Biden é que entre os dez maiores emissores globais, o Brasil é hoje o único (junto com a Indonésia) em que quase metade das emissões de gases de efeito estufa vem do desmatamento. Ora, zerar o desmatamento não depende de ciência e tecnologia, não exige novos hábitos nem de produção nem de consumo.

Se você é o cidadão que caiu em sono profundo e acordou num mundo de desmatamento zero, sua comida não ficará mais cara, seus hábitos de consumo não serão modificados, nem serão necessárias transformações estruturais na vida econômica e social de seu país. Haverá, é verdade, alguma redução na renda gerada pelo desmatamento, vinculada frequentemente a trabalho escravo e a menor compra de equipamentos para a ocupação de áreas públicas, invasão de terras indígenas e para a mineração ilegal.

Hoje, se o desmatamento cresce e se o Governo Federal tenta fazer crer ao mundo que zerar a destruição é tão difícil quanto descarbonizar a matriz dos transportes e da energia, isso se deve a uma razão: é que a retórica e a prática do Planalto e da Esplanada dos Ministérios tentam legitimar uma espécie de liberalismo miliciano em que atividades sabidamente criminosas e destrutivas buscam aparecer como se fossem a expressão máxima das virtudes do empreendedorismo. É esta gente, que depende politicamente da apologia ao crime e da tentativa de sua legalização, que vai agora alegremente a Washington de pires na mão. E voltarão, de mãos abanando, dizendo, ferozes, que os outros fazem pouco para combater a crise climática.

*Ricardo Abramovay é professor sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Autor de Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza (Elefante/Terceira Via).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luis Felipe Miguel Tarso Genro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Thomas Piketty Chico Alencar Jorge Branco Daniel Brazil Luiz Bernardo Pericás Leonardo Avritzer Paulo Capel Narvai Alexandre Aragão de Albuquerque Lorenzo Vitral Ronald Rocha Denilson Cordeiro João Feres Júnior Otaviano Helene Eliziário Andrade Ronaldo Tadeu de Souza João Sette Whitaker Ferreira Carlos Tautz Eleonora Albano Paulo Nogueira Batista Jr Bernardo Ricupero Gerson Almeida Celso Favaretto Marilia Pacheco Fiorillo Henri Acselrad Luís Fernando Vitagliano Rodrigo de Faria Flávio Aguiar Marilena Chauí Marcus Ianoni Dennis Oliveira Elias Jabbour Vladimir Safatle Ricardo Abramovay André Singer Anselm Jappe Igor Felippe Santos Milton Pinheiro Luiz Werneck Vianna Priscila Figueiredo Lincoln Secco Ari Marcelo Solon Valerio Arcary Francisco Pereira de Farias José Luís Fiori Luciano Nascimento Bento Prado Jr. Heraldo Campos Bruno Machado João Lanari Bo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Slavoj Žižek José Geraldo Couto Sergio Amadeu da Silveira Luiz Eduardo Soares Ricardo Antunes Atilio A. Boron José Costa Júnior Francisco Fernandes Ladeira Carla Teixeira Juarez Guimarães Kátia Gerab Baggio Walnice Nogueira Galvão Luiz Carlos Bresser-Pereira Gilberto Maringoni Tadeu Valadares Ladislau Dowbor Fernando Nogueira da Costa Tales Ab'Sáber Rafael R. Ioris Osvaldo Coggiola Luiz Renato Martins Ricardo Musse Marcos Aurélio da Silva Sandra Bitencourt Boaventura de Sousa Santos Lucas Fiaschetti Estevez Dênis de Moraes Benicio Viero Schmidt Flávio R. Kothe Ronald León Núñez Armando Boito Annateresa Fabris Vanderlei Tenório Samuel Kilsztajn Everaldo de Oliveira Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Henry Burnett Claudio Katz Mariarosaria Fabris Marjorie C. Marona Leonardo Boff José Dirceu João Paulo Ayub Fonseca Jean Pierre Chauvin Luiz Marques Salem Nasser Afrânio Catani Paulo Martins Maria Rita Kehl Eleutério F. S. Prado Celso Frederico Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Airton Paschoa Jorge Luiz Souto Maior Eduardo Borges Andrew Korybko Marcelo Guimarães Lima Gabriel Cohn Michel Goulart da Silva Julian Rodrigues Berenice Bento Antonio Martins Rubens Pinto Lyra Michael Löwy Liszt Vieira Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Freitas Barbosa Antônio Sales Rios Neto Manchetômetro Marcelo Módolo Fábio Konder Comparato Ricardo Fabbrini Yuri Martins-Fontes Leda Maria Paulani Paulo Fernandes Silveira Andrés del Río João Adolfo Hansen Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Costa Caio Bugiato João Carlos Salles Remy José Fontana Fernão Pessoa Ramos José Raimundo Trindade Matheus Silveira de Souza Luiz Roberto Alves João Carlos Loebens Renato Dagnino Antonino Infranca Francisco de Oliveira Barros Júnior Manuel Domingos Neto Eugênio Bucci Chico Whitaker Gilberto Lopes Daniel Afonso da Silva Érico Andrade André Márcio Neves Soares Vinício Carrilho Martinez José Machado Moita Neto Leonardo Sacramento Eugênio Trivinho Alysson Leandro Mascaro Michael Roberts José Micaelson Lacerda Morais Mário Maestri Marcos Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES