Dois Brasis se enfrentam em 2022?

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Por BERNARDO RICUPERO*

A melhor oposição para explicar as eleições de 2022 não é “arcaico” x “moderno”, mas “pobres” x “ricos”

Ninguém esperava os resultados do 1º turno das eleições de 2022. Provavelmente elas só foram menos surpreendentes do que os resultados do 1º turno de 2018, quando Jair Bolsonaro teve 46% dos votos e quase não precisou enfrentar o 2º turno. Na esteira do capitão reformado foram então eleitas figuras desconhecidas como Romeu Zema em Minas Gerais e Wilson Witzel no Rio de Janeiro.

Agora o mais inesperado foi novamente a votação de Bolsonaro, só 5% atrás da de Luís Inácio Lula da Silva, ao passo que as pesquisas indicavam uma diferença de até 14% entre os dois primeiros colocados da disputa. Mais uma vez, na onda bolsonarista, foram eleitos senadores como a pastora e ex-ministra Damares Alves, o astronauta e ex-ministro Marcos Pontes e o general e ex-vice-presidente Hamilton Mourão, deputados como o ex-ministro Eduardo Pazuello, segundo mais votado no Rio de Janeiro, e o ex-ministro Ricardo Salles, quarto mais votado em São Paulo.

As discrepâncias maiores se deram no Sudeste, onde o DataFolha apontava uma vantagem de 7% para Lula, mas Bolsonaro ganhou por 5%, com diferença de mais de 10% no Rio de Janeiro e quase de 7% em São Paulo. Mesmo em Minas, onde o ex-presidente venceu, a diferença para o atual presidente foi de 5%, enquanto o DataFolha indicava que a distância seria de 17%.

É interessante perceber como desde 2006 aparecem continuidades no mapa eleitoral. Não por acaso, falo em 2006, quando de acordo com o cientista-político André Singer (2012), há um realinhamento eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT). Isso ocorre depois do escândalo do “mensalão”, que faz com que o partido perca espaço na classe média e nos chamados setores organizados da sociedade e passe a se apoiar cada vez mais naqueles que Paul Singer chamara de subproletariado. Tal grupo, por sua vez, teria uma identificação direta com o principal líder petista, o que caracterizaria o que poderia ser chamado de “lulismo”.

Em termos regionais, desde 2006, o PT ganha as eleições no Nordeste e, com menos folga e com a exceção de 2018, no Norte. Em compensação, os adversários do PT – inicialmente o PSDB e, desde as últimas eleições, Bolsonaro – ganham no Centro-Oeste e no Sul. O caso desviante foi 2010, quando a candidata petista, Dilma Rousseff, ganhou em todas as regiões, mas o tucano José Serra foi especialmente bem votado no Centro-Oeste e no Sul. Já o Sudeste tem sido uma zona de disputa, no qual o PT ganhou em 2006, 2010, 2014, mas perdeu em 2018 e 2022. Entre os estados da região, São Paulo é a exceção, o PT tendo perdido todas as eleições desde 2006.

Em resumo, o território do PT é o Norte e o Nordeste e de seus adversários o Centro-Oeste e o Sul. Finalmente, o Sudeste é o principal terreno de disputa eleitoral.

As eleições de 2022 seguem, de maneira geral, esse desenho. Lula ganhou, com folga, no Nordeste e, com menos facilidade, no Norte; ao passo que Jair Bolsonaro ganhou bem no Centro-Oeste e no Sul. Por sua vez, o atual presidente ganhou no Sudeste, mas com uma diferença pequena em relação ao ex-presidente.

O que tirar dessas diferenças regionais? Desde 2014 há quem proponha que dois Brasis se enfrentam nas eleições, o que remete à velha formulação do sociólogo francês Jacques Lambert a respeito de um Brasil “moderno” se opor a um Brasil “arcaico”. Ou seja, o Brasil moderno seria o Brasil do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste, que votou em Bolsonaro, ao passo que o Brasil arcaico o do Nordeste e do Norte, que deu a vitória a Lula.

Francisco de Oliveira (1972), há exatos cinquenta anos, mostrou como era falaciosa a interpretação dualista a respeito do Brasil, já que o Brasil moderno não se opõe, mas se alimenta do Brasil arcaico.[1]

Mais especificamente, a indústria de São Paulo podia manter os salários de seus operários baixos por conta dos migrantes nordestinos que não paravam de se dirigir ao centro urbano e funcionavam como um verdadeiro exército industrial de reserva, além do preço dos alimentos não serem tão altos devido à agriculta tradicional. Consequentemente, Francisco de Oliveira assinalou, de maneira original, a existência no Brasil de uma “acumulação primitiva estrutural” e não a ocorrência (como gênese do capitalismo) de uma acumulação primitiva, como descreveu Marx em O capital.

No entanto, Economia brasileira: crítica à razão dualista foi escrita no auge do “milagre econômico”, o Brasil tendo crescido, em média, 12,5% ao ano, entre 1971 e 1973. Tal situação mudou desde 1980. O Brasil chegou na última década, entre 2011 e 2020, a não crescer, o que contrasta especialmente com o aumento, durante a década de 1970, do PIB de 79,1% (Barbosa, 2020).

Além do mais, o Brasil se transformou nos últimos quarenta anos. Em resumo, se quando Francisco de Oliveira escrevia o “Brasil moderno” era identificado basicamente com a indústria, com a reprimarização da economia ele passou a ser entendido como quase sinônimo do agrobusiness. Não se pode esquecer, porém, que o agrobusiness atual é parente, não tão distante, da grande exploração agrária que, como mostrou outro clássico brasileiro, Caio Prado Jr. (1942), foi, a seu tempo, moderno.

Muito da inovação da grande exploração agrária consistia precisamente em reunir, em grandes unidades, escravos em péssimas condições de trabalho, para produzir sem consideração para com o meio ambiente, bens agrícolas demandados pelo mercado externo. Não é difícil perceber como persiste em muito do agrobusiness atual as péssimas condições de trabalho e a desconsideração pelo meio ambiente, em especial, na zona de fronteira – talvez não por acaso, outra faceta da acumulação primitiva – onde Jair Bolsonaro foi especialmente bem votado. Isto é, o suposto moderno e o suposto arcaico estão hoje ainda mais imbricados do que há cinquenta anos, quando Chico de Oliveira escreveu Economia brasileira: crítica à razão dualista.

Complicando a suposta explicação da oposição do Brasil moderno x Brasil arcaico como chave para se entender os resultados eleitorais, Lula, em 2022, diferente de Fernando Haddad em 2018, que perdera em todas as capitais fora do Nordeste, ganhou em São Paulo e Porto Alegre e perdeu, por menos de 3%, no Rio de Janeiro e Florianópolis. Em termos mais amplos, Bolsonaro foi menos votado nas capitais e cidades maiores e foi mais votado nos municípios menores, o que aponta para a interiorização de seus votos.[2]

O que concluir desses resultados? O espaço que fora do centro foi ocupado pela extrema direita. No entanto, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) foi antes progressivamente se deslocando para a direita, o que possibilitou, em 2018, algo como o “Bolsodoria”, voto em Bolsonaro para presidente e no candidato tucano João Doria para governador de São Paulo. O contraste não poderia ser maior com o partido fundado, em 1988, em meio à Assembleia Nacional Constituinte e que desejava ser uma alternativa social-democrata ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

Tal movimento parece ter relação com o perfil cada vez mais conservador que passou a ter boa parte do eleitorado pessedebista. É bastante provável que tal orientação esteja vinculada com os interesses e os valores do agrobusiness. Indo mais além, se pode dizer que esta inclinação transcende também a Bolsonaro, o que possibilita identificar não apenas uma base regional, mas uma base social para a direita (que passou a ser extremista) e abre caminho para se imaginar algo como um bolsonarismo sem Jair Bolsonaro.

Por sua vez, a boa votação do PT nas regiões Nordeste e Norte, como já notado, vai de encontro à tese de André Singer (2012) a respeito do realinhamento eleitoral que o partido viveu a partir de 2006, quando a classe média se afastou e os pobres se aproximaram do partido. Mais complicado é explicar a boa votação do partido nas capitais e nos grandes centro-urbanos, que são identificadas com o “moderno”. Há indícios que ela esteja relacionada com a recuperação pelo PT da periferia, que o partido havia, em grande parte, perdido em 2018 (Carvalho e Abramovay, 2022).

Ou seja, votaram no PT principalmente os pobres, tanto de regiões “arcaicas” como de cidades “modernas. Em outras palavras, a melhor oposição para explicar o 1º e, ainda, o 2º turno das eleições de 2022 não é “arcaico” x “moderno”, mas “pobres” x “ricos”.[3]

*Bernardo Ricupero é professor no departamento de ciência política da USP. Autor, entre outros livros, de Romantismo e a ideia de nação no Brasil (WMF Martins Fontes).

Referências


BARBOSA, Nélson. “Evolução do PIB per capita e situação política”, BLOG DO IBRE. 6 de janeiro de 2020 (https://blogdoibre.fgv.br/posts/evolucao-do-pib-capita-e-situacao-politica, acessado em 13 de outubro de 2022).

CARVALHO, Laura e ABROMAVAY, Pedro. “A profecia de Mano Brown”. https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/profecia-de-mano-brown (acessado em 13 de outubro de 2022).

OLIVEIRA, Francisco. “A economia brasileira: critica à razão dualista”. Estudos CEBRAP, 2. São Paulo, pp. 3 – 82, 1972.

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1942.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Notas


3] Este artigo se baseia na minha fala no debate (virtual), “Eleições 2022. Caminhos, limites e possibilidades políticas para os próximos anos”, promovido pelo Instituto Humanitas UNISINOS, no qual discuti com Giuseppe Cocco.

2 O CENEDIC e o CEDEC promovem, no dia 26 e 27 de outubro, o seminário (virtual) “A fortuna crítica de Chico de Oliveira: 50 anos de Crítica da razão dualista”.  

3“Cinco revelações sobre os votos de 2022, segundo os dados”. BBC News Brasil em Londres (entrevista com Fernando Meireles). 5 de outubro de 2022. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63148600 (acessado em 13 de outubro de 2022).

 

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