Eleição – economia ou ideologia?

image_pdf

Por LISZT VIEIRA*

A situação atual dos EUA e também do Brasil pode ser considerada sui generis, mas deixa muitas interrogações no ar

1.

A famosa frase “É a economia, estúpido”, cunhada em 1992 por James Carville, então estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush, está ameaçada de perder seu reinado das últimas décadas. A situação atual dos EUA e também do Brasil pode ser considerada “sui generis”, mas deixa muitas interrogações no ar.

O economista Marcelo Averbug, aposentado do BNDES, publicou há pouco tempo no jornal O Globo um artigo instigante mostrando, com dados, a melhora da economia norte-americana. Essa melhoria tem dados importantes. A taxa anual de crescimento econômico durante o atual mandato presidencial foi superada apenas em quatro ocasiões nos últimos 24 anos. O desemprego está em 3,7%, nível historicamente baixo. Ao longo dos últimos três anos foram criados 17.973.000 empregos, enquanto no primeiro triênio do governo Donald Trump criaram-se 7.994.000.

A maneira como Biden enfrentou a pandemia e seus efeitos econômicos contribuiu para a tranquilidade nacional e a retomada da expansão do PIB. Inspirado pelo New Deal de Franklin Roosevelt, mobilizou o governo como incentivador de investimentos em infraestrutura, energia limpa e pesquisa tecnológica, além dos estímulos à indústria. No plano internacional, Joe Biden está pagando alto preço pelo apoio militar ao genocídio dos palestinos cometido pelo governo de Israel. Mas, na política doméstica, a economia vai bem e antes mesmo do massacre dos palestinos Joe Biden já ia mal.

Apesar dos avanços econômicos, Joe Biden está atrás de Donald Trump nas pesquisas eleitorais. Apesar de processado na Justiça, Donald Trump surge como favorito na eleição americana de novembro próximo e tudo indica que vai ganhar a eleição. Muitos fatores podem ser aduzidos para explicar isso, mas esse favoritismo de Donald Trump se alinha com o avanço da extrema direita no mundo.

2.

Algo parecido está ocorrendo com o governo Lula. Os avanços econômicos são claros, mas não são percebidos por grande parte do eleitorado, intoxicado com as fake news e com a propaganda diária nas redes sociais e mesmo na grande imprensa. PIB mais alto, inflação mais baixa. O Produto Interno Bruto (PIB) já cresceu 3,2% ante o mesmo período do ano passado, segundo o IBGE. O dólar se manteve abaixo de cinco reais. No que se refere às Reservas, Jair Bolsonaro perdeu US$ 66 bi em quatro anos, e Lula aumentou US$ 14 bi em 70 dias.

O nível de desemprego recuou ao menor nível desde 2015, segundo o IBGE. A razão principal foi o crescimento do trabalho informal que paga salários menores e contribui menos para um crescimento sustentável da economia. Renda do trabalho dos brasileiros tem a maior alta desde o Plano Real. O aumento chega a 11,7% em 2023 na esteira de maior gasto público.

É verdade que houve aumento no preço de alguns alimentos, mas até o momento da pesquisa esse aumento provavelmente era pouco percebido. A inflação em janeiro ficou em 0,42% puxada principalmente pela alta no preço dos alimentos, causada por fatores climáticos. Em janeiro, o grupo alimentação e bebidas subiu 1,38%. Isso significa um peso de 0.29 ponto percentual no IPCA.

Mais importante é o sentimento de abandono da população periférica – negros, brancos e pardos – que todo ano vê suas casas inundadas pelas enchentes, com perdas quase total de seus bens. Para essas pessoas, não há diferença importante entre o governo atual e o passado. Não estão preocupadas com a Abin paralela e outras questões da superestrutura, estão inteiramente dedicadas a buscar estratagemas de sobrevivência.

Outra questão com peso ideológico é o problema da violência criminal e da segurança, que leva muita gente a apoiar o discurso da extrema direita de “atirar primeiro e perguntar depois”, “bandido bom é bandido morto”, tendo como consequência a mortandade de inocentes nas favelas e nos bairros periféricos.

Ao lado do fator econômico, cujos avanços não são percebidos pela população marginalizada, temos um importante segmento da classe média que se informa apenas pelas redes sociais e se identifica com valores conservadores como o machismo, homofobia, racismo etc. São contra a interrupção voluntária da gravidez, casamento de pessoas do mesmo sexo etc. Estamos aqui diante de uma questão doutrinária, extraeconômica.

São contra o aborto em nome do direito à vida, mas, depois do nascimento, não se importam se as crianças vão morrer de fome. Casamento é um contrato civil entre duas pessoas adultas, não importa a religião, o sexo, a orientação política ou o time de futebol preferido. A rejeição do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo aponta para uma questão doutrinária, de influência religiosa.

Um instrumento político importante de doutrinação é o discurso “contra o sistema”. Os jovens, cada vez com menos possibilidades de emprego no mercado de trabalho, são muito sensíveis ao ataque ao sistema para “mudar tudo o que está aí”. Não se diz como, não há projetos políticos, econômicos, culturais ou de qualquer outra natureza. Mudar pode melhorar ou piorar, com vemos agora na Argentina, onde Javier Milei recebeu expressiva votação dos jovens, e já havíamos visto antes no Brasil durante o governo passado. É bom não esquecer que Lula agora é o sistema, faz acordos por cima e muitas vezes concede vantagens a setores já privilegiados, tudo em nome da governabilidade.

Por outro lado, o Papa João Paulo II, ao destruir a Teologia da Libertação, com o apoio do Cardeal Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, abriu caminho para o movimento evangélico pentecostal e neopentecostal, de origem norte-americana. A teologia da prosperidade é a bandeira doutrinária dos evangélicos neopentecostais, recentemente “enriquecida” com a teologia do domínio. Os fiéis devem destruir seus adversários, vistos como inimigos de Deus, O avanço recente do chamado “sionismo cristão” está ligado a essa nova teologia do domínio.

Diante disso, só um trabalho de base no longo prazo pode reverter essa crença e esse apoio dos fiéis e de boa parte da classe média aos políticos de extrema direita, com o quais se identificam principalmente pelos valores conservadores, e não por propostas econômicas ou projetos políticos. Possivelmente, esses valores conservadores e o ódio passaram a influenciar mais o comportamento do eleitor do que a economia.

A tônica do atual Governo Lula de buscar com a direita um consenso pela conciliação e distribuição de altos cargos no aparelho de Estado contribui para a governabilidade no curto prazo e facilita, em alguns casos, a aprovação da pauta do governo no Congresso. Mas, a médio e longo prazo, pode ser contraproducente, contribuindo ainda este ano para a vitória de candidatos de direita nas próximas eleições municipais, que servirão de base de apoio para uma eventual vitória da direita ou extrema direita na eleição presidencial de 2026.

Com o avanço da extrema direita em todo o mundo, simbolizado pelo favoritismo de Donald Trump nas eleições presidenciais nos EUA, a possibilidade de uma vitória da extrema direita ou da direita no Brasil é uma hipótese que não pode ser descartada e exige ser enfrentada.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES