Por EUGÊNIO BUCCI*
No Brasil o caráter da gratuidade é indispensável para consumar o caráter público das nossas universidades
Dia desses, o governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), defendeu mais uma vez a adoção de mensalidades para os alunos da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 2017, ele já tinha insistido na mesma tese. Agora, volta à carga. Segundo Garcia, a cobrança será necessária para financiar a ampliação do número de vagas. Na entrevista que concedeu ao jornal Valor econômico (3/6/2022), foi categórico: “Se precisar de recursos públicos, não terá. Acabou, estamos no limite do que o povo pode investir”.
Considerando que o governador é candidato à reeleição, fica difícil de compreender a investida contra a gratuidade das universidades públicas paulistas. É realmente estranho. Será que ele acha que isso dá voto? Ou será que está em curso mais um suicídio do PSDB paulista? Sim, um suicídio continuado – é bom não esquecer que, no Brasil, partidos políticos podem cometer suicídios sequenciais, seriais, um depois do outro, isso para que fiquem reiteradamente suicidados, suicidados de modo obsessivo, para que o suicídio não deixe margem à dúvida de que foi suicídio mesmo.
Esquisitices autodestrutivas à parte, o fato é que a pretensão de instaurar o ensino pago nas universidades públicas de São Paulo e do Brasil não procede. É verdade que, à primeira vista, a ideia até que tem uma aparência de razoabilidade. O senso comum vive repetindo que na USP só estuda gente de classe alta. Está errado. O senso comum acredita que, se são estudantes de famílias ricas, poderiam pagar e ajudar nas contas da universidade. De novo, errado. Aparentemente, apenas aparentemente, o raciocínio parece ter sentido, mas não tem.
Para começar, não é verdade que o corpo discente nas universidades públicas paulistas venha de berços abastados. A realidade não é bem essa. A USP, especialmente, tem números cada vez mais enfáticos sobre isso. Nada menos do que 51,7% das matrículas no ano passado em cursos de graduação da USP eram de pessoas vindas de escolas públicas. Desse contingente, 44,1% eram estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). Esse porcentual vem crescendo desde que teve início a política de reserva de vagas para as cotas sociais e raciais, aprovada pelo Conselho Universitário em 2017.
Há algum tempo, o alunado da USP não vem das chamadas “elites”. A composição está mudando, o que traz efeitos positivos para o ensino, para o desempenho das turmas e para a diversidade dos campi. As nossas universidades públicas são gratuitas e o fato de serem gratuitas encoraja os mais pobres a encararem o desfio de disputar uma vaga.
Por certo, a gratuidade não precisa ser obrigatória em instituições públicas de ensino superior. Nos Estados Unidos, por exemplo, há escolas públicas, como a City University of New York (Cuny), que faturam com anuidades. Os preços são baixos, muito baixos quando comparados ao que se cobra nas privadas, como a Columbia University, na mesma cidade, mas a anuidade existe. Em vários países encontramos soluções parecidas. Não deveríamos, portanto, tratar o tema como um tabu. Em outros contextos sociais, universidades públicas podem cobrar (pouco) de estudantes. No caso brasileiro, no entanto, o caráter da gratuidade é indispensável para consumar o caráter público das nossas universidades. O fato de não haver mensalidade reafirma o direito à educação superior para todos.
Além disso, a ideia de que uma universidade que faz pesquisa vá se pagar com o que arrecada do alunado não tem pé nem cabeça. A conta não fecha, basta conferir as planilhas. Mensalidades não pagam a conta de um acelerador de partículas ou de um hospital. Não vem daí o sustento das melhores do mundo. A receita com anuidades é irrisória quando comparada a outras arrecadações, tanto que as escolas mais renomadas vêm se esforçando para abolir anuidades e instaurar um regime de “tuition-free”.
Na semana passada, a USP comemorou sua posição de número 115 no QS Ranking, que aponta as melhores universidades do mundo. A USP vem melhorando suas pontuações, é a melhor do Brasil e tem razões de sobra para festejar. Mas nós deveríamos prestar atenção ao que está acontecendo no topo da lista. O Massachussetts Institute of Technology (MIT), que é o primeiro do QS Ranking, tem o objetivo de, em alguns de seus cursos, como os de arquitetura e de estudos de urbanismo, alcançar a bolsa integral para todos em 2023. Hoje, a política de bolsas já cobre 75% dos valores nestes e em outros cursos.
Por que isso? Ora, porque, sem cobrar nada, essas escolas têm mais facilidade para atrair os melhores talentos e, principalmente, não estabelecem de cara uma segregação interna entre os que podem pagar e os que não podem. Sem anuidades, o ambiente melhora, a criatividade é maior e a gestão fica mais simples.
Nós, no estado de São Paulo, já temos essa fórmula funcionando. Não é hora de mexer no que está dando certo. Quem quiser perder a eleição ou quiser cometer suicídio político, que arranje outro pretexto.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.