Por LUCIANO NASCIMENTO*
A constante sensação de risco iminente nos faz ficar alertas, buscando o tempo todo qualquer indício de ameaça contra nós
Ao afirmar que “a única maneira de se livrar de uma tentação é ceder”, Oscar Wilde apontou aquela que talvez seja a mais primária motivação inconsciente para a busca do homem pelo conhecimento. Conhecer, em sentido amplo, é uma espécie de fetiche. Aliás, conforme a leitura batida e rebatida da narrativa mítica judaico-cristã, o gérmen do chamado “pecado original” foi justamente Adão ter sentido e se entregado à tentação de conhecer o saber que, em tese, Deus guardava só para si. Noves-fora, livre de qualquer dogmatismo religioso, é uma alegoria interessante.
Bem na contramão dessa ideia, também é interessante a máxima popular segundo a qual “a ignorância é uma bênção”. Difícil não ver sabedoria nisso, sobretudo quando, como nos dias correntes, o reconhecimento dos princípios, meios, fins e efeitos do fascismo nos constrange a tentar o diálogo assertivo com negacionistas convictos, explorados pela fé, puritanos amorais, discriminados preconceituosos, e – cereja do bolo – pobres de direita. Vale mesmo a pena ser capaz de enxergar tudo isso?
Impotente entre as igualmente poderosas tentações de ver e de desver seu entorno, o brasileiro avesso à cegueira seletiva tem experimentado a condição de “móbile solto no furacão” (Salve, Paulinho Moska!). Enxergar-se a si e ao país, pacífica e concomitantemente, é missão quase impossível. Por outro lado, também é quase impossível, fechar os olhos para o cenário ao redor de si, na tentativa de preservar a própria saúde mental. Estamos presos na armadilha metafísica de um looping paradoxal made in Brazil: por aqui, hoje, a consciência da necessidade de se manter informado virou gatilho para a síndrome de avestruz. O efeito mais visível desse looping, ao que parece, é o constante estado de prontidão a que estamos sujeitos, cercados por zumbis uberizados e minions super atarefados no serviço à rataria malvada emergente dos bueiros pátrios.
Não é novidade: o estado de prontidão é uma reação instintiva de (potenciais) presas ao intuírem ou perceberem ameaças predatórias. Vários documentários sobre a vida selvagem já registraram esse mecanismo de defesa. Acontece que, em geral, tal condição de vigília não é duradoura, mesmo entre os animais que compõem a base das cadeias alimentares nos seus respectivos ecossistemas.
Há espécies mais ariscas que outras, é verdade, mas, salvo engano, não são recorrentes apontamentos sobre espécies atemorizadas vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano – e é puro sofisma invocar neste momento a presumida ignorância dos animais não-humanos em relação à contagem do tempo. Se existem outros além de nós que experimentam tamanha tortura, provavelmente não há nenhum que leve consigo esse terror para dentro da própria casa (toca, covil, ninho, buraco ou o que os equivalham). Graças à internet, a capacidade de autodestruição do bicho homem (“pulsão de morte”?) pode profanar qualquer espaço. Qualquer. Inclusive nossa mente.
Sem dúvida essa capacidade é uma das razões de estarmos tão doentes – e também não há novidade nisso. Dados oficiais confiáveis (da OMS[i], da OPS[ii] e da USP[iii]) dão conta de que o Brasil é um dos países com maior número de pessoas sofrendo de ansiedade e depressão no planeta. E, se se considerar o fato de que, por aqui, são vários os entraves ao diagnóstico desses transtornos e ao registro sistemático de sua ocorrência, pode-se supor que a subnotificação de casos comprometa um pouco a precisão dos dados aferidos pelos organismos citados.
Para além das estatísticas frias, no calor do mundo das pessoas de carne e osso, a coisa parece acontecer mais ou menos assim: a constante sensação de risco iminente nos faz ficar alertas, buscando o tempo todo qualquer indício de ameaça contra nós; a busca por esses indícios aguça nossos sentidos e nos leva aos noticiários e aos livros; eles aumentam nossa sensação de medo, logo, disparam nosso estado de alerta; quando/se nos damos conta do ciclo vicioso, tentamos nos desconectar, esquecer o mundo pelo menos por alguns instantes; aí vivenciamos a certeza de estarmos às cegas e, por isso mesmo, de sermos presas mais fáceis; essa certeza reativa nossos sentidos, nos induz de novo ao alerta, à busca por informações nos noticiários e por explicações nos livros. Assim o looping se estabelece; assim a mente adoece.
Mas como poderia ser diferente se Peste, Fome, Guerra e Morte desfilam entre nós, gargalhantes, o tempo todo? Como poderia ser diferente se nossas crianças têm sido abandonadas à própria sorte, têm caído de edifícios, têm sido mortas por balas perdidas (sempre nos mesmos endereços) direcionadas (sempre aos mesmos corpos)? Como, se há pais e mães negligenciando orgulhosamente as integridades física e mental de seus filhos e filhas, e até atentando contra a vida deles e delas com método e frequência muito maiores que o absurdo jamais suspeitaria? De que maneira indígenas, negros, mulheres e LGBTQs poderiam não se sentir acuados numa terra fundada, atolada há mais de quinhentos anos no assassinato, na escravidão e na segregação? Será possível ao brasileiro avesso à estupidez humana escapar do looping macabro made in Brazil, imerso num tempo-espaço que eleva estúpidos caricatos ao estatuto de “mitos” e os entroniza sob a coroa da boçalidade vaidosa de si?
Nada disso soa possível, e a razão dessa aparente impossibilidade é: nossa inescapável prontidão, embora ostensiva, é apenas uma grande sequela. A causa de nosso adoecimento coletivo é bem mais grave. Nós, o Brasil e os brasileiros, estamos vivendo, na verdade, em estado de podridão – uns por desgaste, outros por desfrute, a maioria por desmazelo. A tamanha surrealidade dos nossos dias tem efeito paralisante doentio sobre alguns de nós, na mesma medida em que provoca o gozo eufórico de outros tantos. Espremida entre paralisados e eufóricos, a grande massa tenta somente sobreviver; para ela, o horizonte de vidas melhores é uma espécie de fantasia inebriante, que ora tem cara de plebe, ora de nobre… e às vezes cheira a enxofre.
Vivemos um tempo em que o cheiro de enxofre parece ter se entranhado em tudo. A rataria emergente do esgoto de nosso passado colonial podre mostrou que, no final das contas, ele não era de fato passado, mas, sim, ainda presente. Nunca deixamos de ser um tipo de “terra santa” às avessas, paraíso de bárbaros venais e genocidas, com rios cada vez mais poluídos onde se arrastam lama e fel. Nesse sentido, não deixa de ser coerente que eles – os ratos e os minions encantados pela flauta maldita do boçal-mor – tenham se apropriado da bandeira nacional. Que fiquem com ela e façam bom proveito.
Nós, que refutamos a cegueira seletiva e escolhemos tentar progredir na busca pelo conhecimento que promova algum efetivo bem-estar coletivo, devíamos ceder à tentação de nos refundar (no mínimo metaforicamente), e podíamos começar pelo estabelecimento de uma nova bandeira (mesmo se imaginária) que simbolizasse essa onírica “libertação conjunta de todos os homens” (Evoé, Paulo Freire!). No então “multicolorido pendão de nossa nova terra” (Obrigado pelo empréstimo, Castro Alves!) no lugar do infame “Ordem e progresso”, talvez pudesse vir escrita a sábia dedicatória de Brás Cubas: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”…
Oxalá assim alguma outra beleza nacional pudesse ressurgir dessas palavras mágicas, sob as bênçãos inventivas do negro Bruxo do Cosme Velho.
*Luciano Nascimento é doutor em Literaturas pela UFSC e professor no Colégio Pedro II.
Notas
[i] Disponível em https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/12/06/ansiedade-e-o-transtorno-mais-comum-entre-os-brasileiros-sintomas-pioraram-durante-a-pandemia.ghtml.
[ii] Disponível em https://www.paho.org/pt/noticias/2-3-2022-pandemia-covid-19-desencadeia-aumento-25-na-prevalencia-ansiedade-e-depressao-em#:~:text=2%20de%20mar%C3%A7o%20de%202022,Mundial%20da%20Sa%C3%BAde%20(OMS).
[iii] Disponível em https://pe.cut.org.br/noticias/especial-os-impactos-da-depressao-e-ansiedade-na-vida-da-classe-trabalhadora-1877.