Fábricas de chips – uma contenda geopolítica

Imagem: Johannes Plenio
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Por ADÃO VILLAVERDE & LIVIO AMARAL*

A evolução das tecnologias digitais disruptivas são fortemente determinadas pelos avanços dos semicondutores

A sociedade do conhecimento é identificada como a era das mudanças e das transformações mais céleres da história, pois estão em curso alterações estruturais, tanto nos ativos tangíveis, como nos intangíveis, aqueles advindos do conhecimento, do domínio das ferramentas técnicas e da conversão da inovação em valor para as organizações e à coletividade.

A evolução das tecnologias digitais disruptivas do nosso tempo, são determinadas de tal maneira pelos avanços dos semicondutores, que estão presentes em todos os dispositivos eletroeletrônicos, oferecendo respostas desde aos temas cotidianos, até as questões mais complexas das relações em sociedade.

Dominar seu conhecimento, seus mecanismos e sua produção fabril são importantes valores econômicos e geopolíticos e, também, uma questão de segurança nacional, como mostram países e blocos regionais. Sobretudo neste momento de enorme contenda global acercas dos rumos das manufaturas de semicondutores, avultados que foram pela crise da falta de chips no mercado mundial.

Esta realidade foi amplificada, por dois episódios que ocorreram quase simultaneamente. O primeiro, o período da Covid-19, que com seu quadro pandêmico e dramático, catalisou estas reconfigurações e disputas, levando a fechar ou reduzir as produções das maiores plantas destes dispositivos no Pacífico da Ásia, ao mesmo tempo em que aumentava o home office. O segundo, Rússia e Ucrânia, grandes fornecedores de insumos para a produção de semicondutores, tiveram que girar seus esforços para o conflito bélico.

É neste contexto, que os Estados Unidos da América, que nos anos 1970 detinham quase 70% do faturamento do mercado na área, têm hoje menos de 20%. Fato que fez com que aprovassem US$ 280 bilhões de subsídios públicos para avançar em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, em setores mais intensivos em tecnologia, para poderem viabilizar a atração de novas fábricas. Sobretudo para reduzir a dependência do leste asiático, que abastece 80% do mercado global na atualidade, valendo lembrar que China e países da União Europeia, também anunciaram ambiciosos investimentos neste campo.

No Brasil, entrou em operação em 2012 a fábrica de semicondutores Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada – CEITEC –, no estado do Rio Grande do Sul, fruto de uma ampla concertação daquilo que se nomina “Quádrupla Hélice” – governos, academia, empresários e sociedade – que se beneficiou e foi sustentada pela combinação de dois fatores estruturantes:

De um lado, a iniciativa de um conjunto de instrumentos de incentivos governamentais, demandados por empreendedores do ramo da eletroeletrônica, que desejavam que o país tivesse uma política de Estado para a indústria de circuitos integrados. Onde destacam-se: a Lei de Informática (1991); o estudo setorial feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (2002); o Programa Nacional de Microeletrônica (2002), que ganhou um lugar estratégico na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (2004); associados aos Programas CI Brasil (2005); ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (2007), o Plano de Ação Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (2007 – 2010); à Política de Desenvolvimento Produtivo (2008) e ao Plano Brasil Maior (2011).

Justamente, naquele momento de decisão de implantação da fábrica, havia uma iniciativa local da municipalidade da capital gaúcha, chamada “Porto Alegre Tecnópole”, com apoio das Universidades e seus centros de pesquisas, que estudavam as regiões da cidade com maior potencial tecnológico para atração de investimentos baseados na nova economia, ou seja, intensivos em tecnologia e inovação, que também se somou aos instrumentos acima.

De outro lado, após implantação do empreendimento, da arquitetura de seu processo de governança, do seu planejamento, do começo da gestão, da operacionalidade fabril e da entrada em comercialização dos produtos da empresa, projeto seguiu aquilo que se nomina de “curva de aprendizado e maturação”. Uma evidência empírico-científica, reconhecida internacionalmente, que mostra que cases similares em outros lugares no mundo, levaram no mínimo dez anos para passarem à condição de receitas maiores que despesas.

E quando resultados começavam a aparecer e estudos técnicos apontavam um superavit de R$ 13 milhões para o ano de 2024, sobretudo porque estaria em condições plenas para a entrega de seus já reconhecidos produtos, como: identificação animal, smart cards, pulseiras, tags em veículos, identificações de bagagens, controles logísticos, sensores de controles de medicamentos e o chamado “chip do passaporte”, surgiu a encomendada governamental compensadora da Casa da Moeda, em 2017, por este último dispositivo. Que após desenvolvimento e obtenção de certificação internacional, estava pronto para entrar em produção. Mas eis que incumbência foi inexplicavelmente interrompida, o que certamente, comprometeu esta possível condição superavitária.

E para o estarrecimento de setores da sociedade brasileira e mesmo de fora do país, enquanto mundo investe para implantar fábricas de chips como parte de suas estratégias geopolíticas e comerciais, o governo publicou no Diário Oficial da União, em dezembro de 2020, o decreto nº 10.578, de liquidação da empresa. Em base a um expedito fluxo de caixa autorreferido no Programa de Parecerias e Investimentos (PPI), que não guardou nenhuma relação com os números do Relatório de Atendimento de Metas e Resultados 2019, nem o Relatório de Gestão 2019 e muito menos o Relatório Administrativo 2019 da empresa, emitidos periodicamente pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Além de contrariar análises de especialistas que previam resultados superavitários para 2024.

De onde conclui-se que, de duas, uma: ou o Tribunal de Contas da União, que já apontou irregularidades neste processo, orienta agora pela remoção da liquidação do PPI, levando executivo a anular o decreto emitido; ou um novo governo terá a inexorável responsabilidade de preservar a CEITEC, única fabricante de chips na América Latina, como um dever soberano de nação.

Só assim, consolidaremos como prática aquilo que todas as grandes potências do mundo querem hoje, qual seja, ter o domínio, a expertise científico-técnico e o aprendizado fabril a partir da capacitação e manutenção de recursos humanos locais altamente qualificados, para termos independência no setor.

E de forma autônoma, podermos avançar ao menos, na diminuição do deficit da balança comercial tecnológica brasileira, tendo no horizonte estratégico sua quitação e a inserção soberana e definitiva do Brasil no seleto grupo mundial de produção de chips.

*Adão Villaverde é professor na Escola Politécnica da PUC-RS.

*Livio Amaral é professor titular do Instituto de Física da UFRGS.

Publicado originalmente no jornal GGN.

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