Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*
Comentário sobre o filme dirigido por Rodrigo Felha
1.
Ser gay, em uma favela, traz questões ligadas às interseccionalidades. Além do marcador identitário ligado à sexualidade, outros marcadores são carregados por aqueles que são alvos de preconceitos, estigmas e exclusões.
Pensemos na situação vivida por uma travesti negra, pobre e fora dos padrões de beleza valorizados e impostos. Condições bem diferentes das vivenciadas por aquele empresário homossexual, residente em um condomínio de luxo no Leblon carioca. Ambos são integrantes da sigla LGBTQIAPN+, mas vivendo em situações socioeconômicas diversas. Como eles se veem e se tratam?
As atitudes preconceituosas são observadas em todos os contextos sociais, incluindo os ambientes frequentados por quem delas sofre. Rompamos com visões ingênuas acerca dos sujeitos alvejados por ações discriminatórias, entre os quais as bichas ricas. Estas, protagonizam cenas reveladoras de tratamentos diferenciados para com aqueles que vivem na pobreza. Os guetos reproduzem posturas classistas. E se forem viados negros, pobres, favelizados, o peso estigmatizante é ainda maior.
Favelas são espaços geográficos criminalizados, associados a lugares onde moram os “perigosos”. Bicha rica vai a boates, saunas e inferninhos frequentados pelos seus “iguais”, em especial os que usufruem do mesmo nível de conta bancária. Isto não é novidade quando abordamos uma sociedade classista, camarotizada.
O viado favelado não é convidado para o camarote vip. O filme Favela gay (2014), dirigido por Rodrigo Felha, mostra histórias de vida, trajetórias individuais de quem assumiu a sua identidade sexual em zonas pobres, periféricas, criminalizadas. Enfrentamentos familiares, geracionais, convivência com o tráfico, transições de gênero, pista da prostituição, evangelismo, baile funk, abuso sexual, as violentações sofridas e as várias emoções e sentimentos vividos por pessoas LGBTQIAPN+, favelizadas, ganham voz e vez em um texto fílmico no qual são protagonistas e projetam visibilidade.
O nós do morro, vocalizado pela transexual Martinha, diz ter chegado ao patamar de fazer parte “da ala feminina da minha família”. Da Rocinha, relata ter ganho ovada, tomatada, surra de lixo e ter passado seis meses sem falar com a sua mãe. Depoimento dado por um ser humano transformado pelo objetivo de querer “ser fêmea” por pensar “como mulher”.
Memórias de experiências vividas no “fazer corpo” e identidade. Um trajeto de constituição da pessoa, em uma narrativa de humanidade. Na tela, vemos Marta Júlia relatando o seu batismo de reconhecimento, em um valão, e “dando o nome” a uma existência afirmada por uma sujeita feminina no processo de construção identitária, em “um universo de possibilidades” (SOUZA, 2024).
2.
Cinema vivido na perspectiva de uma pedagogia libertadora. No interesse em como os filmes “criam discursos públicos populares”, os ativos espectadores atentam para os “múltiplos pontos de vista” neles expressos. Em narrativas visuais, mensagens políticas sobre raça, classe e sexo nas telas.
Experiência cinematográfica de ver, “sob um novo ângulo”, as práticas discursivas projetadas. Narrativas contra-hegemônicas desafiam as estruturas dominadoras do “patriarcado supremacista branco capitalista” (HOOKS, 2023, p.19). Flechadas artísticas na mira de corpos dissidentes, pesquisados, inquietos, afetuosos, irmanados, ativistas e pensantes nas “idas e vindas entre o individual e o coletivo” (SOUZA, 2024, p.24). Artistas e pesquisadores, na conjugação do verbo descolonizar, constroem diálogos e compromissos teóricos, afetivos e políticos.
A luz mágica do cinema vai ao baile funk do Coroado CDD. Um trabalho de pesquisa busca informações com o Grupo Transrevolução. Pesquisadores na realização cinematográfica. Pesquisar a diversidade humana LGBTQIAPN+ no cenário da Favela gay. O cineasta ruma para a Rocinha, a Cidade de Deus, o Rio das Pedras, o Complexo da Maré, o Andaraí, o Vidigal, o Complexo do Alemão. Territórios cariocas para filmarem uma multiplicidade de vozes assumidas.
Pluralidade humana de uma comunidade irmanada por lutas contra a negação do direito de serem quem são. Falas de pessoas ilustres nos locais em que habitam. Depoimentos de dor, alegria, drama e humor. Carnavais e cinzas. Viados e bichas diversas subjetivam na complexidade situacional das suas multicores existências.
Gente “dando o nome”, em narrativas de humanidade. Fascínio e terror nas vidas cotidianas dos que ousam ser no enfrentamento das coerções sociais. Seguem os nomes dos (as) protagonistas, dos (as) favelados (as) gays, em papéis principais na concepção fílmica focalizada: o maquiador Maxwell Pinheiro; a cabeleireira Martinha; o cabeleireiro Flávio Ruivo; a estudante Rafaella; Gilmara Cunha, a presidenta do Grupo Conexão G; Jean Wyllys, deputado federal; o coreógrafo Carlinhos do Salgueiro; o casal de lésbicas Dejah Idalice, coreógrafa, e a cantora Jeckie Brown; Guinha, presidente do grupo diversidade LGBT do Complexo do Alemão; Pandora e Michelli. Na trilha sonora de Ricardo Imperatore, Madame Satã é revivido pelo “Carlinhos do Salgayro”, em um alegre “gaymado”.
Da favela, habitada por gays diversos, para a sociologia das “cidades enquanto agentes políticos, econômicos e sociais”. As cidades globais e os espaços urbanos caracterizam-se “por seus altos níveis de desigualdade”. A cidade do Rio de Janeiro ilustra um ambiente concreto, construído por zonas, no qual coexistem “a pobreza e a prosperidade”.
Imagens de uma urbanização conflituosa, com tendências decadentes e visuais reveladores do “esplendor da riqueza” coexistindo lado a lado com “a degradação da pobreza”. Um ponto principal: “o contato entre esses dois mundos pode ser mínimo” (GIDDENS, 2005, p.476).
*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Referência
Favela gay
Brasil, documentário, 2013, 72 minutos
Direção: Rodrigo Felha.
Bibliografia
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
HOOKS, Bell. Cinema vivido: raça, classe e sexo nas telas. São Paulo: Elefante, 2023.
SOUZA, Dediane. Dando o nome: narrativa de humanidade de travestis. Fortaleza: Editora UFC, 2024.
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