Por DANIEL COSTA*
Comentário sobre o livro recém-lançado organizado por Carlos Alberto Bello, Cibele Rizek, Joana Barros e Leonardo Mello e Silva
Acaba de ser disponibilizado para download de forma gratuita o livro, Francisco de Oliveira: questões, diálogos, depoimentos; organizado por Carlos Alberto Bello, Cibele Rizek, Joana Barros e Leonardo Mello e Silva, a publicação é mais que uma homenagem ao mestre pernambucano, é um convite ao leitor familiarizado ou não a sua produção intelectual conhecer os meandros de um dos grandes pensadores da realidade brasileira a partir da segunda metade do século XX.
Francisco de Oliveira iniciou seus estudos na Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco. Entre 1959 e 1964 integrou os quadros da SUDENE, trabalhando ao lado de Celso Furtado, a experiência que seria interrompida com o golpe civil-militar ocorrido em 1964 seria fundamental na trajetória intelectual de Chico de Oliveira. Preso após o golpe parte para o exílio, de onde retornaria em 1969, passando a integrar os quadros do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), ao lado de intelectuais como Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Paul Singer.
Ao longo dos anos 1980, Chico participaria ativamente da construção do Partido dos Trabalhadores, com o qual romperia nos primeiros anos do governo Lula contribuindo com o processo que culminaria mais tarde na fundação do PSOL. Em 1988, torna-se professor da FFLCH, onde chegaria a ocupar o cargo de Professor Emérito. A publicação aqui comentada teve origem nas intervenções apresentadas ao longo de um seminário organizado pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), centro que foi fundado e alimentado intelectualmente por Chico de Oliveira ao lado de intelectuais como Maria Célia Paoli. Realizado em novembro de 2020, o evento buscou rememorar sua produção e os momentos de convívio e diálogo que marcaram os encontros, seminários, projetos e livros tocados pelo Centro ao longo dos anos.
Segundo os organizadores da coletânea, “rememorar e reler as obras de Francisco de Oliveira, que ocupa um lugar de destaque no pensamento e na produção das Ciências Sociais nacionais, acaba sendo uma recuperação – nem sempre fácil – da história social e política do país. Uma biografia não autorizada do Brasil – aliás, título de sua última obra – pode ser encontrada nos vários momentos e temas de sua produção”. Os organizadores da obra relembram ainda que o seminário realizado em homenagem ao professor, além de discutir sua obra possibilitou o encontro de diversos pesquisadores, alunos, companheiros de jornada, fazendo da mesa de encerramento um momento “emocionado e sensível, rememoramos em conjunto o sentimento que então nos torna, de certo modo, partes de uma mesma família: “somos filhos fundadores”, “somos todos filhos de Francisco”.
Com uma rica obra, permeada de diversas influências, a produção intelectual “oliveiriana” proporciona aquele que pretende desvendar os caminhos e descaminhos da construção desse verdadeiro ornitorrinco chamado Brasil, as mais variadas chaves interpretativas. Essa variedade de leituras, lembram os organizadores na introdução da coletânea, assim como a identificação de diálogos com outros pensadores e cientistas sociais, tecendo um verdadeiro “novelo de heranças e de lembranças parece conter um tesouro que agora partilhamos numa forma escrita. Esse tesouro reside na crítica sem ponto de repouso, em uma inquietação intelectual permanente, em um inconformismo com o que está dado, em uma escolha das leituras a contrapelo que vão da Crítica à razão dualista, de 1972, até os últimos textos sobre a tragédia brasileira”.
De acordo com os organizadores do evento e em consequência da publicação em questão, pode ser entendida como complemento e/ ou atualização de uma empreitada ocorrida em 2003, também na FFLCH-USP, um seminário sobre a obra de Francisco de Oliveira que resultou no livro organizado pela professora Cibele Rizek (que agora comparece, novamente, como organizadora desta edição) e pelo professor Wagner de Melo Romão, Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica (Ed. UFMG, 2006). Desde então, muitos anos se passaram, e a produção de Chico se complexificou, deslocando-se da problemática do desmanche de uma promessa de desenvolvimento para o país até o diagnóstico sombrio de uma “hegemonia às avessas”.
Momento em que Francisco de Oliveira mostrou além de acurada visão para a analisar o momento que o país atravessava, como para travar uma verdadeira batalha intelectual, “quando boa parte da intelligentsia e das forças progressistas apostavam na virada de jogo representada pela chegada de um líder operário ao poder de Estado. No meio do caminho, fomos avisados que havia o ornitorrinco”. O próprio autor dessas linhas é testemunha dos acirrados debates realizados nos seminários do Cenedic em longínquas tardes de sextas, quando pude testemunhar ainda sem ter a real clareza da dimensão de tais debates, a discussão por exemplo, entre Chico de Oliveira e Carlos Nelson Coutinho em torno do conceito de hegemonia.
As seções da coletânea foram organizadas de forma temática: a questão regional; o tópico que poderíamos, designar como a “forma-ornitorrinco”, enquanto via especificamente brasileira – e não apenas mais geralmente latino-americana – de inserção no neoliberalismo; e finalmente os motivos mais clássicos – isto é, mais marxistas – do Estado e das classes sociais, dispersos em suas obras. Cada seção conta com três intervenções.
Segundo os organizadores, a primeira sessão tem como eixo a experiência pessoal e profissional (enquanto pesquisador e docente) de Chico, “respectivamente como nordestino e como adjunto do grande mestre Celso Furtado na Sudene, da qual foram retirados pelo golpe de 1964. Entre economia, sociedade e política, ele pensava a dinâmica capitalista brasileira sob o prisma do desenvolvimento econômico-social e das lutas em torno da desigualdade social e regional”.
Na segunda seção é apresentado e discutido “um segundo eixo da produção de Chico, embora cronologicamente situado mais à frente em seu percurso intelectual, e que foi por nós denominado como “O Brasil Ornitorrinco”. Terreno de confluência entre as dimensões socioeconômicas e político-ideológicas do entrelaçamento das questões do desenvolvimento nacional e das desigualdades sociais brasileiras, pedia um investimento de peso, por sua abrangência e escopo”.
Um terceiro eixo da produção de Chico, nomeado pelos organizadores como “Trabalho, Economia, Política e Direitos da Cidadania”, traz “os ecos de seu seminal trabalho Crítica à razão dualista, assim como do instigante ensaio do final dos anos 1980, “O surgimento do antivalor”. Quanto aos “direitos da cidadania”, buscou-se estabelecer diálogos acerca das diversas dimensões desses direitos na obra de Chico; nessa altura, a ênfase foi posta especialmente na produção intelectual relacionada à sua participação no Cenedic, ocasião muito particular em que o marxismo oliveiriano (ou “furtadiano”) dialogou com abordagens da sociologia política. Em especial, entra aqui, nesta seção, a dimensão histórica de ascensão dos direitos nos anos 1980, seu desmanche nos anos 1990, e as trajetórias complexas dos anos 2000 (a partir do que poderíamos chamar de “momento-Ornitorrinco”, como se viu acima)”.
Por fim a coletânea é encerrada com uma seção de depoimentos, de caráter mais pessoal (em certos casos, os textos têm até mesmo formato de crônica), menos dependente de um motivo teórico evidente, e sem pretensões abstratas. Assim, os textos publicados convidam o leitor a realizar por meio do legado intelectual de Francisco de Oliveira, a realização de “outras possíveis conexões”, possibilitando “tomar outras vias ainda de desenvolvimento”, o que atesta a presença de Chico de Oliveira como “uma fonte contemporânea de questões e de problemas de pesquisa. Outro aspecto que também não deve ser esquecido é o pendor formativo (talvez não intencional no próprio Chico) associado à sua figura, conforme bem notado por Wolfgang Leo Maar em texto desta coletânea”.
No momento em que a sociedade brasileira vê se diante do início de um novo ciclo de reconstrução democrática com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, o pensamento de Chico de Oliveira segue como um dos grandes combustíveis para fomentar a análise daqueles que se debruçam sobre as contradições da nossa sociedade, e o livro organizado pelos professores Carlos Alberto Bello, Cibele Rizek, Joana Barros e Leonardo Mello e Silva aparece como guia fundamental para percorrer os caminhos desse intelectual revolucionário.
*Daniel Costa é graduado em história pela Unifesp.
Referência
Carlos A. Bello, Cibele Rizek, Joana Barros e Leonardo M. e Silva (orgs).
Francisco de Oliveira: questões, diálogos, depoimentos. São Paulo, FFLCH/USP, 226 págs. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2022/10/Francisco-de-oliveira_questoes-dialogos-depoimentos.pdf
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