Freud no século XXI

Vooria Ária, Perecível, 2016
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Por GILSON IANNINI

Trecho do livro recém-lançado

Para que serve uma análise? Crítica e clínica

Circulou nas redes sociais que uma psicanalista com forte apelo midiático cobraria R$ 1.000 por consulta. Nos grupos de WhatsApp e cantinas universitárias, não se falava de outra coisa. A psicanálise seria, definitivamente, uma prática de burguês para burguês, repetia-se. Também, continua o barulho, o que esperar de uma vertente que nunca escondeu que o objetivo do tratamento seria “restaurar no sujeito a capacidade de amar e trabalhar”? Afinal, existiram ou existem versões da prática analítica que se prestam a consolidar e reforçar esse estereótipo. Mais grave, a própria história da psicanálise teria comprovado essa visão mais de uma vez, em mais de um lugar.[i]

E isso, apesar de vários esforços de Lacan, repetidos à exaustão, até mesmo na grande imprensa: “Já foi escrito que o propósito da análise é adaptar o sujeito, não completamente ao meio externo, digamos, à sua vida ou às suas verdadeiras necessidades; isso significa claramente que a sanção de uma análise seria que se tornasse um pai perfeito, um marido modelo, um cidadão ideal, em suma, que alguém é alguém “tão tolerante” que não discute mais nada. O que é completamente falso, tão falso quanto o primeiro preconceito que via na psicanálise um meio de se libertar de todo constrangimento” (Lacan, 2021).

Amar e trabalhar?

Segundo certa leitura, a própria meta do tratamento analítico, tal como enunciada expressamente por Freud, comprovaria a veracidade da dóxa: afinal, a finalidade de uma análise não seria devolver as capacidades perdidas de amar e de trabalhar?

Apesar de todas as belas formulações e complicadas teorias, ao fim e ao cabo, o que a psicanálise visaria é ao restabelecimento do amor romântico cis-heteronormativo e à integração ao mercado capitalista de trabalho. Neste livro, proponho uma visão radicalmente distinta dessa. Antes de abordá-la, quero retomar algumas passagens de Freud regularmente mobilizadas em favor daquela versão.

Feliz ou infelizmente, ao lado de certa tradição de leitura, de traduções duvidosas e de burburinhos da opinião comum, temos os textos de Freud, e podemos recorrer a eles. Três citações principais costumam ser lembradas para inferir a meta do tratamento analítico, tal como exposto antes. Elas se referem respectivamente a “O método psicanalítico freudiano”, de 1905, “Luto e melancolia”, de 1917, e “A questão da análise leiga”, de 1926.

Freud funda não apenas uma disciplina, mas também sua própria mitologia. Uma das mais curiosas autoficções por ele criadas começa assim: “O método peculiar de psicoterapia que Freud exerce e chama de psicanálise tem sua origem no chamado processo catártico” (Freud, [1905] 2017, p. 51). O texto está escrito em terceira pessoa.

Um pouco mais para frente, lê-se: “Se o trabalho catártico já havia abdicado da sugestão, Freud, por sua vez, deu um passo além e também desistiu da hipnose. Atualmente, ele atende os seus doentes deixando que eles se posicionem confortavelmente em um divã, sem qualquer outro tipo de influenciamento, enquanto ele próprio, fora do escopo visual dos pacientes, senta-se em uma cadeira atrás deles. Ele também não exige que fechem os olhos e evita qualquer contato e todo procedimento que possa lembrar a hipnose. Portanto, uma sessão assim transcorre como uma conversa entre duas pessoas igualmente despertas, sendo que uma delas poupa todo e qualquer esforço muscular, assim como toda impressão dos sentidos que possa atrapalhar a concentração na sua própria atividade anímica” (Freud, [1905] 2017, p. 52-53).

O texto se chama “O MÉTODO PSICANALÍTICO FREUDIANO”, grafado assim mesmo, em caixa-alta, e foi publicado em 1905. Trata-se de uma contribuição para o livro de Leopold Loewenfeld Die psychischen Zwangserscheinungen (Os fenômenos compulsivos psíquicos). Conforme relata James Strachey, tudo indica que a contribuição de Freud tenha sido redigida um pouco antes de novembro de 1903, data em que Loewenfeld assina o prefácio da obra.

Sua importância para Freud é tal que, em 1909, numa nota de rodapé a seu estudo clínico sobre o Homem dos Ratos, confessa que seu livro de cabeceira, seu manual-padrão para a abordagem da neurose obsessiva, continuava sendo o livro de Loewenfeld. Freud resenha a si mesmo, relata, em terceira pessoa, a gênese da disciplina que ele mesmo cria, engrossando o caldo de sua narrativa heroica. Pode soar até um pouco desonesto. Mas o diabo mora nos detalhes. Então, se afinarmos um pouquinho melhor nossa leitura, notaremos que o texto está todo entre aspas e que, portanto, deveríamos citá-lo com aspas duplicadas: ““O método peculiar de psicoterapia que Freud exerce e chama de Psicanálise””.

De que distância se trata aqui? O que significa esse salto para trás, para fora da cena, senão uma maneira de incluir-se por fora? Mas o que me interessa aqui são duas coisas: o estatuto do tratamento analítico, com ênfase na arte da interpretação, e as metas de uma análise.

Ao longo da década de 1890, a técnica freudiana havia sofrido diversas modificações. Foi por isso que Freud aceitou o convite de Loewenfeld para recensear as modificações técnicas posteriores aos Estudos sobre a histeria, publicados pouco antes. Além disso, lembra Paul-Laurent Assoun (2009), era a oportunidade perfeita para promulgar oficialmente a psicanálise como técnica terapêutica, em um momento em que o tratamento analítico já havia começado a se instituir internacionalmente, notadamente com Eugen Bleuler, em Zurique.

Esse artigo pode ser lido como a primeira exposição abrangente acerca da técnica psicanalítica, em sua especificidade não apenas com relação à sugestão e à hipnose, que já não empregava há algum tempo, mas, ainda, ao método catártico. Vale lembrar que Freud estava familiarizado com o método catártico havia bastante tempo, desde que Breuer relatara o caso Anna O., o que ocorreu em diversas ocasiões a partir de novembro de 1882. A “talking cure” já havia impressionado o jovem médico bastante precocemente. Por sua vez, o caso Emmy von N., a baronesa Fanny Moser, teria sido um dos acontecimentos decisivos para que Freud abandonasse o método hipnótico, quando ela, por volta de 1889, pediu-lhe que a deixasse falar sem interrupções.

A “arte da interpretação” criada por Freud é correlata à técnica da associação livre, que progressivamente iria se firmar como especificidade da prática analítica, primeiramente de maneira “focal”, depois especificamente “livre”. É digno de nota que, no contexto de um esforço obstinado em reconhecer a cientificidade da psicanálise, Freud designe como “arte” (Kunst) a principal ferramenta técnica de sua jovem ciência.

“A tarefa que o método psicanalítico quer resolver pode ser expressa em várias fórmulas, mas que em essência se equivalem, todas. Pode-se dizer: a tarefa do tratamento é suspender as amnésias. Se todas as lacunas da memória forem preenchidas e todos os efeitos misteriosos da vida psíquica forem esclarecidos, impossibilita-se a continuidade e até mesmo uma nova formação do sofrimento. Podemos formular essa condição de outro modo: tornar todos os recalques reversíveis; o estado psíquico, então, seria o mesmo que aquele em que todas as amnésias foram preenchidas. Em outra formulação, ainda vamos além: tratar-se-ia de tornar o inconsciente acessível ao consciente, o que ocorre através da superação das resistências. Mas não podemos esquecer aqui que um estado ideal como esse também não existe em uma pessoa normal, e que só raras vezes conseguimos nos aproximar minimamente desse ponto no tratamento. Assim como a saúde e a doença não são separadas por princípio, mas apenas por um limite somatório determinável a partir da prática, assim também o objetivo do tratamento nunca será algo diferente do que a cura prática [praktische Genesung] do doente, o estabelecimento de sua capacidade de realizar e de gozar. Em caso de tratamento incompleto ou de resultados imperfeitos desse tratamento, alcançamos principalmente uma melhora significativa do estado psíquico geral do doente, enquanto os sintomas podem continuar existindo, sem, porém, estigmatizá-lo como doente, mas tendo menor importância para ele” (Freud, [1905] 2017, p. 56-57).

O artigo vale, ainda, pela elucidação das relações entre resistência e recalque. Finalmente, e esse é o ponto de chegada do argumento, o artigo de 1905 contém uma das passagens mais citadas, segundo a qual o objetivo do tratamento analítico seria o de estabelecer no paciente “sua capacidade de ‘leisten’ e de ‘genießen’”.

Essa é a primeira das três variantes da frase de Freud que originou a leitura da meta do tratamento analítico como a restituição das capacidades perdidas de “trabalhar” e de “amar”. Contudo, segundo aprendi com Pedro Heliodoro Tavares, “leisten” não significa primordialmente “trabalhar” nem “genießen” significa primariamente “amar”. “Leisten” remete muito mais ao campo semântico de realizar, cumprir, produzir, contribuir e similares, ao passo que “genießen” remete a gozar, desfrutar, apreciar, usufruir, aproveitar, fruir, saborear, curtir. Ou seja, pelo menos desde 1905, a meta de uma análise tem mais a ver com devolver, instaurar ou restaurar capacidades mais genéricas de “realizar” ou “produzir”, por um lado, e “gozar”, “aproveitar”, “curtir”, por outro lado, do que com as significações um tanto mais restritivas ligadas a “trabalhar” e “amar”.

Uma tradução nunca é neutra. “Amar e trabalhar” como metas da cura traduz ainda outra coisa: a matriz adaptativa que pretenderia devolver o sujeito à sua destinação em termos de integração ao mercado produtivo para geração de riquezas, associada ainda à sua realização na esfera do amor, muitas vezes entendido em sua versão hegemônica, matrimonial. Que coach não gostaria de citar essa frase para envelopar o sujeito empresário de si, que gere sua vida e capitaliza sua imagem de família feliz?

Vale assinalar que o tratamento analítico já convive, desde então, com uma perspectiva desinflacionada do sucesso terapêutico. A passagem se conclui lembrando a “incompletude” e a “imperfeição” sempre à espreita. Melhoras significativas poderiam ser obtidas em termos da diminuição do sofrimento psíquico e de sua significação subjetiva, apesar de eventual persistência dos sintomas.

Muitos anos antes, no contexto de sua correspondência com seu amigo Fließ, Freud comemora o término do “caso E.” (Oscar Fellner). Escreve: “E. finalmente concluiu sua carreira de paciente com um convite para jantar em minha casa. Seu enigma está quase totalmente solucionado; sua saúde excelente, sua essência totalmente mudada; dos sintomas permaneceu um resto, no momento. Estou começando a entender que o caráter aparentemente sem fim do tratamento é algo regular e tem a ver com a transferência. Espero que esse resto não prejudique o resultado prático. Só dependia de mim ainda ter continuado com o tratamento, mas percebi que isso seria um compromisso entre o estar doente e o estar sadio, o qual os próprios pacientes desejam e com o qual o médico, por isso mesmo, não deve concordar. A conclusão assintótica do tratamento, que, para mim, é indiferente, continua sendo uma decepção mais para os de fora. De qualquer forma, estarei de olho no paciente” (Freud, [1900] 2017, p. 48).

Esse curto fragmento de caso, relatado em carta de 16 de abril de 1900, interessa por mostrar uma percepção bastante precoce do caráter aparentemente “infinito” ou “sem-fim” (Endlos) do tratamento, anunciando um tema que será sistematizado somente muitos anos mais tarde, em 1937, em seu “A análise finita e a infinita” (“Die endliche und die unendliche Analyse”). Esse fragmento é particularmente importante por aglutinar, de modo embrionário, ideias tais como: o caráter “assintótico” do término de uma análise, que se concluiria por uma decisão do analista; o incontornável “resto” sintomático, com o qual o analista deve moderar sua ambição terapêutica; e, last but not least, a ligação desses fatores com a “transferência”.

Cabe perguntar: como se articulam as metas práticas de restituir as capacidades perdidas de “curtir-gozar” e “realizar-produzir” à perspectiva do resto sintomático inevitável? Temos aqui o esboço de uma teoria do final de análise? A segunda variante textual que gostaria de mencionar aqui é bastante esclarecedora do que dissemos anteriormente e foi extraída de “Luto e melancolia”, de 1917.

Poucas linhas depois de afirmar que “no luto, o mundo se tornou pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio Eu” (Freud, [1917] 2016, p. 102), Freud enfatiza o “extraordinário rebaixamento da autoestima”, comparável a um “delírio de inferioridade”, que torna o melancólico “tão desinteressado, tão incapaz para o amor (Liebe) e para o aproveitamento (Leistung), como ele diz” (Freud, [1917] 2016, p. 103).[ii]Leistung” poderia ser vertido como “realização”, “desempenho”, “produtividade”, “trabalho”. Mas o que importa aqui é que, na frase seguinte, o texto diz do “trabalho interior” que consome o Eu do melancólico: nesse caso, a palavra empregada é, literalmente, “trabalho” (Arbeit). Na variante em questão, temos o emprego textual, na fórmula, do termo “amor” (Liebe).

A terceira variante é extraída de “A questão da análise leiga”, escrito duas décadas mais tarde, em 1926. Na verdade, trata-se de um trecho suprimido da edição-padrão alemã e de suas traduções, sendo pouco provável que tenha exercido algum impacto na recepção.[iii] Contudo, ela interessa na medida em que sugere a continuidade da perspectiva freudiana acerca das metas práticas do tratamento, mesmo no cenário das últimas grandes revisões metapsicológicas.

Isto é, mesmo depois da introdução da pulsão de morte e da teoria estrutural do aparelho psíquico, Freud continua descrevendo aproximadamente nos mesmos termos o que ele espera do tratamento. A passagem constitui uma longa e ferina crítica aos norte-americanos, na qual Freud destaca quatro elementos principais: a dependência dos norte-americanos em relação à “pressão implacável da public opinion” (Freud, [1926] 2017, p. 300), que se transferiria da política até “o empreendimento científico”; sua suposta “openmindedness” (p. 301), que esconderia uma subjacente “incapacidade de julgamento”; sua submissão cega à “efficiency” (p. 301); e a extensão desmesurada da ideologia do “time is Money” (p. 302).

O forte sentimento antiestadunidense dá o tom de seu ceticismo quanto aos destinos da psicanálise nos Estados Unidos. Seria um truísmo dizer que seu anti-norte- americanismo decorre de um sentimento difuso de declínio da influência europeia e de uma espécie de nostalgia de uma perda inevitável do papel geopolítico da Europa. A fraqueza de certa Europa pressentida naquele momento talvez tenha aberto uma pequena brecha pela qual Freud enxergou algo, ou, mais provavelmente, atirou em algo que viu, acertou no que não viu.

Bruno Latour também declara hoje que “não os crimes, mas a atual fraqueza da Europa é uma vantagem da qual os europeus e os outros podem se aproveitar” (Latour, 2020a, p. 360). Mas, além daquela versão quase estereotipada, podemos ler outra coisa. Freud acaba nos revelando a impossibilidade de desvincular os fins práticos do tratamento analítico de uma crítica social radical. O ponto forte dessa passagem diz respeito, portanto, não tanto a uma oposição cultural entre valores europeus decadentes e a ideologia norte-americana galopante, mas, sobretudo, à posição da psicanálise quanto aos valores dominantes do liberalismo econômico em sua versão hegemônica no Ocidente durante o século XX.

Dizendo com todas as letras, o quarteto fantástico formado pela conformidade à opinião pública, pela submissão à eficiência, pela pseudo-cabeça-aberta e pelo servilismo ao ritmo do capitalismo estão nas antípodas da própria psicanálise. Não há como fazer psicanálise sem criticar, ao mesmo tempo, esses valores. O detalhe paródico das palavras citadas em inglês mostra que o que está em jogo não é, por exemplo, a eficiência, mas sua versão ideológica, a efficiency.

Podemos acrescentar à lista de Freud os atuais neuro-enhancement e o doping da vida cotidiana (Han, 2015, p. 67-70). É nesse ponto que lemos: “Mas os decursos entre consciente e inconsciente têm suas próprias condições temporais, que não condizem bem com as exigências americanas. Não é possível transformar no intervalo de três ou quatro meses em um analista eficiente alguém que até então não tinha qualquer entendimento sobre análise, e menos ainda seria possível conduzir o neurótico às mudanças que deveriam lhe restituir as capacidades perdidas de trabalhar e fruir [verlorene Arbeits- und Genußfähigkeiten]” (Freud, [1926] 2017, p. 303).

A temporalidade do inconsciente não é a temporalidade do sistema econômico vigente, que a cada dia mais mostra que o cansaço generalizado é a verdade da sociedade do desempenho (Han, 2015, p. 70). O tipo de cansaço produzido pelo excesso de positividade do estágio atual do capitalismo se materializa no indivíduo como “cansaço solitário” (p. 71). O indivíduo cansado é também afetado em sua capacidade de ver e de falar; ele é, cada vez mais, atingido pela cegueira e pela mudez (p. 72).

Todo esse quadro é profundamente violento, porque seus elementos “destroem qualquer comunidade, qualquer elemento comum, qualquer proximidade, sim, inclusive a própria linguagem” (p. 72). A linguagem perde sua magia, ao mesmo tempo que as comunidades se retraem. O fluxo do inconsciente é outro: ele faz falar ali onde o imperativo do desempenho cala. Ele transporta o silêncio para o lado do analista, como condição para que uma fala não-qualquer possa ressoar uma escuta não qualquer.

Ao fim e ao cabo, reunidas essas três variantes textuais, que recobrem um arco que vai de 1905 a 1926, podemos sintetizar que as metas práticas do tratamento analítico mobilizam duas séries paralelas: a primeira série encadeia “curtir-gozar-amar”, e a segunda série, “produzir-realizar-trabalhar”. Sem prejuízo da percepção acerca do caráter assintótico do tratamento, a cura analítica visaria restituir ao sujeito a possibilidade de se movimentar em algum ponto no interior de alguma combinatória na rede constituída por essas duas séries.

Assim, se, para alguns, a meta de “amar e trabalhar” serve exatamente para bloquear possibilidades de “curtir e realizar”, para outros, nada obsta que aquelas mesmas metas possam funcionar como saídas mais do que legítimas. As duas séries paralelas permitem combinações diversas. Podemos representar isso de várias maneiras.

Por exemplo, numa estrutura combinatória simples, em que se exigisse sempre um par formado por um elemento de cada série, formaríamos, com as séries “curtir-gozar-amar” e “produzir-realizar-trabalhar”, um total de nove combinações possíveis: curtir-produzir; curtir-realizar; curtir-trabalhar, e assim por diante. Isso se pensarmos a linguagem em termos estruturais e suas combinatórias. Lembremos, contudo, que linguagem é magia empalidecida.

Poderíamos, portanto, recuperar o que está sedimentado em cada segmento, em cada feixe. Representando cada uma dessas palavras como pontos nodais de redes complexas, cada um deles contendo restos da história daquilo que foi rejeitado (como uma ruína contém uma cidade), das significações socialmente compartilhadas, mas, ao mesmo tempo, cortando cada um desses planos com a maneira radicalmente singular como cada corpo falante declina sua trajetória nesse espaço, teríamos não um tabuleiro de xadrez, mas um espaço multidimensional, uma espécie de rede: uma nuvem fina e alongada que indica a direção do vento. Ao fim e ao cabo, o que importa é que o sujeito as torne suas, incorpore-as, como resultado, não como meta.

Cada um, de maneira radicalmente singular e imprevisível, vai inventar uma maneira de, a partir das amarrações que consegue fazer, virar-se com o que está aí. Certamente, uma das melhores maneiras de aprofundar esse tema seria examinar sistematicamente os relatos de final de análise. Não são poucos os testemunhos em que lemos algo como a possibilidade de uma satisfação a mais. Por exemplo, “o que antes tomava como agitação dispersa, passei a tomar, não só como um prazer a mais, mas como o modo singular de me apegar à vida” (Vieira, 2018, p. 97).

Quando comenta a frase “restituir as capacidades perdidas de trabalhar e de fruir [verlorene Arbeits- und Genußfähigkeiten]”, Joyce McDougall complementa, entre parênteses, com a expressão: “avec plaisir!”, “com prazer”.[iv] Na língua de Guimarães Rosa, esse “leite que a vaca não prometeu”.

*Gilson Iannini, psicanalista, é professor do Departamento de Psicologia da UFMG. É autor, entre outros livros, de Estilo e verdade em Jacques Lacan (Autêntica).

Referência


Gilson Iannini. Freud no século XXI. Volume I. O que é psicanálise?. Belo Horizonte, Autêntica, 2024, 342 págs. [https://amzn.to/3YituOq]

Notas


[i] Cf., por exemplo, Bulamah (2014).

[ii] Tradução ligeiramente modificada.

[iii] O trecho restituído por completo pode ser lido no volume Fundamentos da clínica psicanalítica (cf. Freud, [1926] 2017, p. 300-304).

[iv] Cf. McDougall (1988).


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