Gestão do SUS: o que fazer? – II

Imagem: Cottonbro
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Por FRANCISCO BATISTA JÚNIOR*

As formas de organização que vêm sendo propostas para o SUS, como modalidades de gestão do sistema e o caso dos hospitais federais do Rio de Janeiro

Na Parte 1 desta série abordei aspectos relacionados ao modelo de atenção e ao financiamento do nosso sistema universal de saúde, bem como as relações público-privado na saúde e as relações de trabalho no SUS. Nesta Parte 2 analiso as formas de organização que vêm sendo propostas para o SUS, como modalidades de gestão do sistema, a saber: a fundação “estatal” de direito privado, o serviço social autônomo e a empresa pública, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Concluo esta Parte 2 com considerações sobre o caso dos hospitais federais da cidade do Rio de Janeiro.

Fundação “estatal” de direito privado, serviço social autônomo ou EBSERH no MEC

As propostas de fundação “estatal”, Serviço Social Autônomo e EBSERH são muito corajosas, para dizer o mínimo, quando recordamos o nefasto histórico de empreguismo, utilização político-partidária e de corrupção que caracterizam ferramentas semelhantes no Brasil, inclusive nas atuais, como nos mostra o noticiário frequente da mídia. Além disso, têm para nós um grave problema na sua origem: foram gestadas entre quatro paredes, sem que em nenhum momento os dois principais interessados – usuários do sistema e trabalhadores – fossem ouvidos.

Em 2007, foi necessário que o Conselho Nacional de Saúde pautasse o tema das Fundações, para que pudesse ser ouvido pelo governo. Num desrespeito flagrante, o governo enviou à época o Projeto de Lei (PL) para o Congresso Nacional apesar de posição contrária do colegiado maior do Controle Social do SUS e das Conferências de Saúde.

Mesmo tendo sustado a tramitação do Projeto de Lei em função da ampla mobilização nacional contra a proposta, deflagrada pelo Conselho Nacional de Saúde, no último dia do seu mandato o Governo Lula em outro momento profundamente infeliz, criou, vinculada ao Ministério da Educação e através de Medida Provisória, a fundação estatal de direito privado piorada, com o nome de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e, pasmem, como uma empresa do tipo sociedade anônima. Nos chama a atenção nesses processos políticos, o método autoritário praticado pelo governo em áreas tão vitais e com um importante histórico de participação popular e construção coletiva.

Sem entrar no mérito jurídico da proposta, onde há contestações em profusão, os defensores das fundações estatais de direito privado, do Serviço Social Autônomo e da EBSERH afirmam que “somente atividades próprias ou típicas do Estado necessitam de determinadas proteções, como a da estabilidade, que resguarda o servidor de influências que o impeçam do exercício de suas funções públicas. O exercício de atividades que também o mundo privado se ocupa, as quais muitas vezes, até complementam os serviços públicos, como é o caso da saúde, não necessitam da mesma proteção como a fiscalização, regulamentação e controle” (texto publicado pelo Governo na época do PL das Fundações).

Os mesmos atores defendem que a fundação, o Serviço Social Autônomo e a EBSERH tenham total autonomia e isenção tributária, não se sujeitem aos limites de gastos com pessoal, impostos pela lei de Responsabilidade Fiscal, e não se submetam ao teto remuneratório. Um “coquetel” de boas promessas – umas nem tanto – sem antes, na opinião de juristas renomados, combinar com o texto constitucional. Portanto, teriam todas as possibilidades de “cooptar” determinados profissionais de acordo com os salários de mercado.

Escreveram o seguinte: “o conceito de postos profissionais, remunerados com base nos valores praticados no mercado concede maior eficácia e eficiência gerencial a essas organizações, além da possibilidade de cooptação e manutenção de quadros qualificados profissionais”. Sobre isso, afirmamos: pobre de um sistema de saúde que propõe “cooptar” profissionais, tendo como referência o mercado e não um processo mais amplo de valorização e de consequente convencimento!

No momento em que, com certeza, fazem inveja ao mais liberal pensador sobre relações de trabalho no setor público, eles praticam Planos de Cargos e Salários com distinção de remuneração e de tratamento entre categorias profissionais de um mesmo nível de formação, num gesto tão ousado que não teve nem nos arautos do neoliberalismo atores com coragem suficiente para verbalizá-lo, muito menos implantar.

Afirmam com toda a ênfase que o modelo público/estatal de gestão, “engessado e burocrático” está morto. Perguntamos: a qual modelo de gestão se referem? Se é ao modelo majoritário e predominante sobre o qual não temos nenhuma ingerência ou participação e que contraria os princípios do SUS, se fundamenta no fisiologismo, na troca de favores políticos, na ocupação dos cargos a partir de interesses pessoais, corporativos e políticos, em detrimento da competência, da profissionalização e das relações compromissadas, nós concordamos. Aliás, sempre fomos contra e o denunciamos, uma vez que fere frontalmente as normas do SUS. Afinal, não é esse modelo que o SUS preconiza.

Por fim, ficam possessos quando reiteramos que a fundação de direito privado, o Serviço Social Autônomo e a EBSERH são processos de privatização. Dizem que “são instituições do Estado, públicas e controladas pelo governo”, como se privatização se resumisse ao conceito clássico de venda de uma empresa pública no mercado formal.

Na impossibilidade legal da privatização clássica, na saúde historicamente ela tem acontecido de maneira mais elaborada e perversa. O patrimônio continua sendo público, mas a sua administração e literalmente, a sua exploração, econômica e política, é feita por grupos organizados que o gerenciam de acordo com os seus interesses e para atender as suas demandas políticas, particulares e do grupo correspondente. É para esse fim que no Brasil tem se constituído as fundações e, como dizemos, as congêneres.

Ressalte-se que mesmo as fundações de direito público como de resto e para sermos honestos, basicamente toda a estrutura de serviços públicos no Brasil, independentemente de serem ou não fundações, são em maior ou menor grau, privatizadas dessa maneira. É o modus operandi patrimonialista tupiniquim que está na raiz de nossas misérias sociais, econômicas e políticas.

A questão que está em debate em relação às fundações estatais de direito privado e congêneres é que nessas – diferentemente das fundações de direito público –, sem a obediência aos ditames concebidos nos conceitos da Reforma Sanitária e dispondo de toda a autonomia que se desenha, o processo de espoliação política do patrimônio público torna-se mais farto, incontrolável e danoso ao interesse da população e do país. Disso a nossa experiência não deixa qualquer margem de dúvidas e essa tem sido sim, na nossa história pregressa, a forma mais vil e desonesta de privatização do Estado brasileiro.

As nomeações clientelistas e indicações políticas são mantidas, aprofundadas e fortalecidas, os salários diferenciados para os privilegiados, garantidos, e os interesses patrimonialistas são plenamente atendidos pela gestão “autônoma e diferenciada” à margem do controle social.

A proposta de fundação estatal de direito privado e congêneres está na verdade tão desmoralizada, que até estados que a criaram através de leis, ou não implementaram ou implementaram e tiveram seus problemas aprofundados ou simplesmente aderiram às Organizações Sociais, como são os casos do Rio de Janeiro e Pernambuco e, surpresa maior para nós, a Bahia que, entre outras excrescências, foi o primeiro estado brasileiro a adotar as famigeradas “parcerias público-privadas” na saúde. Isso porque seus defensores faziam a apologia das referidas “fundações estatais” como alternativa exatamente às Organizações Sociais, até então por eles consideradas ilegais e “desconstrutoras” do SUS.

Por enquanto os Serviços Sociais Autônomos encontraram terreno fértil em Minas Gerais onde em nada contribuíram para resolver as questões da saúde, e a EBSERH, com orçamento bilionário, implantada em praticamente todos os estados da federação com a promessa de resolver todos os problemas dos Hospitais Universitários, não somente não os resolveu como criou outros bem piores, como privilégios de castas dirigentes e assédio moral contra os trabalhadores como regra. Os problemas estruturais permanecem.

A verdade é que, criadas e implantadas por atores políticos que se afirmam identificados com a esquerda, com a defesa do SUS e com a Reforma Sanitária,  as Fundações Estatais de  Direito Privado, os Serviços Sociais Autônomos e a EBSERH  constituem a opção ideológica pela criação de verdadeiros aparelhos e aparatos políticos onde se lambuzam com o clientelismo, patrimonialismo e a ocupação do Estado através de grupos que exercitam as negociatas políticas em sua plenitude ao mesmo tempo em que se locupletam com seus privilégios e supersalários, a privatização enfim mais perversa que há. E isso é, lembremos, tudo o que queremos extirpar do Estado e da administração pública brasileira, nunca fortalecer.

O Estado brasileiro, e o SUS em particular, são vítimas portanto, dos piores inimigos que podem ter, atores travestidos de defensores do projeto apresentado pela Reforma Sanitária, verdadeiros revisionistas que de há muito abandonaram os princípios das transformações por ela – a reforma sanitária – preconizados, caindo nos braços da histórica e pregressa cultura tupiniquim fundada no clientelismo, no fisiologismo, no patrimonialismo e no assalto às estruturas e instituições de Poder no país. Deslumbrados com esse (provisório) Poder, exercitam o autoritarismo e a truculência de forma plena, não veem qualquer problema no fato da saúde ser um produto do mercado e são contra o Regime Jurídico Único e a estabilidade dos servidores do SUS. Afinal são coisas que se não inviabilizam, dificultam e muito seu projeto de Poder.

Conclusão inquestionável: onde o SUS foi atacado e vitimado pelas Organizações Sociais, OSCIP, Fundações “Estatais” de Direito Privado, Serviços Sociais Autônomos, EBSERH, “Parceiros Privados” e congêneres, além de não resolverem nenhum desafio que estava colocado na gestão, aprofundaram os problemas que existiam e foram criados outros num processo que tem cada vez mais asfixiado nosso Sistema e penalizado a população e o Estado.

O caso Rio de Janeiro – a bola da vez

Mais uma vez os Hospitais Federais do Rio de Janeiro estão na berlinda acusados das mais variadas irregularidades que se estendem desde os aspectos legais até o que se convenciona chamar de incompetência e incapacidade de atender à população. Prestadores de serviços especializados e de alto custo e historicamente desenvolvendo um trabalho de excelência e de importância incomensurável ao estado e ao país, os hospitais federais do Rio de Janeiro têm sido vítimas exemplares da ditadura de grupos políticos que exploram suas gestões como forma de clientelismo e compadrio político.

As denúncias de corrupção e de ineficiência são feitas sem que nunca o dedo seja colocado na ferida e dessa vez a situação se tornou insustentável. Loteados por políticos da base do governo Lula, os hospitais agonizam sob a batuta de pessoas que, antes de trabalharem para seu fortalecimento, atuam prioritariamente “operando” para atender aos interesses dos grupos e conluios políticos que as indicam.

Não foi difícil imaginar o que aconteceria quando a última crise eclodiu de vez. Sabíamos que era a oportunidade que os revisionistas deslumbrados esperavam para implantar, também no Rio de Janeiro e no plano federal, seus aparelhos políticos prontos para as negociações de Poder. Entrega de um ao município do Rio de Janeiro onde fatalmente será negociado com uma Organização Social; outro à Fundação Oswaldo Cruz; outro mais ao Grupo Hospitalar Conceição do Rio Grande do Sul; mais um à EBSERH; e a possibilidade de transferir outro mais para uma “parceria público-privada”. Sem qualquer debate com o controle social, com os trabalhadores, academia e movimento social, isso revela como os revisionistas estão determinados na sua saga incontrolada e ensandecida de desconstruir o SUS.

Impressiona como eles, quando se trata de gerir e administrar a rede do SUS, não conseguem enxergar outra coisa que não seja a entrega dessa tarefa a um intermediário que possa ser utilizado como um aparelho político a ser manuseado de acordo com as forças envolvidas no processo. Impressiona como eles colocam em último plano os reais interesses da população e do próprio Sistema Único de Saúde, historicamente vítimas desses interesses e da permanente disputa pelo Poder.

É absolutamente inaceitável o processo de municipalização de qualquer forma e a qualquer preço sem obedecer a critérios mínimos que garantam os princípios basilares do SUS na sua gestão e na sua força de trabalho. A gerência dos serviços da rede do SUS necessita urgentemente ser libertada dos interesses de grupos políticos que se perpetuam no poder às custas da exploração das suas instituições e dos conchavos que disputam seus quinhões. Profissionalizados, democratizados, com adequada força de trabalho e com autonomia administrativa e financeira, os hospitais federais do Rio de Janeiro, assim como todos os serviços do SUS no país, podem perfeitamente dar a resposta que a população precisa, livres da opressão praticada pelos fisiologistas e patrimonialistas de plantão.

O que está se propondo fazer com os hospitais federais do Rio de Janeiro é tirá-los de uma forma de opressão, a tutela de políticos e grupos organizados, e submetê-los a outra, mais organizada e com a mesma essência, dessa feita através de privilegiados aparelhos políticos. As propostas alternativas, contratualização direta com autonomia administrativa e financeira e profissionalização da gestão, serão elencadas na terceira parte desta série.

*Francisco Batista Júnior é farmacêutico hospitalar do SUS no Rio Grande do Norte. Ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011).

Para ler a primeira parte desta série clique em https://aterraeredonda.com.br/gestao-do-sus-o-que-fazer/


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