Golpista brasileiro em palanque alemão

Imagem: Paulo Fávero
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

O fascismo vai tomando conta de todos os espaços

Apologia à truculência política é proibida na Alemanha, mas a embaixada alemã em Brasília promoveu debate virtual entre um militar defensor da tortura e dois professores, um alemão e um brasileiro. O evento está disponível na página eletrônica da Embaixada.

O oficial começou exibindo legitimidade hereditária, atributo incompatível com o Estado democrático: teria “nascido” no Exército. O recrutamento endógeno é anti-republicano e fere a “meritocracia” castrense. A Corporação proclamou a República sem admitir seus pressupostos. O general revelou ainda a separação nebulosa entre militares da ativa e da reserva. Em traje civil, disse continuar “vivendo no Exército”.

Assumindo ares de porta-voz do “pensamento das Forças Armadas” afirmou não admitir que civis “tenham que mandar nos militares”.  Com isso resumiu a longeva crise de identidade dos enfileirados: vestem-se como militares, pensam como políticos e não abandonam a vocação policial. Comunicou que seus camaradas defendem a ideologia liberal: ao Estado, caberia o papel de “facilitador”, não de “gestor do progresso nacional”. E proclamou a isenção ideológica das corporações!

Disse que a nação é credora do Exército, mas logo desdisse: a corporação salvou a sociedade! O golpe de 1964 teria sido patriótico. (Não mencionou o conluio dos golpistas com Washington). Justificou e minimizou a bestialidade da ditadura. Os ditadores teriam permitido eleições livres e liberdade de expressão. A redemocratização teria sido concedida pelo quartel. Mas a democracia fracassou: “após 35 anos da chamada redemocratização ainda não somos uma democracia de fato”. A ditadura teria afastado a política dos quartéis e interrompido a rotina de crises político-militares.

Para o general, as instituições públicas, em particular o Judiciário, são corrompidas, carentes de “responsabilidade política e cívica”. Os líderes do país interpretam e manipulam as leis “segundo interesses pessoais e grupais”. Para não perder o poder e suas “injustas regalias”, atuam unidos contra “as atuais forças da mudança”. Há “um notório movimento” de juízes e políticos para barrar a apuração de crimes.

Vaticinou iminente anomia e a necessidade de as Forças Armadas atuarem como poder moderador nos moldes da monarquia brasileira do século XIX. Interpretando o artigo 142 da Constituição, disse que uma “intervenção militar” poderia não ser legal, mas seria necessária e legítima diante da “falência dos poderes da República”. Só um golpe garantiria “a estabilidade impedindo que o país mergulhasse no estado de anomia”.

Tal um carbonário convicto de que chegou a hora da revolução, falou em nome do povo: “É triste, mas a sociedade perdeu a esperança na transformação moral e ética política por vias legais”.

Os professores ficaram desconcertados. Como contrapor a chuva de disparates?

O acadêmico alemão, desajeitado, disse que em seu país os militares não exprimem posicionamentos políticos e são proibidos de agir no âmbito doméstico, excetuados os casos de catástrofes naturais ou atentados terroristas. Isso ocorrendo, auxiliariam as instituições da Lei e da Ordem. Militares alemães respeitariam a Constituição e as leis internacionais.

O professor brasileiro contraditou o general citando literalmente outros militares. Registrou surpresa com a atuação das Forças Armadas na conformação do quadro político brasileiro. Revelou que um colega do general conclamara a tropa para o engajamento na eleição de Bolsonaro. Ironizou a propensão dos oficiais para interpretar a Constituição. Lembrou suas pesquisas sobre as contendas nos quartéis. Registrou o confronto entre Geisel e Silvio Frota. Poupando maior vexame ao general, não declinou a luxuriante produção de jornalistas e acadêmicos que o desmentia. Assinalou ainda a identidade ideológica entre o alto comando e o governo.

O general se ateve a passagens secundárias de seus interlocutores. Disse que o professor alemão desconhecia os méritos do almirante que comanda o ministério de Minas e Energia. Ao brasileiro, falou que Carlos Prestes estava a um passo do poder em 1964.

Do rol de aleivosias, uma se destaca por ser assacada em ambiente virtual da embaixada germânica: as Forças Armadas “rechaçam ideologias radicais e utópicas de qualquer matiz” que comprometam a paz interna e dividam a “nação”. “Somos patriotas e nacionalistas”. Ignorou que entre seus anfitriões as palavras “nação” e “nacionalismo” evocam o esmagamento dos mais frágeis e o massacre de vizinhos. Na última vez em que germanos se mobilizaram pela pátria o planeta foi encharcado de sangue. Muitos alemães pronunciam com cuidado as palavras “pátria” e “nação”. Repudiando utopias desagregadoras, o general exaltou a utopia que mais desagregou na história!

Este evento ocorreu no dia 15 de setembro. Os protagonistas foram o general Luis Eduardo Rocha Paiva e os professores Carlo Masala (University of the German Armed Forces – Munique) e João Roberto Martins Filho (Universidade Federal de São Carlos).

O general não foi preso nem o embaixador alemão recebeu pedido de explicações.

O fascismo é assim, vai tomando conta de todos os espaços. A Embaixada pode não ter agido com más intenções, mas em muito contribuiria evitando armar palanques para inimigos jurados da civilização.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Afonso da Silva Luis Felipe Miguel Marcos Aurélio da Silva João Sette Whitaker Ferreira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Carlos Salles Érico Andrade Gabriel Cohn Eduardo Borges Anselm Jappe Celso Frederico Julian Rodrigues Salem Nasser Daniel Costa Fernando Nogueira da Costa Alexandre de Lima Castro Tranjan José Costa Júnior Tadeu Valadares Michael Roberts Claudio Katz Valerio Arcary Paulo Martins Flávio R. Kothe Tales Ab'Sáber José Geraldo Couto Maria Rita Kehl Flávio Aguiar Henry Burnett Caio Bugiato Lucas Fiaschetti Estevez Fernão Pessoa Ramos Ronald Rocha Gilberto Lopes Michael Löwy Luiz Renato Martins Manchetômetro Ronald León Núñez Yuri Martins-Fontes Henri Acselrad Ari Marcelo Solon Benicio Viero Schmidt Paulo Sérgio Pinheiro Igor Felippe Santos Tarso Genro Dênis de Moraes Antonino Infranca Osvaldo Coggiola Vinício Carrilho Martinez Alexandre Aragão de Albuquerque Walnice Nogueira Galvão João Adolfo Hansen Rodrigo de Faria Marcos Silva André Márcio Neves Soares Jorge Luiz Souto Maior Bernardo Ricupero Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Freitas Barbosa Liszt Vieira Marcelo Módolo Leda Maria Paulani Valerio Arcary Slavoj Žižek Luiz Carlos Bresser-Pereira Jean Pierre Chauvin Luiz Bernardo Pericás Juarez Guimarães Thomas Piketty Ladislau Dowbor Mariarosaria Fabris Ricardo Fabbrini Sergio Amadeu da Silveira Rubens Pinto Lyra Eugênio Bucci Mário Maestri Luiz Roberto Alves Afrânio Catani Ricardo Antunes Antônio Sales Rios Neto Dennis Oliveira Carlos Tautz Leonardo Sacramento Gilberto Maringoni Priscila Figueiredo Rafael R. Ioris João Feres Júnior Sandra Bitencourt Luiz Eduardo Soares Vanderlei Tenório Milton Pinheiro João Paulo Ayub Fonseca Airton Paschoa José Dirceu Ricardo Abramovay Ricardo Musse Daniel Brazil Remy José Fontana Eliziário Andrade Boaventura de Sousa Santos Denilson Cordeiro Annateresa Fabris Chico Whitaker Ronaldo Tadeu de Souza José Machado Moita Neto Luciano Nascimento Renato Dagnino Gerson Almeida Carla Teixeira Heraldo Campos Manuel Domingos Neto Celso Favaretto Armando Boito Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Avritzer João Carlos Loebens Samuel Kilsztajn Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marjorie C. Marona Marilia Pacheco Fiorillo Otaviano Helene Francisco Pereira de Farias Antonio Martins José Raimundo Trindade Bruno Machado Andrew Korybko Kátia Gerab Baggio Marcus Ianoni Lincoln Secco Bento Prado Jr. Jean Marc Von Der Weid Elias Jabbour João Lanari Bo Matheus Silveira de Souza Luís Fernando Vitagliano Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Marques Paulo Fernandes Silveira Paulo Capel Narvai Eugênio Trivinho Vladimir Safatle Leonardo Boff Eleutério F. S. Prado Berenice Bento Jorge Branco Chico Alencar Paulo Nogueira Batista Jr Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna Lorenzo Vitral Eleonora Albano Marilena Chauí André Singer José Micaelson Lacerda Morais Andrés del Río Atilio A. Boron José Luís Fiori Michel Goulart da Silva Fábio Konder Comparato Francisco Fernandes Ladeira

NOVAS PUBLICAÇÕES