Governo genocida

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GUSTAVO GUERREIRO*

O Brasil é um país genocida. Trata-se de constatação histórica, irrefutável, que não desaparece porque se pretende omitir um termo “pesado demais”

O “crime de crimes”. Assim foi definido e proscrito o genocídio pela comunidade internacional na Assembleia Geral das Nações Unidas ainda atormentada pelo horror do Holocausto nazista. Embora exista há muito tempo, o crime de genocídio foi tratado pela primeira vez no julgamento do Tribunal de Nuremberg, a partir do extermínio de judeus pela Alemanha nazista.

Tendemos a crer que o genocídio ocorre quando somente quando há assassinato em massa direcionado a determinado grupo social. O dicionário Houaiss define como genocídio, além da forma usualmente conhecida, a “submissão a condições insuportáveis de vida”, sem necessariamente chegar à ocisão de coletividades.

Um dos grandes estudiosos sobre genocídio foi o advogado polonês, de origem judaica Raphael Lemkin, que migrou para os EUA em 1941, onde se dedicou ao estudo do Genocídio Armênio. Militante ativo na Liga das Nações, definiu o método genocida como um conjunto de “diferentes atos de perseguição e destruição”, o que inclui ataques a instituições políticas e sociais, culturas, idiomas, sentimentos nacionais, religiões ou mesmo a existência econômica de determinado grupo.

A literatura especializada observa que atos genocidas não precisam consumar formas letais para se designarem como tal. Basta apenas que conspirem contra a liberdade, a dignidade ou a integridade de determinado grupo, desde que a partir destes se enfraqueçam seus meios de sobrevivência. O próprio conceito de etnocídio (destruição de uma cultura) concorre para uma prática genocida.

Com o intuito de “libertar a humanidade de flagelo tão odioso”, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, aprovada em 1948, o define como qualquer um dos atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, o que inclui “submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial”. O documento conta com a assinatura de quase 150 países, que se comprometeram impedir sob todas as formas atos que levem ao genocídio de minorias e punir com todo o rigor aqueles que o promoverem ou facilitarem. O documento é ratificado pelo Brasil em 1952, durante o segundo governo de Getúlio Vargas.

A face mais explícita do genocídio brasileiro ocorre contra os povos indígenas. Detalhando atrocidades cometidas contra índios nos anos 1940, 1950 e 1960, o Relatório Figueiredo, no âmbito da Comissão Nacional da Verdade, revelou aquele que seria um dos maiores massacres da história contemporânea brasileira: o genocídio dos povos indígenas. Destes, pelo menos 8.300 índios foram mortos na ditadura militar. As matanças vão desde a contaminação de alimentos com arsênico, passando por assassinatos, emboscadas, estupros e até o uso de aviões que atiravam roupas e brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola. Era justamente o período em que o país se tornara signatário da Convenção contra o genocídio.

O Brasil é, portanto, um país genocida. Trata-se de constatação histórica, irrefutável, que não desaparece porque se pretende omitir um termo “pesado demais”.

O extermínio das minorias está na própria formação do Estado brasileiro. Não é nenhuma novidade. Mas também não se pode negar que o ímpeto genocida tenha sido relativamente controlado (jamais extinto) após a redemocratização e a Constituição de 1988.  Isso não significa de forma alguma que o perigo esteja afastado.

O governo de Jair Bolsonaro está em guerra declarada contra os povos indígenas.  Desde que era deputado, estimulou fazendeiros a se armarem, grileiros a invadirem terras e promoverem queimadas. Interferiu na organização da Funai, mudando-a de ministérios e colocando o processo de demarcação sob influência da anti-indígena bancada ruralista. Estimula, através da retórica racista, a invasão de terras. Por fim, desmonta a coordenação da Funai que cuida de índios isolados, expondo aquelas etnias mais vulneráveis a doenças que facilmente a dizimarão, sobretudo em uma pandemia como essa.

Florestas são devastadas e territórios indígenas são invadidos em uma velocidade jamais vista. Se estes não são componentes típicos de uma política genocida, o que seriam?

Evitar o uso da palavra “genocídio”, não é desculpa para não pensar o massacre que ocorre nesse país como crime contra a humanidade. Isso também vale para os assassinatos nas grandes cidades que, não por acaso, vitimam sobretudo jovens negros nas periferias até a ingerência do governo Bolsonaro diante de uma pandemia mortal, que também tem clivagem de classe e etnia. Tudo compraz para o extermínio. A trajetória e o comportamento do presidente e de seus apoiadores não deixam dúvidas de que este é um governo empenhado na destruição de minorias étnicas. Só não tem coragem de assumir publicamente seu posicionamento. É hora de chamá-lo pelo seu verdadeiro nome: genocida.

*Gustavo Guerreiro é doutorando em Políticas Públicas na Universidade Estadual do Ceará e editor da revista Tensões Mundiais.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES