Guaíba – rio ou lago?

Rio Guaíba (Porto Alegre/ RS) após chuva intensa. Foto: Gilvan Rocha/ Agência Brasil
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Por JOÃO HÉLIO FERREIRA PES*

É importante definir juridicamente se o Guaíba é rio ou lago para fins de uma eficaz implantação das políticas públicas de proteção de suas margens

Uma polêmica que antecede o evento climático extremo que atinge o Rio Grande do Sul tende a emergir com mais intensidade logo após a retomada da normalidade na beira do estuário Guaíba, principalmente, quando ocorrer a discussão sobre o planejamento da reconstrução das cidades e sobre os limites de uso das margens desse grande rio ou lago que embeleza e alegra a cidade de Porto Alegre. Trata-se da complexa discussão sobre o Guaíba ser rio ou lago?

A polêmica iniciou com a publicação do Atlas Ambiental de Porto Alegre em que constam evidências que apontam para a probabilidade d Guaíba ser um lago e não um rio. A caracterização como lago tem sido defendida por aqueles que propugnam a utilização das margens do Guaíba para a realização de atividades econômicas diversas porque a Área de Preservação Permanente – APP de lagos é de extensão menor do que a fixada para as margens de rios.

O Guaíba em alguns trechos tem características de lago e em outros de rio, portanto, definir o Guaíba, de forma precisa, como rio ou como lago é absolutamente impossível. No entanto, é importante que este conflito seja juridicamente esclarecido para fins de uma eficaz implantação das políticas públicas de proteção de suas margens face ao “novo normal”, provocado pelos eventos climáticos extremos, como o que estamos vivenciando.

Quanto aos aspectos jurídicos relacionados a essa polêmica sobre o Guaíba ser rio ou lago, não é necessária qualquer preocupação em relação à proteção jurídica desse bem comum. Ressalta-se que esse bem ambiental se enquadra na categoria dos bens comuns porque não é propriedade privada e nem propriedade estatal, e sim, um bem de todos, de toda a comunidade.

É preciso esclarecer as manifestações de preocupação com o tratamento que a legislação brasileira dispensa para a preservação das margens de lagos ser de largura inferior à das margens dos rios. Apontam que se o Guaíba for definido como lago a Área de Preservação Permanente de suas margens é de apenas 30 metros e se for conceituado como rio é de 500 metros para os trechos em que a largura seja superior a 600 metros.

É imprescindível explicar que o Código Florestal considera Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, as faixas marginais de qualquer curso d’água, em largura mínima de 30 a 500 metros, numa escala crescente a depender da largura do curso d’água, sendo de 30 metros para os cursos d’água de até 10 metros de largura e de 500 metros para os cursos d’água de largura superior a 600 metros.

No mesmo artigo 4º, o Código Florestal considera Área de Preservação Permanente as áreas no entorno dos lagos e lagoas em largura mínima de 30 metros em zonas urbanas e de 100 metros em zonas rurais, sendo que será de 50 metros quando o corpo d’água for de até 20 hectares de superfície.

Pelas regras estipuladas na legislação brasileira as margens de qualquer curso d’água são áreas que devem ser preservadas de forma permanente.  Portanto, é de fundamental importância verificar o conceito de curso d’água e quais espécies de corpos hídricos estão abarcados por esse conceito. Juridicamente a expressão curso d’água foi definida pela Convenção de Nova York de 1997, no seu artigo 2º, como “sistema de águas que, em virtude de sua relação física, constituem um conjunto unitário e normalmente fluem para um ponto de chegada comum”, sendo que a Comissão de Direito Internacional vinculada à essa Convenção interpreta que o “sistema de águas” compreende águas correntes de rios , lagos, aquíferos, geleiras, canais, etc.

Portanto, curso d’água é corpo hídrico corrente que desagua em outro corpo hídrico, ou seja, qualquer corpo de água fluente, como rios, riachos, córregos, dentre outros. Assim, águas correntes de lagos são cursos d’água e devem ter suas margens protegidas na mesma largura dos demais cursos d’água.

Ademais, o legislador brasileiro utiliza no Código Florestal a expressão “corpo d’água” e não curso d’água para se referir aos lagos e lagoas ao estipular a largura da Área de Preservação Permanente, numa clara demonstração de que a largura mínima de 30 metros de margem protegida, em zonas urbanas, é somente para lagos e lagoas de águas dormentes.

No entanto, caso o lago seja de água corrente, como é o caso do Rio/Lago Guaíba, as regras que devem ser observadas são as estipuladas para os cursos d’água, portanto, a margem deve ser preservada numa faixa de 500 metros de largura nos trechos em que o Guaíba tem mais de 600 metros. Além disso, a diferenciação que faz o legislador de instituir largura maior das margens de águas correntes do que as margens de águas dormentes é por que dados técnicos apontam nesse sentido, para uma melhor preservação desses bens ambientais.

Por fim, na hipótese de conflito interpretativo e da não aceitação da interpretação semântica aqui efetuada, ainda resta como alternativa para melhor preservar as margens hídricas desse importante curso d’água o argumento de que na dúvida entre definir o Guaíba como rio ou como lago, ou seja, preservar 500 ou 30 metros,  pode ser utilizado o Princípio do Direito Ambiental, com precedentes do Superior Tribunal de Justiça, “in dubio pro natura”que consiste na utilização, em caso de dúvida, da norma mais benéfica ao meio ambiente.

*João Hélio Ferreira Pes é professor de direito da Universidade Franciscana – UFN (Santa Maria, RS). Autor, entre outros livros de Privatização e mercantilização das águas (Dialética).


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