Por DIEGO DOS SANTOS REIS*
Considerações sobre o assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe
“Em que língua descrever as carnificinas recorrentes, as vidas dos indivíduos que são moídos diariamente?” (Achille Mbembe, Brutalismo).
Se Moïse fosse um jovem branco, seu assassinato teria paralisado o país. Reações indignadas da classe média, condenações públicas de autoridades políticas, cobertura exaustiva da grande imprensa, notas de repúdio e solidariedade seriam emitidas aos montes, com exigência de investigação célere e justiça. Não fosse a denúncia que circulou às margens da imprensa oficial, inicialmente, e a pressão dos movimentos sociais organizados, cujo brado disseminou-se com agilidade por redes sociais, provavelmente, o homicídio brutal seria mais um contabilizado na lista fúnebre do Estado brasileiro, que segue a todo vapor com o projeto de genocídio negro, amplamente denunciado por ativistas, intelectuais e familiares de pessoas vitimadas pelo terrorismo de Estado.
No “paraíso tropical” brasileiro e, especialmente, em terras cariocas, a simpatia e o acolhimento que conferem à cidade o título de “maravilhosa” têm limites bem demarcados. Ou, talvez, limites bem matizados, segundo a colorimetria que, num instante, pode resultar em 30 pauladas, 111 tiros ou mãos e pernas amarradas em um poste qualquer, para que a população de bem “ensine” com quantos paus se faz a lei nacional. “A barra é pesada”, já pontuava Lélia González. Principalmente, em territórios dominados pela lei da milícia e da polícia, sitiados por grupos armados até os dentes, que se outorgam o direito de julgar e executar sumariamente quem não segue à risca sua cartilha.
Moïse Mugenyi Kabagambe tinha 24 anos. Jovem congolês, refugiado no Brasil desde os 14, Moïse não poderia imaginar que seria atacado violentamente por uma matilha sanguinária, ao cobrar a remuneração, por direito, pelos dias trabalhados no quiosque. Tampouco que perderia a vida numa noite veranil, na “tropicália”. Não são só 200 reais, sem dúvida, em tempos nos quais a flexibilização das leis trabalhistas busca justamente consolidar o tipo de relação abusiva que descaracteriza vínculos empregatícios; extingue direitos trabalhistas conquistados historicamente; submete empregados/as aos desmandos de patrões ambiciosos, entrepreneurs, que enriquecem às custas de trabalho escravo, fome e tortura.
Não é de estranhar que tal ideologia tenha se alastrado rapidamente pelo território nacional. A herança escravagista-colonial e o legado de exploração, made in Brazil, ofereceram subsídios importantes para relações assimétricas que se caracterizam muito mais pela subjugação daqueles/as que obedecem em relação aos que mandam do que pela prestação de serviço regulamentada, que garante a contratantes e contratados obrigações e proteções legais. O corpo de Moïse, preto e refugiado, faz convergir o ódio racial dos senhores da casa grande e o nacionalismo pífio que, por trás do verde-amarelismo canalha, revela xenofobia, racismo e as mãos tingidas do sangue esparramado pelas calçadas de pedras portuguesas. Sangue que se infiltra pelas frestas dos cárceres; que escorre pelas escadarias de vielas, quebradas e favelas brasileiras, derramado por alagadiços, florestas e sertões.
Pátria amada, Brasil?
Não bastasse o silêncio oficial acerca dos crimes raciais no país e a ausência de políticas públicas efetivas que barrem o avanço do ódio racial, em um cenário no qual retorna o patético argumento da existência de “racismo reverso” contra brancos, defendido por parte da intelligentsia brasileira, a política imigratória nacional para refugiados permanece incipiente, para não afirmá-la criminosa. Ora, não basta a concessão de vistos para refugiados e apátridas sem a garantia de uma rede de proteção e direitos sociais que são obrigatórios para um país que ratificou a Convenção de Genebra. Isso para não mencionar os casos de não concessão dos vistos, escamoteados pela propaganda, “tipo exportação”, da pretensa hospitalidade brasileira aos estrangeiros.
Seria preciso ajuntar: estrangeiros brancos, europeus e norte-americanos. A revolta e o repúdio a tais crimes, todavia, segue seletiva. Nenhuma menção à “consciência humana” ou à “humanidade partilhada por todos/as”, cujo apelo grassa nas reflexões produzidas pela branquitude no dia 20 de novembro. Reina, agora, por parte desse grupo, o mais absoluto silêncio. Indiferentes como os transeuntes que, diante da barbárie, seguem tomando água de coco e mascando chicletes.
“Vivi para contar: mataram meu filho aqui como matam em meu país”, afirmou sua mãe, Lotsove Lolo Lavy Ivone, umas das 1.050 pessoas refugiadas congolesas que vivem atualmente no Brasil, segundo os registros da Coordenação-Geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça. O que Lotsove não poderia suspeitar é que, na diáspora familiar para fuga dos conflitos armados que cindem o território congolês, o destino de seu filho seria atravessado pela violência tropical, secular, espancado por cerca de quinze minutos e amarrado por cordas, já desacordado.
A corda, aliás, que passa pelas mãos, pés e pescoço do jovem é bastante emblemática. Sem chance de defesa, simbolicamente, ela enlaça o corpo domado, caçado, atando-o ao mesmo destino de centenas de milhares de pessoas escravizadas no país, torturadas publicamente e assassinadas com o aval do Estado brasileiro. Qualquer semelhança com a hora atual não é mera coincidência.
Moïse está, ainda, estirado ao chão. O mar vermelho de sangue vertido de seu corpo preto escorre pelas escadas do quiosque. Seu povo segue perseguido. E o mandamento que anuncia “não matarás” passa em branco – rasurado pela ordem sumária de “matamento” que, em qualquer esquina, com tacos de baseball, armas de fogo ou a mãos nuas, ameaça liquidar vidas pretas.
Não passarão.
*Diego dos Santos Reis é professor da Universidade Federal da Paraíba e do programa de pós-graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, da Universidade de São Paulo.