Por JULIAN RODRIGUES*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Lincoln Secco
“o mundo foi melhor para a classe trabalhadora mundial enquanto a União Soviética existiu” (Lincoln Secco)
Lyotard decretou o fim das métarécit[1] no fim dos anos 1970, e de lá para cá, todo tipo de fragmentação e particularização das teorias e análises (não marxistas) se fizeram canônicas. Grandes interpretações e sínteses viraram objeto de bullying. Mais vale um paper em inglês do que um livro, né. Mas, deixemos de lado a crítica ao produtivismo neoliberal majoritário na universidade. Aqui vamos falar de um livro que vai na contramão desse zeitgeist.
Poder ler um livro de 160 páginas, intitulado História da União Soviética (o epíteto “uma introdução” aparece nas páginas internas) não é acontecimento corriqueiro. Afinal, a essa altura do campeonato, o que mais haveria a dizer de novo? O título soa como se tivéssemos diante de nós um tratado de centenas de páginas.
Não é nada disso. Lincoln Secco, como já havia feito em obras anteriores (A Revolução dos Cravos, de 2004; História do PT, de 2011), mescla rigor historiográfico, argúcia argumentativa, linguagem acessível e gosto pela condensação. Misto de crônica, reportagem, ensaio. Escrito visando um público mais amplo, o livro dialoga com quem já conhece o enredo básico da trama. É como um apanhado geral papeando com a militância de esquerda e com as diversas tradições interpretativas.
Um panorama geral, com estilo saboroso, riqueza de dados – e detalhes do tipo registrar que Lenin tinha “a sola do sapato furado” ao discursar na instauração do governo revolucionário. Apesar de alicerçado em ampla bibliografia, o autor opta por não fazer grandes digressões teóricas, embora polvilhe o texto todo com seu ponto de vista sobre os acontecimentos relatados.
Lincoln, sempre que possível, trata do tema das mulheres, das artes, da cultura, dos direitos civis, os avanços e retrocessos da revolução entre 1917 a 1991. Chama atenção também o esforço do autor em sempre cravar a classe/origem social familiar, profissão e formação das e dos principais dirigentes bolcheviques.
Stálin era “neto de servos”, Trotsky “filho de um fazendeiro”; Alexandra Kolontai, “filha de um general czarista”. Leitores apressados, talvez engajados, talvez entusiasmados, ou enredados no looping da “nova” polêmica sobre stalinismo x trotskismo, podem ser tentados a rotular rápido.
Secco incorpora o conceito de stalinismo. Não só usa termos como “terror em massa”. Dá amplo espaço para autores que desqualificam pessoalmente o georgiano, reverbera a imagem de Stalin como o mais tosco dos bolcheviques. Valida a ideia de que o período de “terror stalinista” foi o que mais assassinou comunistas historicamente.
Todavia, muita calma nessa hora. Antes de carimbar o livro como mais um esforço militante trotskista é preciso destacar que Lev Bronstein não é o herói da trama. O historiador considera o relatório Kruschov um “erro geopolítico” (do ponto de vista soviético) e dá espaço também para opiniões como as de Althusser e Togliatti, que discordam da responsabilização individual de Stalin e do “culto à personalidade” como explicação universal.
O livro avança, aborda a Guerra Fria, o contexto internacional e chega à dissolução do país. “O fracasso da economia socialista foi um mito. O desempenho econômico da União Soviética não era inferior aos da OCDE nos anos 1980”, crava o professor da USP.
Em uma das partes talvez mais controversas do livro, Secco caracteriza ora como “revoluções” ora como “revoltas” as movimentações acontecidas nos países do leste europeu em 1989. A chave interpretativa adotada é evidentemente vinculada à tradição “trosca” (que sempre defendeu como positivas a derrubada das “burocracias” naqueles países). Ocorre que depois disso só vieram regimes neoliberais capitalistas.
Didática e generosamente, o livro traz também, ao final, glossário e mapas.
*Julian Rodrigues é professor, jornalista e ativista LGBTI e de Direitos Humanos.
Referência
Lincoln Secco. História da União Soviética. São Paulo, Editora Maria Antonia, 2020.
Nota
[1] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna (José Olympio)