Por GILBERTO MARINGONI*
No ato ontem em São Paulo, o ex-presidente tenta transformar seus crimes em disputa política, e de quebra coesionar e unificar nacionalmente os aliados com vistas às eleições de outubro
Qual o impacto na conjuntura da manifestação pública convocada por Jair Bolsonaro neste domingo (25 de fevereiro) na avenida Paulista?
Estive no ato e andei ao longo de toda sua extensão, indo e vindo, por duas vezes. Fiquei impressionado. Eram quatro quadras apinhadas de gente. Havia pontos, no quarteirão onde se encontrava o caminhão de som, em que a compactação tornava quase impossível a passagem. Numa apreciação impressionista, arrisco dizer que pouco mais de dois terços da massa era composta por gente de classe média-média, branca.
O restante parecia ser de classe média baixa (pobres), com presença significativa de pretos e de pardos. Não era um protesto de grã-finos dos Jardins. Havia quatro governadores e algumas dezenas de parlamentares no palanque. Tarcísio de Freitas reforçou o policiamento e há notícias de que teriam vindo caravanas do interior e de outros estados. Dinheiro parece não ter faltado.
Qual a métrica para se avaliar o evento? Há pelo menos três essenciais: (i) Saber se havia um público em volume expressivo; (ii) O que Jair Bolsonaro pretendia com a iniciativa e (iii) Compará-lo com as possibilidades organizativas da esquerda.
Examinemos a primeira variável. Mesmo que não tenha colocado no asfalto os 700 mil que alguns de seus apoiadores chegaram a alardear – é possível que tenham comparecido pouco menos de 200 mil –, a soma não é desprezível. Acima de tudo, vale a foto aérea de uma Paulista apinhada de gente.
Tudo indica que Jair Bolsonaro queria dar uma demonstração de força e retirar as acusações que enfrenta do terreno jurídico – que lhe é desfavorável – e deslocá-las para a seara política, na qual pode obter bom resultado. Cercado de processos, o ex-mandatário está absolutamente correto em buscar as ruas. Uma possível prisão, assim como foi a de Lula, depende da criação de um ambiente político que enfraqueça sua legitimidade e o torne vulnerável aos tribunais. O petista só foi encarcerado depois de anos de impiedosa campanha midiática, de acusações infundadas por parte da Lava Jato, de opções desastrosas do PT no governo e do golpe de 2016.
O marido de Dona Michelle se fortaleceu na ensolarada tarde paulistana. Passa o recado de que não é carta fora do baralho, mesmo sendo inelegível. Mais do que tudo mostra que o peso político da extrema-direita brasileira não é pequeno.
Se a meta de mostrar apoio de multidões foi atingida, o segundo objetivo tem poucas chances de se concretizar. Como assinala Valter Pomar, Jair Bolsonaro propõe um acordo que livre sua cara e isso ficou explícito em seu discurso. Antes de entrar no mérito do que o ex-presidente externou ao microfone, é preciso focar brevemente na direção do espetáculo, ou na coreografia de palco.
Os principais oradores foram três, além de Jair Bolsonaro. Puxando a fila estava Michelle, a demonstrar fidelidade ao marido – ela cancelou uma viagem aos EUA – e pregar uma chorumela emotiva, pretensamente religiosa. Em seguida, tivemos Tarcísio de Freitas, anfitrião e possível herdeiro do espólio político do chefe, a garantir sua retidão de caráter. E por último e o mais importante, Silas Malafaia, misto de espertalhão e guru espiritual, para quem Jair Bolsonaro terceirizou a saraivada de ataques ao Supremo, ao TSE, a Lula, ao PT, a Alexandre de Moraes e a quem mais estivesse pela frente. No meio do fraseado, destacou em tom quase apocalíptico: “Jair Messias Bolsonaro é o maior perseguido político da nossa história”.
Limpo o terreno, o indigitado ficou livre para tentar um caminho sem agressões e baixarias, quase um “Jairzinho paz e amor”. E se revelou tremendamente defensivo e vulnerável. Em 22 minutos de uma oratória surpreendentemente articulada para os padrões do ex-capitão, ele falou de sua infância, da vida no Exército, contou da experiência parlamentar, de seus feitos na presidência, atacou o comunismo, a ideologia de gênero, o aborto e listou um rosário de lugares-comuns do fascismo pátrio que faz a alegria de seu eleitorado. Destacou ainda a importância do pleito municipal e negou ter tramado um golpe. De cambulhada, aproveitou para insistir no vitimismo: “Levo pancada desde antes das eleições de 2018”.
Depois da pieguice, vamos ao que interessa: buscar o que chama de conciliação e pacificação. “É passar uma borracha no passado. É buscar maneiras de nós vivermos em paz. É não continuarmos sobressaltados”.
A arenga vai em frente: “Agora, nós pedimos a todos os 513 deputados e 81 senadores um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil”. E cita os possíveis beneficiários, “Esses pobres coitados que estavam lá no 8 de janeiro de 2023”. Mas o altruísmo do ás das moticiatas logo revela o verdadeiro objetivo: “Também quero dizer que nós não podemos concordar que um poder tire do palco político quem quer que seja. A não ser que seja por um motivo extremamente justo”.
Aqui o ex-presidente manda as sutilezas às favas. Sua meta enfim é revelada por inteiro: sair liso – juntamente com o alto comando do golpe – de quase vinte acusações judiciais, transformando o caso em disputa política, apelando ao Congresso – que tem as prerrogativas constitucionais para isso – e não ao STF. O projeto do ato tem, assim, início, meio e fim. Nessa tentativa de mostrar força, é possível que busque realizar manifestações semelhantes em outras capitais.
O comportamento da mídia, ao longo do dia, foi cauteloso. Mesmo o Fantástico, principal atração dominical da Rede Globo, enquadrou a notícia numa reportagem de três minutos, quase ao final do programa, na qual não faltaram menções às acusações que pesam sobre Jair Bolsonaro. Como as corporações de comunicação têm sido atendidas em quase todas as suas demandas junto ao governo federal – arcabouço fiscal, verbas publicitárias, predomínio de fundações privadas na educação, não reversão de privatizações e reformas de Michel Temer e Jair Bolsonaro – possivelmente seus dirigentes avaliem não ser esse o momento de romper com a atual gestão.
Finalmente, do ponto de vista da esquerda, convém não subestimar a força da extrema direita. Desde a posse de Lula III, o que se entende genericamente por progressismo não colocou contingente equivalente em praça pública. Apesar da defensiva, Jair Bolsonaro age com competência ao buscar mudar o terreno de seu enfrentamento da Justiça para o Congresso. É difícil que conquiste a anistia, mas também é pouco provável que seja preso no curto prazo. Há um objetivo secundário nessa trama toda: o mais ilustre morador do condomínio Vivendas da Barra tenta coesionar e unificar nacionalmente os aliados com vistas às eleições de outubro.
Falta uma última peça nesse quebra-cabeças. Até aqui não há uma campanha vigorosa da esquerda contra a extrema direita. Ao contrário: o bolsonarismo está no governo e no Congresso, negociando cargos e prebendas. Sobra soberba, desleixo e falta de rumo nos campos progressistas. A celebração do 8 de janeiro no palácio do Planalto se resumiu a um convescote destinado a passar o pano geral para o andar de cima do golpe. Seguimos depositando todas as expectativas no Xandão.
A esquerda acaba fazendo um lawfare com sinal trocado ao bater às portas dos tribunais diante de qualquer controvérsia. Embora Lula tenha subido o tom na política externa, seu comportamento não é acompanhado pela maioria de seu partido ou das agremiações aliadas. Com raras exceções, ministros, senadores e deputados do PT evitam se posicionar nessa questão.
Não basta reclamar, xingar, fazer piadas, desqualificar, ofender e dirigir vitupérios ao fascismo made in Brazil. É preciso enfrentá-lo politicamente, retirá-lo do governo, assumir o real comando das forças armadas e definir melhor quem são aliados e inimigos. Sei que falar é fácil, mas não há outro jeito.
*Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).
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