John Maynard Keynes, um liberal

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O economista pregava não a agitação política ou as experiências prematuras, mas sim o pensamento sensato e reformista

John Maynard Keynes, no último tópico do ensaio “O Fim do Laissez-Faire” (1926), defende ser necessário algum ato coordenado de julgamento inteligente quanto à escala na qual é desejável a comunidade como um todo poupar, à escala na qual essas poupanças devem ir para o exterior, sob a forma de Investimento Direto Estrangeiro [IDE], se a atual organização do mercado de capitais distribui as poupanças pelos canais mais produtivos em nível nacional. Estas questões não deviam ser deixadas inteiramente ao acaso do julgamento privado e dos lucros privados, como acontecia.

Ele ousava até em defender, em 1926, uma política demográfica. “Já chegou o momento no qual cada país precisa de uma política nacional ponderada sobre qual o tamanho da população, seja maior ou menor diante da atual, seja igual, ser o mais conveniente”. Apenas em 1960 a primeira pílula anticoncepcional chegaria à venda.

Suas reflexões foram dirigidas para possíveis melhorias na técnica do capitalismo moderno através de agência da ação coletiva. Não havia nada nelas seriamente incompatível com a característica essencial do capitalismo. Para ele, esta era “a dependência de um intenso apelo aos instintos de ganhar dinheiro e de amar o dinheiro dos indivíduos atuante como a principal força motriz da máquina econômica”.

Esperava as disputas mais ferozes e as divisões de opinião mais profundas a serem travadas nos anos seguintes, não se dariam em torno de questões técnicas, onde os argumentos de ambos os lados eram principalmente econômicos, mas em torno daquelas possíveis de ser chamadas de questões psicológicas ou, talvez, morais.

Na época, o fascismo e o nazismo estavam ainda chocando seus “ovos da serpente”. Hoje, o neofascismo ressurgiu, botado em campanhas eleitorais, nas quais não se discute mais programas econômicos, mas sim pautas morais ou religiosas.

Três anos antes da Crise de 1929, havia uma reação latente, algo generalizada, contra basear a sociedade, como era feito, na promoção, encorajamento e proteção das motivações monetárias dos indivíduos. A preferência era por organizar os assuntos de modo a apelar ao motivo monetário o menos possível, em vez de tanto quanto possível.

A maioria das religiões e das filosofias depreciava, ou mesmo desconjurava, um modo de vida influenciado principalmente por considerações de lucro monetário pessoal. Ao contrário, a maioria das pessoas rejeitava essas noções ascéticas e não duvidava das reais vantagens da riqueza.

Atualmente, a teologia da prosperidade exalta os privilégios possíveis de a riqueza e o dinheiro trazer, apresentando-os como “retribuição de Deus” aos fiéis evangélicos seguidores de sua doutrina, substituindo a fé e a devoção divina por prósperos empreendimentos. Trata-se da comercialização da fé cristã a partir da deturpação dos ensinamentos bíblicos. Atua na política congressual via “bancada da Bíblia”.

Muitas pessoas militantes, realmente opositoras do capitalismo como modo de vida, argumentavam como se o estivessem a opor com base na sua ineficiência em atingir os seus próprios objetivos. Por sua vez, os devotos do capitalismo costumavam ser indevidamente conservadores e rejeitavam quaisquer reformas na sua lógica mercantil.

Ao contrário, essas reformas, segundo John Maynard Keynes, poderiam realmente fortalecê-lo e preservá-lo. No entanto, até hoje, os conservadores têm medo delas revelar-se como os primeiros passos para se afastar do próprio capitalismo.

John Maynard Keynes pensava que “o capitalismo, caso gerido com sabedoria, pode provavelmente tornar-se mais eficiente para atingir fins econômicos diante de qualquer sistema alternativo ainda à vista, mas em si é, em muitos aspectos, extremamente questionável. Nosso problema é elaborar uma organização social tão eficiente quanto possível, sem ofender nossas noções de um modo de vida satisfatório”.

Pregava não a agitação política ou as experiências prematuras, mas sim o pensamento sensato e reformista – não revolucionário. No campo da ação, os reformadores não seriam bem-sucedidos até conseguirem perseguir firmemente um objetivo claro e definido, com o seu intelecto e os seus sentimentos em sintonia.

John Maynard Keynes disse em 1926: “atualmente, não há nenhum partido no mundo o qual me pareça perseguir objetivos corretos através de métodos corretos. (…) Precisamos de um novo conjunto de convicções”.

Curiosamente, em uma palestra na Liberal Summer School, no ano anterior ao do ensaio “O Fim do Laissez-Faire”, depois publicada como dois artigos reproduzidos em Essays in Persuasion, discute se deveria aderir ao Partido Conservador, Liberal ou Trabalhista.

Dizia não ser um conservador – “eles não me oferecem nem comida nem bebida – nem alimento intelectual… nem espiritual”. Por sua vez, o Partido Trabalhista ele repele por ser um partido de classe, “e essa classe não é a minha classe. Posso ser influenciado por proposta a qual me pareça ser justa e com bom senso, mas a luta de classes irá encontrar-me ao lado da burguesia educada”. Isso lhe deixava o Partido Liberal “como o melhor instrumento do progresso futuro – se ao menos tiver uma liderança forte e o programa certo”.

Como bissexual assumido, não tinha dúvidas de as questões sexuais estarem prestes a entrar na arena política. Os primórdios representados pelo movimento sufragista das mulheres foram apenas sintomas de questões mais profundas e importantes abaixo da superfície.

“O controle da natalidade e o uso de contraceptivos, as leis do casamento, o tratamento de crimes e anomalias sexuais, a posição econômica das mulheres, a posição econômica da família – em todas estas questões o estado atual da lei e da ortodoxia ainda é medieval e fora de contato com a opinião civilizada e a prática civilizada e com a qual os indivíduos, instruídos e não instruídos, dizem uns aos outros em particular”.

A mudança de opinião sobre estas questões não afetaria apenas uma pequena classe instruída. As mulheres trabalhadoras não ficariam chocadas com as ideias do controle da natalidade ou da lei para o divórcio.

Para elas, seria a emancipação da mais intolerável das tiranias: o matrimônio e a gravidez indesejada. Um partido ao discutir estas coisas, aberta e sabiamente, nas suas reuniões, descobriria um interesse novo e vivo no eleitorado – porque a política estaria a lidar com assuntos capazes de afetar profundamente a própria vida de todos.

Estas questões também estavam interligadas com questões econômicas, as maiores de todas as questões políticas, sobre as quais John Maynard Keynes se sentia mais qualificado para falar. Até então, o mundo tinha vivenciado três ordens econômicas, na terceira das quais estava entrando.

A situação econômica normal do mundo, até o século XVI, definia-se como a era da escassez, seja devido à ineficiência ou à violência, à guerra, aos costumes, à superstição. Em tal período, existia o mínimo de liberdade individual e o máximo de controle feudal ou governamental através da coerção física.

Durante os séculos XVII e XVIII, lutou-se para sair da escravidão da escassez e entrar na sociedade com o ar livre da abundância, culminando no século XIX, gloriosamente, nas vitórias de laissez-faire e liberalismo clássico. Nesta relativa era da abundância, existia o máximo de liberdade individual, o mínimo de controle coercivo através do governo – e a negociação individual tinha tomado o lugar do racionamento.

Mas, em 1925, entrava-se em uma terceira era chamada de era da estabilização. Verdadeiramente, segundo Keynes, caracterizava-se como “a alternativa real ao comunismo de Marx”.

Neste período, disse o economista institucionalista Commons, “há uma diminuição da liberdade individual, imposta em parte por sanções governamentais, mas principalmente por sanções econômicas através de ação concertada, seja secreta, semiaberta, aberta ou arbitral, de associações, corporações, sindicatos, e outros movimentos coletivos de fabricantes, comerciantes, trabalhadores, agricultores e banqueiros’. Os abusos desta época, nas esferas do governo, são o fascismo, por um lado, e o bolchevismo, por outro.”

O socialismo, segundo John Maynard Keynes, “também nasce dos pressupostos da era da abundância, tanto quanto o laissez-faire, o individualismo e o livre jogo das forças econômicas, perante as quais todos ainda se curvam lamentavelmente”.

A transição da anarquia econômica para um regime com meta de deliberadamente controlar e dirigir as forças econômicas no interesse da justiça social e da estabilidade social, apresentará enormes dificuldades, tanto técnicas como políticas. John Maynard Keynes finaliza sua palestra aos membros do Partido Liberal sugerindo “o verdadeiro destino do novo liberalismo é procurar a sua solução”, ou seja, oferecer uma alternativa ao socialismo soviético, cuja violenta revolução na Rússia tinha acontecido há apenas oito anos, em outubro de 1917.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). https://amzn.to/3r9xVNh


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