Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Considerações sobre a trajetória artística e política da cantora e atriz
Em lance inusitado, Joséphine Baker (1906-1975) vem de ser conduzida triunfalmente ao Panthéon de Paris, onde mulheres não entram, nem negros, nem muito menos vedetes de teatro de revista. Na Era do Jazz, a década de 1920 também chamada de lês années folles, Joséphine saracoteava no charleston, tendo apenas uma tanga de bananas ao redor das ancas. Cheia de verve e malícia, era meio caricatural, zombando das instituições e criticando as convenções burguesas.
Como é então que foi parar no Panthéon? Onde pessoas como essas não são bem-vindas? E mulheres então, apenas uma meia-dúzia até hoje?
Dentre as poucas mulheres, duas são universalmente conhecidas. A primeira, a cientista Marie Curie, descobridora do elemento rádio que originou o Raio X de infinitas vantagens medicinais, polonesa naturalizada francesa, ganhou não só um mas dois prêmios Nobel de Ciências, o de Física e o de Química. Quanto a Simone Veil, sobrevivente de Auschwitz, foi a Ministra da Saúde que descriminalizou o aborto na França e seria depois a primeira presidente do recém-criado Parlamento da União Europeia. É nessa ilustre companhia que Joséphine agora repousa.
Entre seus feitos, que são numerosos, contam-se os doze filhos adotivos, de muitas cores, muitas nacionalidades e muitas religiões. Criou-os no castelo de Milandes (Dordogne), que comprou depois de se tornar uma das maiores estrelas do mundo. Chamou-os de “Tribo Arco-iris”: dizia que serviriam de exemplo para a fraternidade entre os seres humanos, numa demonstração de que, apesar de serem todos diferentes, viviam naturalmente em paz. Agora correu uma petição na França reivindicando sua entrada no Panthéon, encabeçada por um dos doze e subscrita por cerca de 40 mil pessoas.
Joséphine era norte-americana. Nasceu em St-Louis, Missouri, estado do Sul, região onde a ignomínia do tratamento dado aos negros era sem par. Ao tempo das “Leis Jim Crow”, a segregação era total e negros podiam ser linchados ao menor pretexto, ou mesmo sem qualquer pretexto. Fugindo ao racismo, aos 19 anos baixa em Paris, e ali inicia sua vida de artista profissional. Há alguns filmes que restaram, entre mudos e falados, nos quais se requebra e dança, inclusive com a famigerada tanga de bananas. Também gravou discos, sendo possível ouvir sua voz em clássicos do cancioneiro francês como “La vie en rose”, “Sous lês toits de Paris”, “Clopin-clopant”. Foi estrela inconteste do mais renomado cabaré do mundo, em funcionamento até hoje, o Folies Bergère.
Como na França a negritude era mais tolerada, esse foi o motivo de Joséphine desenvolver lá sua carreira, como também o fizeram o grande jazzista Sidney Bechet;ou Paul Robeson, ator e cantor, cujo legado é uma magistral interpretação de “Ol` manriver” em sua bela voz de baixo; ou Nina Simone, cantora de jazz de alto nível. Joséphine apaixonou-se por sua terra de acolhimento e acabaria por naturalizar-se francesa. É inesquecível sua interpretação mais famosa, aquela pela qual viria a ser identificada: “J´ai deux amours: mon pays et Paris”. Ésua declaração de amor à cidade que a adotara, permitindo-lhe desenvolver seus talentos em paz, sem persegui-la pela cor de sua pele.
Pelos extraordinários serviços prestados ao país durante a Segunda Guerra, recebeu as mais altas condecorações que a França concede: a Croix de Guerre, a Légiond´Honneur, a Medalha da Resistência. E ganhou uma patente militar com direito ao usoda farda – como a vemos em tantas fotos. Persistiu na militância anti-racista, viajando para discursar na Marcha Sobre Washington presidida por Martin Luther King, ponto alto da campanha pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Visitaria Hanoi sob bombardeio norte-americano, para prestar solidariedade aos vietnamitas durante a Guerra do Vietnã.
Já lhe foi dedicado um filme americano de ficção para TV, intitulado The Josephine Baker story (1991), em que sua vida é romanceada. Agora, por motivo de sua entrada no Panthéon, a TV 5 Monde anda exibindo um documentário de duas horas, com preciosas imagens de arquivo e o belo título sugestivo de Joséphine Baker – La fleur au fusil. Boa oportunidade para revisitar uma grande artista, uma grande mulher.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).