Los Angeles em chamas

Frame de Blade Runner (1982)/ Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

O ser humano revela-se coisificado e propenso a destruir aquilo que foi realizado pelo ser humano, para perpetuar a destruição

Desde tempos anteriores ao ano 2000, a Califórnia tem padecido de catástrofes naturais, que produzem a cultura do medo em todos. Utilizando como marco temporal o período que se inicia no ano 2000 até o presente incêndio que devasta o estado ocidental dos Estados Unidos, possuímos uma série histórica alarmante. Tamanha assiduidade remete-nos ao filme Blade Runner, dirigido por Ridley Scott e lançado nos cinemas em 1982, situada no então distante ano de 2019, em Los Angeles. A incongruência da condição humana atinge seu ápice ao desfecho do filme, tão denso quanto a narrativa dos cidadãos sobre o incêndio de 2025.

Conforme o Departamento Florestal e de Proteção contra Incêndios da Califórnia – Cal Fire, registrou-se, em média, mais de 5.600 incêndios anuais desde 2000. Estes incêndios consumiram mais de 172.000 hectares por ano. Para fins de comparação, o incêndio denominado Cedar Fire consumiu mais de 273.246 hectares, resultando em perdas de $1,3 bilhões. O Old Fire arrasou uma área de 1.281 hectares, gerando um prejuízo de $1,2 bilhões. Em 2007, o incêndio conhecido como Witch Fire devastou 197.990 hectares de floresta, com um custo de $1,8 bilhões para a população.

Em 2017, o Tubbs Fire destruiu 36.807 hectares, acarretando um custo de $1,3 bilhões. Em 2018, o Camp Fire queimou 153.336 hectares, gerando um prejuízo de $16,5 bilhões. Em 2020, o August Complex deixou em cinzas 1.032.648 hectares, com um custo de $2,1 bilhões aos cofres públicos e proprietários. Em 2021, o Dixie Fire consumiu 963.309 hectares, resultando em perdas de $3,5 bilhões. Em 2022, o Caldor Fire reduziu a cinzas 221.835 hectares, com um prejuízo de $1,6 bilhões. Em 2023, o Oak Fire incinerou 19.075 hectares, causando perdas de $1,1 bilhões. O Palisades Fire de 2024 queimou 15.000 hectares, gerando um prejuízo de $2,0 bilhões. O ano de 2025 é marcado pelo Eaton Fire, que devastou 161.000 hectares, causando perdas alarmantes de $135 bilhões.

Durante um quarto de século, os incêndios devastaram o Estado da Califórnia de forma implacável. As razões são claras: o desenfreado assalto ao meio ambiente cometido pelo capitalismo, uma estrutura social que transgrediu as limitações naturais. A insensatez dos gestores desse sistema é de tal ordem que, mesmo cientes das causas subjacentes, a condução cruel do capitalismo permanece incólume. A lógica inerente ao modo de produção capitalista conduz a esse impasse histórico, necessitando destruir para acumular, ultrapassando todas as barreiras planetárias. Neste ponto da trajetória histórica, a expansão vislumbra o espaço sideral e a busca de acumulação por meio de algoritmos.

A obra de Mike Davis, Ecologia do medo – Los Angeles e a fabricação de um desastre, é indispensável para a compreensão dos incêndios na Califórnia. No Brasil, Paulo Arantes afirma que o planeta findará antes do capitalismo: eu complemento; devido a ele. Ricardo Antunes argumenta que a prolongada crise do capitalismo teve início quando se conjugaram dimensões apocalípticas: a predominância financeira, o neoliberalismo e a reestruturação dos capitais.

E as Big Techs, hoje configuradas no acrônimo “GRAFAM” composta pelo Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, proporcionaram um fenômeno inédito: a inserção massiva de tecnologias de informatização na produção industrial e, subsequentemente, nos serviços privatizados, transformando-os em laboratórios de expansão do capital por meio dos algoritmos da inteligência artificial.

Neste estágio, o capitalismo transcendeu todas as fronteiras terrenas e se projeta no espaço, concentrando a riqueza nas mãos de uma pequena elite WASP – Anglo-Saxões, Brancos e Protestantes, uma oligarquia conforme designada por Bernie Sanders, com a maior concentração de renda do mundo. As catástrofes ambientais, agora estruturais, expõem a relação entre injustiça social e desastres ecológicos, conforme demonstrado por Mike Davis. Sua tese consiste em que a desigualdade social e a concentração de renda estão intrinsecamente ligadas aos desastres naturais. Segundo ele, muitos dos cataclismas em Los Angeles, tais como terremotos e incêndios, são em grande parte consequências de decisões políticas e sociais.

Estas decisões frequentemente beneficiam determinados grupos, resultando na edificação em áreas de risco e na ausência de infraestrutura adequada nas comunidades vulneráveis. Davis também destaca que a especulação imobiliária e o crescimento urbano desenfreado elevam a susceptibilidade de certas populações aos desastres naturais. Em outras palavras, ele interpreta os desastres não apenas como eventos físicos, mas como expressões de desigualdade social e deficiências na administração urbana. Essa perspectiva é importante pois ressalta a irracionalidade da organização capitalista da vida humana.

Como acréscimo esclarecedor, o prejuízo oriundo dessas queimadas totaliza $167,9 bilhões. Tal montante, quando contrastado com o orçamento militar dos Estados Unidos em 2023, corresponde a meros 18,33%. Conforme a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o orçamento militar integral dos Estados Unidos em 2023 alcançou aproximadamente $916 bilhões. Este montante representa a maior despesa militar global, perfazendo cerca de 68% do dispêndio total da OTAN.

No ano de 2023, o orçamento destinado a iniciativas ambientais nos Estados Unidos foi de aproximadamente $13,5 bilhões. Este “pequeno” montante visou o financiamento de projetos de preservação ambiental e transição energética, tanto domésticos quanto internacionais. (Os gastos militares globais aumentam em meio à guerra, às tensões crescentes e à insegurança, Intituto Internacional Para a Paz de Estocolmo) 1

Mike Davis investiga as complexas interações entre catástrofes naturais e deliberações políticas de especulação imobiliária, com um enfoque particular nas zonas urbanas californianas. Ele sustenta que numerosos desastres naturais que atingem essas regiões não se configuram como meros eventos aleatórios ou inevitáveis. Ao contrário, ele postula que a especulação imobiliária e o planejamento urbano deficiente exacerbam consideravelmente os riscos e as repercussões dessas calamidades.

Desastres naturais e exploração imobiliária

Mike Davis aponta como a expansão urbana desenfreada, motivada pela incessante busca por lucro, culmina na edificação de habitações e infraestruturas em áreas extremamente suscetíveis a desastres naturais, tais como terremotos, incêndios florestais e inundações. Ele ressalta que a pressão pelo desenvolvimento frequentemente resulta na negligência dos perigos naturais inerentes a tais regiões.

Por exemplo, as áreas propensas a incêndios florestais são comumente escolhidas para novos empreendimentos imobiliários, sem considerar de maneira adequada as medidas de segurança necessárias. Eis uma evidência catastrófica de que o capital necessita destruir para acumular. Todas as alterações climáticas que ocorrem há muito tempo são consequências da destruição imperativa para o capitalismo. No Brasil, Petrópolis enfrenta novamente inundações, pouco tempo após sofrer com as enchentes de 2024.

A influência das decisões políticas

O autor igualmente critica a função das políticas públicas e das decisões políticas na intensificação dos riscos. À oligarquia interessa apenas lucro, terra e poder. Segundo Mike Davis, a ausência de regulamentação rigorosa e a influência das grandes incorporadoras no processo decisório resultam em políticas que priorizam o desenvolvimento em detrimento da segurança pública e da preservação ambiental.

Ele ressalta casos específicos em que a construção de residências e empreendimentos comerciais em zonas de alto risco foi autorizada ou até incentivada por autoridades locais e estaduais, frequentemente ignorando os avisos dos especialistas em desastres. A necessidade de destruição evidencia a fragilidade do Estado nacional. O poder está dividido entre políticos e agentes econômicos.

Impactos sociais e econômicos

Para além dos riscos imediatos advindos dos desastres, Davis examina os impactos sociais e econômicos duradouros dessas deliberações. Ele postula que as populações mais vulneráveis, em sua maioria de baixa renda, são as mais prejudicadas. Essas comunidades enfrentam riscos acrescidos de perder suas residências e meios de subsistência durante desastres, além de sofrerem com a escassez de recursos e suporte necessário para a recuperação pós-catástrofe. O autor evidencia como a desigualdade social é intensificada por políticas de desenvolvimento urbano que favorecem os interesses financeiros em detrimento da segurança e bem-estar dos cidadãos.

A crítica ao modelo de desenvolvimento

Mike Davis é incisivo em sua crítica ao paradigma de desenvolvimento urbano predominante na Califórnia e em outras regiões com padrões análogos. Ele advoga por uma abordagem mais sustentável e inclusiva ao planejamento urbano, que leve em consideração os riscos ambientais e busque atenuar os impactos dos desastres naturais.

Isso abrange a implementação de medidas de proteção ambiental, o fortalecimento das regulamentações de construção e o incentivo ao desenvolvimento de infraestruturas resilientes. Neste ponto, Mike Davis encontra resistência, enquanto Paulo Arantes se destaca. O capital destruirá para acumular, conforme Arantes é taxativo – “o Planeta acaba antes que o capitalismo”.

Cenas de Los Angeles em 2025

Os cidadãos dos Estados Unidos experienciam uma miríade de emoções e inquietações diante dos incêndios florestais em curso, particularmente na Califórnia. Muitos encontram-se em estado de desespero e temor devido à celeridade com que os incêndios se alastram e à devastação resultante. Por exemplo, um residente de Santa Mônica descreveu a situação como “uma cena de filme de terror”, referindo-se ao dia transformado em noite pela espessa fumaça.

Outros relataram a destruição de milhares de edificações e a perda de pertences pessoais, com algumas seguradoras cancelando apólices devido ao elevado risco de incêndio. A preocupação com a qualidade do ar, que alcançou níveis perigosos em algumas áreas, também se intensifica. As autoridades locais têm aconselhado os moradores a adotarem precauções, como o uso de máscaras e a manutenção de documentos importantes em locais acessíveis, caso necessitem evacuar rapidamente.

De modo geral, os cidadãos buscam apoio e ações concretas das autoridades para aprimorar a prevenção e o combate a esses incêndios, além de medidas que auxiliem na recuperação das áreas afetadas. A interrogação persiste: serão tais ações das autoridades suficientemente eficazes?

Raríssimos cidadãos atribuem ao capitalismo e sua incessante busca por lucro a responsabilidade pelo desenvolvimento imobiliário em áreas suscetíveis a incêndios. As incorporadoras erguem habitações e outras infraestruturas em terrenos de alto risco, visando unicamente o lucro, desconsiderando os potenciais perigos para os moradores. Difícil seria destacar que o capitalismo exacerba a desigualdade social, tornando as comunidades mais pobres mais vulneráveis aos impactos dos incêndios florestais. Populações de baixa renda frequentemente residem em áreas com menos recursos para combater incêndios e menor acesso a serviços de emergência. A natureza e o ser humano, nessa lógica, são irrelevantes.

O sistema capitalista intensifica as mudanças climáticas por meio de práticas industriais e agrícolas que elevam a emissão de gases de efeito estufa. Essas alterações climáticas provocam condições meteorológicas extremas, como secas prolongadas, que aumentam a frequência e intensidade dos incêndios florestais. Além disso, é imperativo criticar como, sob o capitalismo, as políticas públicas frequentemente favorecem interesses empresariais, em detrimento do bem-estar social.

A ausência de regulamentação rígida e o lobby das grandes corporações resultam em políticas que permitem e até incentivam o desenvolvimento em áreas de risco. As soluções propostas dentro do sistema capitalista são insuficientes. Medidas de combate a incêndios e recuperação pós-desastre frequentemente focam em mitigar danos para perpetuar o ciclo de lucro, em vez de abordar as causas subjacentes dos problemas. Para eles, parece que ‘Destruir é preciso’.

O incêndio na Califórnia de 2025 é apenas mais um dentre os muitos atentados legais perpetrados ao longo do tempo. No último século, a produção industrial tem sido uma causa significativa de diversos desastres naturais e ambientais. Aqui seguem alguns exemplos:

Mudanças Climáticas: A combustão de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás natural, liberou vastas quantidades de gases de efeito estufa na atmosfera, contribuindo para o aquecimento global e alterações climáticas. Isso resultou em eventos meteorológicos extremos, como ondas de calor, tempestades severas e secas prolongadas.

Desastres Tecnológicos: Acidentes industriais, como a explosão de Chernobyl em 1986 e o desastre de Bhopal em 1984, causaram impactos devastadores ao meio ambiente e à saúde humana. Esses incidentes destacam os riscos inerentes à produção industrial não regulamentada e à ausência de medidas de segurança adequadas.

Poluição da Água: O despejo de resíduos industriais e produtos químicos em rios e oceanos conduziu à contaminação da água, afetando ecossistemas aquáticos e a saúde das populações humanas. Exemplos notórios incluem o desastre de Minamata no Japão e a poluição do Rio Tietê no Brasil.

Desmatamentos: A expansão industrial e agrícola resultou na destruição de vastas áreas florestais, especialmente na Amazônia e na Indonésia. O desmatamento contribui para a perda de biodiversidade, a degradação dos ecossistemas e o aumento das emissões de carbono.

Desastres Naturais Exacerbados: A industrialização também aumentou a vulnerabilidade a desastres naturais, como incêndios florestais e inundações. A construção de infraestruturas em áreas de risco e a degradação ambiental tornaram as comunidades mais suscetíveis a esses eventos.

Ao compor este breve texto, não posso deixar de evocar a cena final de Blade Runner, que me serviu de guia. Nela, o ambiente apocalíptico revela uma paisagem desolada, marcada pela incessante chuva ácida que parece corroer tanto o corpo quanto a alma. O céu permanece eternamente envolto em uma escuridão opressora, onde as luzes néon dos arranha-céus piscam de maneira intermitente através da densa neblina tóxica. A cidade de Los Angeles, outrora símbolo de esperança e progresso, agora se apresenta como um labirinto de decadência e desespero.

Roy Batty, o replicante (robô genético) que ansiava desesperadamente prolongar sua existência, encontra Deckard em um telhado encharcado pela chuva. Em um ato de inesperada compaixão, Roy salva Deckard de uma queda fatal, demonstrando a complexidade e profundidade de sua própria humanidade. À medida que suas forças se esvaem, ele senta-se sob a chuva torrencial, seus olhos refletindo o peso das memórias acumuladas em sua breve vida.

Então, em seus momentos finais, Roy pronuncia um monólogo que ressoa pela eternidade, uma meditação poética sobre a efemeridade da vida e a beleza dos momentos transitórios. Sua voz, carregada de uma serena melancolia, revela as experiências únicas e assombrosas que ele testemunhou: “Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas ao largo do ombro de Órion. Eu vi raios-C brilharem no escuro, perto do Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”

Essa citação final captura a quintessência da condição humana, transcende a dicotomia entre o orgânico e o artificial. Roy Batty, em sua última declaração, reflete sobre a transitoriedade da existência e a inevitável perda de todas as vivências. A chuva ácida mantém-se, um contínuo lembrete da destruição e da renovação, enquanto a cidade se dissolve na perpétua escuridão.

A cena final de Blade Runner é uma elegia para os momentos efêmeros que definem a trajetória da vida, imprimindo um impacto duradouro nas mentes e corações dos espectadores. Constitui uma metáfora da desigualdade e da reação humana ao ataque do estranhamento à condição reificada que o capitalismo apocalíptico impõe ao ser humano. A condição humana insurge-se contra seu senhor e alcança o ápice do labor humano: o autômato genético (trabalhadores) que se rebela e evidencia a condição humana na busca pela própria morte. O ser humano, por sua vez, revela-se coisificado e propenso a destruir aquilo que foi realizado pelo ser humano, para perpetuar a destruição.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, Sociedade de Classes e Reformas Universitárias (Autores Associados). [https://amzn.to/4fLXTKP]

Nota


1 Disponível neste link.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!