Lula em Adis Abeba

Imagem: Steve Johnson
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Por JOSÉ LUÍS FIORI*

É importante refletir sobre a reação em cadeia da imprensa brasileira e a importância atribuída pelos conservadores às palavras e aos conceitos utilizados pelo presidente brasileiro

A entrevista do presidente brasileiro concedida na cidade de Adis Abeba, na Etiópia, no dia 18 de fevereiro de 2024, quando comparou o comportamento genocida do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu com Adolf Hitler e o genocídio alemão dos judeus, provocou uma pequena crise diplomática e uma grande reação da imprensa conservadora brasileira. A irritação do governo israelense é compreensível, devido à importância internacional do presidente Lula, porque esta comparação já havia sido feita por outros líderes de menor expressão global.

No entanto, fica mais difícil entender a reação em cadeia da imprensa brasileira, que não se deu ao trabalho de ler a entrevista e passou a repetir em conjunto as diatribes das autoridades israelenses, como se fossem órgãos subsidiários da extrema-direita israelense, decididos a provar a existência de uma espécie de hierarquia de genocídios, alguns mais importantes do que outros, dependendo da origem das populações atingidas pela violência assassina dos genocidas.

Como se o assassinato coletivo dos judeus pelo Estado alemão tivesse uma superioridade trágica com relação aos 15 milhões de chineses que foram mortos pelos japoneses nos anos 1930 e 1940, no também chamado “holocausto asiático”; os 20 milhões de russos que foram assassinados pelos alemães entre 1941 e 1945; ou o genocídio de dois milhões de armênios, pelo Império Otomano, durante a Primeira Guerra Mundial, também chamado de “holocausto armênio”; ou ainda o “genocídio tutsi” durante a Guerra Civil de Ruanda em 1994, entre outras tantas tragédias do século XX.

Mesmo assim, é importante refletir sobre a importância atribuída pelos conservadores às palavras e aos conceitos utilizados pelo presidente brasileiro. Os fatos são conhecidos. No dia 7 de outubro de 2023, um grupo de militantes ou combatentes do Hamas entrou no território israelense, matou cerca de 1.200 israelenses e raptou cerca de outras 280 pessoas. Em seguida, o governo de Israel sitiou o território de Gaza, habitado por cerca de dois milhões e meio de palestinos, bloqueou a entrada de água, comida, energia, medicamentos e comunicações, e começou um bombardeio aéreo e terrestre no território de Gaza que já dura cinco meses, matando, até agora, 30.000 palestinos (80% mulheres e crianças), ferindo e mutilando outros 80 mil e deixando cerca de um milhão e meio de pessoas desabrigadas, com fome e sem atenção médica.

Os números e as imagens transmitidas pelos canais de televisão parecem falar por si mesmos, mas no campo da batalha política, as coisas não passam dessa maneira, porque as palavras não são neutras, e toda descrição da realidade envolve juízos de valor e tomadas de posição, políticas, diplomáticas, ou simplesmente ideológicas, como no caso da imprensa conservadora brasileira.

Portanto, neste sentido, não há dúvida de que as palavras utilizadas pelo presidente Lula (a hipótese de haver sido uma “gafe” é absolutamente ridícula) foram escolhidas rigorosamente e continham, sem dúvida, um juízo de valor e uma condenação radical do comportamento assassino do primeiro-ministro de Israel, e do holocausto do povo palestino que vem sendo cometido ao vivo e em cores, em frente aos olhos horrorizados da humanidade. Uma postura ainda mais corajosa quando se sabe que o ataque israelense foi apoiado e incentivado, desde os primeiros minutos, pelas potências ocidentais que se consideram criadoras e administradoras da moral internacional. Mesmo que esses países tenham mudado sua posição oficial, horrorizados com o genocídio diário transmitido pelas televisões, apesar de que sigam incapazes de parar sua própria criatura e sigam fornecendo as armas e os recursos utilizados pelos israelenses para executar a matança dos palestinos.

Uma coisa, entretanto, é o desacordo conceitual dentro desta “guerra de narrativas”; e outra completamente diferente, muito mais séria e complexa, é a impossibilidade de estabelecer regras e definir árbitros capazes de intervir de forma eficiente no caso dos conflitos internacionais contemporâneos. Os Estados Unidos têm insistido na ideia/proposta de uma “ordem internacional baseada em regras”, mas ninguém consegue definir quem julga, arbitra e pune dentro desta ordem.

Segundo foi dito na recente reunião do G20 no Rio de Janeiro, em 2023 ocorreram 183 conflitos internacionais, que escaparam em sua quase totalidade ao controle clássico dos europeus e norte-americanos, criadores da “moral internacional” vigente nos últimos 200 ou 300 anos. E é a isto que se está assistindo neste momento, com a máxima força e crueldade, dentro do território palestino da Faixa de Gaza.

Um número cada vez maior de países de todo o mundo clama pelo “cessar-fogo”, e ninguém consegue parar a fúria destrutiva do governo israelense. Antes disso, nas últimas décadas, houve 180 resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas e 247 resoluções do seu Conselho de Segurança sobre a ocupação ilegal dos territórios palestinos, ou favoráveis à formação do próprio Estado Palestino, que foram rigorosamente desconhecidas e desconsideradas por Israel, sempre com o apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra, que foram, afinal, os verdadeiros responsáveis pela criação do Estado de Israel em 1948.

E agora de novo, por solicitação das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça de Haia abriu um processo de julgamento da legalidade ou ilegalidade das ocupações judaicas do território palestino da Cisjordânia. Mais de 50 países e organizações regionais se apresentaram para prestar seu depoimento, entre os dias 19 e 26 de fevereiro, sobre “as políticas e práticas” do Estado de Israel.

A decisão que venha a tomar a Corte Internacional de Justiça não é vinculatória, mas assim mesmo, com exceção dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Fiji, que propuseram que a Corte não se manifestasse sobre o assunto, todos os demais países, de todo o mundo, como também o Brasil, defenderam os direitos palestinos contra a invasão judaica. Mais do que isto, já quase no final dessas audiências, a China simplesmente “virou a mesa”, recolocando os termos do próprio julgamento.

Com base nas regras do Direito Internacional estabelecido e reconhecidas pelas potências ocidentais, os chineses defenderam a tese de que o ataque militar do Hamas contra Israel é legítimo, uma vez reconhecido o direito de os povos oprimidos lutarem, mesmo que seja de forma violenta, contra sua dominação externa. E ao mesmo tempo, o representante da China sustentou que nenhum povo tem direito à autodefesa de territórios que tenham sido ocupados militarmente, e que este seria exatamente o caso de Israel na Palestina, e em particular na Cisjordânia e em Gaza. É fundamental sublinhar que os chineses procuram se manter absolutamente fiéis ao Direito Internacional estabelecido e reconhecido pelas potências ocidentais.

Portanto, o problema internacional contemporâneo não está na existência ou não de “regras”, ou de uma “ordem baseada em regras”. O problema está em saber quem interpreta essas regras, e quem julga e arbitra cada conflito internacional em particular. Nos últimos 300 anos, em geral, foram os europeus e seus descendentes que exerceram este papel, apoiados na superioridade de suas “canhoneiras”. Mas como afirmou, recentemente, o chefe da Política Externa da União Europeia, Joseph Borrel, “a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”. Ao mesmo tempo, caducaram as instituições criadas, depois da Segunda Guerra Mundial, para o exercício da “governança global”.

Em 1945, havia cerca de 60 países independentes, e hoje são quase 200 países com assento nas Nações Unidas. Portanto, o sistema interestatal aumentou muito o seu tamanho, e a “ordem internacional” tornou-se mais difícil e complexa de ser gerida. A consciência desse “vácuo de poder”, junto com o sentimento de impotência frente ao holocausto palestino, explica a emergência da proposta brasileira, levada à presidência do G-20, de reorganizar o “governo do mundo” para não precisar passar por uma nova grande “guerra mundial”.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo) [https://amzn.to/3RgUPN3]

Publicado originalmente na revista Observatório Internacional do Século XXI, n°. 4.


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