Luz para Todos na Amazônia

Imagem: Luca Nardone
image_pdf

Por LUIZ ENRIQUE VIEIRA DE SOUZA, RODOLFO DOURADO MAIA GOMES, ALINA M. GILMANOVA CAVALCANTE & MÁRCIO G. PEREIRA*

O governo precisa incorporar a sociedade civil nos processos de implementação, avaliação e monitoramento do Luz para Todos

“Vamos levar energia a todos os brasileiros”. Com essas palavras, o presidente Lula anunciou em Parintins a reedição do Programa Luz para Todos, que já beneficiou mais de 18 milhões de pessoas desde sua primeira edição, em 2003. Trata-se de um dos maiores programas de combate à pobreza energética do mundo, reconhecido internacionalmente por garantir direitos fundamentais e melhorar a vida das parcelas desfavorecidas.

Porém, ao longo dessas duas décadas, pesquisadores e ativistas sociais ressaltaram que não basta “iluminar a pobreza”, é preciso conceder incentivos para que as comunidades utilizem a eletricidade de modo a promover o desenvolvimento local segundo seus próprios parâmetros e necessidades.

Esse salto qualitativo depende de um rearranjo institucional que torne a governança do programa transversal e inclusiva. Além disso, requer a criação e implementação de sistemas de avaliação e monitoramento que assegurem não apenas o bom funcionamento técnico e otimização do recurso financeiro, mas que também estimule projetos de responsabilidade social, como a implantação de equipamentos elétricos para o beneficiamento da produção rural, como ecofogões, máquinas de farinha, freezers, etc.

Essas medidas convergem com os objetivos estabelecidos pelo governo, segundo os quais o Luz para Todos deve contribuir para “reduzir as desigualdades sociais e regionais do País, promover a inclusão social e produtiva de comunidades vulneráveis, (…) a cidadania e a qualidade de vida no meio rural e em regiões remotas da Amazônia Legal, por meio do combate à pobreza energética” (No. 11.628, 04/08/2023, Art. 2º., inciso III). Vale sublinhar que a ênfase na região amazônica decorre do fato de que cerca de um milhão de habitantes da Amazônia Legal (AL) permanecem “no escuro”, sem acesso à energia elétrica (IEMA/USP).

O Ministério de Minas e Energia (MME) alega que as demandas das comunidades da Amazônia ainda não foram priorizadas por razões logísticas. Reconhece-se que muitas situam-se em áreas remotas, de baixa densidade populacional, e a construção de novas linhas de transmissão para atendê-las seria financeira e ambientalmente inviável. No entanto, essas regiões tornaram-se as últimas fronteiras para a universalização do acesso à eletricidade, e os Sistemas de Geração Distribuída (SGDs) – que funcionam por meio da associação entre painéis fotovoltaicos e baterias – oferecem uma alternativa para superar tais obstáculos de maneira econômica e ambientalmente responsável.

Na prática, porém, o que se observa desde o discurso de Parintins é a continuidade de um modelo no qual as distribuidoras encaram a expansão do acesso à eletricidade segundo uma perspectiva puramente quantitativa. Sua preocupação é atingir um número suficiente de novas ligações, cumprir metas e apresentar estatísticas que lhes credenciem aos benefícios estabelecidos nos contratos firmados com o governo.

Em outras palavras, o Luz para Todos não produzirá os efeitos econômicos e sociais multiplicadores na escala desejada, enquanto o governo não promover um arranjo institucional que o aborde como uma política pública transversal. O programa é de responsabilidade do Ministério de Minas e Energia e não existem canais eficazes com outros órgãos que colaborem para transformá-lo em vetor de desenvolvimento.

Exemplo disso foi a criação de uma Secretaria Nacional de Bioeconomia, que visa promover o “aproveitamento dos ativos ambientais, inclusive os produtos da Sociobiodiversidade”, mas que ainda não estabeleceu pontes com o Ministério de Minas e Energia para que a bioeconomia disponha da infraestrutura energética, inclusive nas regiões remotas.

Ainda não existe articulação consistente para que o bioma amazônico venha a ser uma “incubadora de cooperativas sustentáveis”. A maioria dos bioprodutos são recursos naturais exportados como commodities ou comercializados com outras regiões do Brasil, sem uma política que de fato estimule novas cadeias de valor e facilitem o acesso das comunidades a tecnologias de beneficiamento que permitam conciliar qualidade de vida digna e manutenção da floresta em pé. Não se trata de utopia nem de criar algo do zero, pois já existem algumas iniciativas bem-sucedidas que poderiam servir de referência, como os Centros Comunitários de Produção (CCP), que beneficiam mais de mil famílias oferecendo apoio para o uso eficiente e produtivo da energia elétrica.

É verdade que o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional também elaboraram projetos para a região Amazônica, mas cada um deles persegue suas próprias metas, sem um efetivo diálogo institucional com os responsáveis pelo planejamento energético. Uma exceção é o programa “Escolas Conectadas”, que tem por objetivo garantir que todas as escolas brasileiras tenham acesso à internet. Para isso, o Ministério da Educação estabeleceu um canal com o Ministério de Minas e Energia, responsável pela infraestrutura energética dos computadores e outros dispositivos necessários para a conexão.

Uma potencial solução estratégica para contornar essa desarticulação institucional seria tornar a Casa Civil corresponsável pela implantação do Luz para Todos. Com seu poder de ascendência sobre todos os ministérios, a Casa Civil mobilizaria os recursos necessários, estabelecendo diálogos interministeriais para que o programa fomente o desenvolvimento regional, estimule o empreendedorismo, a inovação, a transição para uma economia de alta densidade tecnológica e o melhor aproveitamento da sociobiodiversidade amazônica.

Uma governança efetiva e ao mesmo tempo inclusiva também depende da criação de mecanismos de monitoramento e avaliação do Luz para Todos. Isso quer dizer que não basta uma visita técnica no momento de instalação dos pontos de eletricidade. É preciso que informações relevantes sobre as comunidades sejam registradas e que se criem indicadores quantitativos e qualitativos para analisar os impactos reais da eletricidade na economia local e na qualidade de vida dos beneficiários, incluindo questões de saúde, eficiência energética, educação, gênero, conectividade, inovação e empreendedorismo.

Mais do que respostas ágeis às falhas técnicas no fornecimento de energia, as políticas de avaliação e monitoramento permitiriam adaptar os serviços de eletricidade às dinâmicas locais. Isso significaria, por exemplo, identificar as regiões em que a capacidade instalada já não é suficiente para suprir as necessidades socioeconômicas das comunidades.

Essas medidas dependem do engajamento de um número suficiente de quadros do governo. Porém, assim como outros órgãos governamentais, o Departamento de Universalização e Políticas Sociais de Energia Elétrica, que gere o Luz para Todos, foi paulatinamente desmantelado nos últimos anos, de modo que a escassez de profissionais prejudica a universalização do acesso à eletricidade e a transição energética. Assim, é preciso reconhecer que os principais programas do governo Lula para o setor energético dificilmente serão bem-sucedidos enquanto não suprirem o déficit de profissionais capacitados no Ministério de Minas e Energia.

De maneira complementar e não substitutiva, o governo precisa incorporar a sociedade civil nos processos de implementação, avaliação e monitoramento do Luz para Todos. Dezenas de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas reuniram-se em Belém (9 a 11 de maio) para debater e redigir uma carta com demandas relativas à “exclusão energética e resiliência dos povos da Amazônia Legal”.

Esses atores conhecem as especificidades de seus territórios e vêm prestando uma contribuição inestimável como “guardiões da floresta” no enfrentamento aos grileiros, madeireiros e ao garimpo ilegal. Inteligência no combate ao desmatamento também significa levar energia elétrica a esses territórios e prover suas populações com internet, drones e outras tecnologias necessárias para que eles continuem a ser os principais aliados das instituições responsáveis pela preservação da floresta.

*Luiz Enrique Vieira de Souza é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

*Rodolfo Dourado Maia Gomes é diretor-Executivo da International Energy Initiative.

*Alina M. Gilmanova Cavalcante é doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

*Márcio G. Pereira é doutor em planejamento energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES