Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Ao todo a USP conta 39 mortos, em todas as Faculdades e incluindo 6 professores e 2 funcionários
A Esmeralda Bahia, de 380 k, roubada e levada para os Estados Unidos há 24 anos, acaba de ser devolvida. A saga da pedra de 180 mil quilates inclui furtos, desaparecimentos, sequestros (mesmo que falsos), contravenções e delinquências de toda ordem. Mas agora a justiça norte-americana decidiu, dando ganho de causa ao Brasil, e a pedra está sendo repatriada. Vale 1 bilhão de dólares. Destino dela: o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que tem coleções de mineralogia.
Como são pedras, provavelmente escaparam ao incêndio que devastou as outras coleções. A de insetos, a maior do mundo, contava 6 milhões de exemplares, que foram consumidos pelas chamas em minutos. Faziam parte do acervo, entre muitas outras preciosidades de perda irreparável, artefatos de povos indígenas já extintos. E o espólio completo da bióloga Berta Lutz, que lá trabalhara anos a fio, dirigindo um departamento. Como talvez pouco se saiba, o Museu Nacional não é apenas um conjunto de vitrines, mas um centro de pesquisas de relevância global.
No vendaval que sopra sobre o colonialismo, de uma justiça incontornável, nada parece resistir. A maior concentração do mundo em objetos africanos encontra-se no Museu de Tervuren, em Bruxelas, dedicado aos espólios genocidas do Congo Belga. Até ele está passando por uma reforma “progressista”, que inclui africanos na direção dos trabalhos.
Na África, acabam de construír novos museus, para responder aos críticos que alegam falta ede condições para tratar as obras, que se veriam deterioradas e arruinadas. Um deles é o moderníssimo Museu das Civilizações Africanas, em Dacar, no Senegal.
Afora o Tervuren, certas casas são especializadas em arte africana, como o Museu Etnológico de Berlim e o de Arts Prémiers, do Quai Branly em Paris. Este devolveu 26 objetos, sob aplausos do mundo inteiro, mas reteve sete mil, por exemplo. Ainda assim…
Já há um filme sobre o tema, intitulado Dahomey,que está recebendo prêmios mundo afora, entre eles o Urso de Ouro em Berlim. O Dahomey hoje faz parte da República do Benin. A diretora é uma mulher, Mati Diop: boa oportunidade para saudar o sucesso de mais uma cineasta mulher, tratando de questões substantivas.
É inacreditável, mas a Hudson Bay Company (uma variante canadense da Companhia das Índias Ocidentais lá deles) cerrou suas portas depois de três séculos de espoliação e roubo sistemático dos nativos, garantido pela coroa da Inglaterra, entregando a chave de sua maior loja de departamentos em Toronto ao Grande Chefe das Nações Primeiras, a título de indenização. Criada para fim específico de puro extrativismo, explorou peles de castor para chapéus europeus, obrigando os indígenas a entregarem aos brancos o produto de suas caçadas, mas exponenciando-as por cerca de trezentos anos, num volume de milhões de peles. Um escândalo, hoje se sabe, paralelo ao do Congo Belga com o marfim e a borracha: neste era praxe amputar a mão direita dos nativos que não cumpriam a cota.
Mas o Kunsthaus de Zurique dá o bom exemplo, instituindo um projeto que pesquisa a genealogia das obras de arte de origem duvidosa, inclusive informando numa cartela apensa à peça sua procedência.
Entra no quadro geral das reparações o amplo movimento que se espraia pelo país todo de diplomar os alunos mortos pela ditadura militar. A mais atingida de do país foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, contando 15 baixas de alunos assassinados, com ênfase no curso de Ciências Sociais, origem de tantas figuras ilustres nas artes, nas letras, nas ciências e na política.
Ao todo a USP conta 39 mortos, em todas as Faculdades e incluindo 6 professores e 2 funcionários. A fonte é o Relatório da Comissão da Verdade, preparado ao longo de dez anos pelos historiadores da casa, sendo que a nossa Faculdade de Filosofia, tal a repressão que se encarniçou sobre ela, recebeu um volume inteiro, o de número sete. Pois bem: esta escola acaba de atribuir diplomas de conclusão de curso a todos os seus alunos assassinados, argumentando que foi o assassinato que interrompeu suas carreiras. Está sendo cogitada a concessão do título de doutor honoris causa àqueles que já tinham se formado e que eram professores.
O manto tupinambá no Sambódromo
A repatriação do manto tupinambá no bojo do amplo processo de descolonização, que atualmente ajusta contas com a herança da violência imperialista dos brancos, tem ponto de chegada no Carnaval. Em São Paulo, a escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi desfilou com o enredo “Assojaba – a busca pelo manto”. O artefato de penas vermelhas de guará voltou ao Brasil após 4 séculos de desterro… Nada mais justo que seja homenageado no Sambódromo.
Antes disso, o manto fez uma turnê pela Europa e enfeitou o pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza.
O assunto está rendendo, desde que a Dinamarca emprestou o manto para a Mostra dos 500 Anos (São Paulo, 2000), de que foi a atração maior, ao lado da Carta de Pero Vaz de Caminha.
Embora a Dinamarca nunca nos tenha invadido nem saqueado, o fato de possuir mais quatro mantos não deve empanar o lustro de seu gesto. Trata-se de um mantelete que cobre o alto das costas e que foi encampado pela comunidade Tupinambá de Olivença, na Bahia, recuperando o segredo de sua fabricação. É de alta ciência e arte, exigindo um entrançado minucioso de fibras sobre o qual são aplicadas as plumas, com cera de abelha. Seu nome apresenta variantes, indo desde Araçoiaba em Pernambuco e Araçoiaba da Serra em São Paulo, até a assojaba do samba-enredo, passando pela araçoia do poema “Leito de folhas verdes”, de Gonçalves Dias (“… a araçoia na cinta me apertaram”), primorosamente analisado por Antonio Candido na Formação da literatura brasileira. Nesta grafia figura nos dicionários, às vezes com acepção um pouco diferente, mas sempre no sentido de adereço de plumas, como podemos ver nas ilustrações de viajantes e cronistas.
Não é de somenos o significado ritual da arte plumária nas Américas. Monumentos maias, aztecas e incas mostram como as plumas realçavam os suntuosos trajes cerimoniais de reis e sacerdotes. Em seu panteão há deuses como o azteca Quetzalcóatl e o maia Kuculcán, cuja forma terrena é a de uma serpente coberta de penas, que pode ser admirada nos museus e in loco, ornamentando as esplêndidas pirâmides que perfuram o dossel da selva.
Na coroa de Montezuma, último imperador azteca, dispõem-se sobre uma base de ouro as plumas verde-azuladas de um metro de cumprimento da cauda do quetzal, ave sagrada. A cópia da coroa pode ser admirada no Museu de Arqueologia do México, pois, exemplificando as barbaridades do colonialismo, o original pertence à Áustria.
É oportuno que o desfile coincida com a reencenação da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, no Teatro Municipal, neste início de 2025. A nova interpretação é permeada já pela militância e acentuou os elementos nativos. Indígenas participaram da montagem, tendo ocupado o palco um coro formado por Guaranis do Estado de São Paulo. O espetáculo contou com a concepção geral de Ailton Krenak, escritor e ativista, recentemente eleito para a Academia Brasiieira de Letras.
Adaptações já se fizeram necessárias quando a ópera estreou na Itália. Como é que o malvado Loredano, padre renegado, poderia ser italiano, tal como é caracterizado no romance de José de Alencar? Carlos Gomes fez do arqui-vilão um espanhol chamado González… Português é que não poderia ser, tal como Dom Antonio de Mariz, o fidalgo pai de Ceci, de perfil positivo.
Ousada para a época, tanto no romance quanto na ópera, foi a insinuação de um idílio a ser consumado no futuro, entre Ceci e Peri. O fecho do romance, com o casal desaparecendo no horizonte em cima de uma palmeira arrebatada pelas águas, deve ser um dos finais mais celebrados da literatura brasileira. É claro que José de Alencar pensava numa “raça brasileira” surgindo da mistura entre indígenas e portugueses, E que Euclides da Cunha chamou de “amplexo feroz”, eufemismo para estupro.
Só que Alencar trocou os sinais do que estava se passando no processo histórico. Ou seja, a miscigenação se deu entre homens portugueses e mulheres indígenas, e não o contrário. José de Alencar avança e inverte a História. Ambos, romance e ópera, são obras-primas do Indianismo, relevante movimento estético dentro do Romantismo, precursor de tendência atualíssima.
*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]
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