Mangueira em dois tempos

Carlos Zilio, PRATO, 1971, tinta industrial sobre porcelana, ø 24cm
image_pdf

Por JOSÉ GERALDO COUTO*

Comentário sobre o filme de Ana Maria Magalhães.

“Habitada por gente simples e tão pobre/ que só tem o sol que a todos cobre,/ como podes, Mangueira, cantar?”, pergunta Cartola nos versos iniciais de “Sala de recepção”. Esse paradoxo fecundo está no centro também do documentário Mangueira em dois tempos, de Ana Maria Magalhães, exibido no Festival do Rio e agora programado para os dias 28 e 29 de junho (domingo e segunda) no festival de pré-estreias do Itaú Play.

O “dispositivo” do documentário é simples e engenhoso. A partir do curta-metragem Mangueira do amanhã, de 1992, a diretora investiga o que foi feito dos meninos e meninas da ala mirim da escola de samba que ela filmou naquela época. Era uma espécie de escolinha dentro da escola maior.

Na primeira parte, com a ajuda das lembranças do músico e ativista cultural Ivo Meirelles e da cantora Alcione, ambos incentivadores e mentores da Mangueira do Amanhã, ficamos conhecendo alguns daqueles meninos e meninas que despontaram na escola há quase três décadas.

Dois deles se tornaram músicos profissionais respeitados: Wesley do Repique tornou-se Mestre Wesley, diretor de bateria da Mangueira desde 2019. Buí do Tamborim, por sua vez, radicou-se na China, onde faz shows de música brasileira em casas noturnas e churrascarias.

As garotas tiveram uma trajetória menos reluzente – e isso diz muito sobre as condições sociais e culturais do meio onde cresceram. A tendência então fortemente machista da escola (e de todas as outras) impedia uma menina de tocar na bateria, o que reduzia a duas suas possibilidades de participação: seria passista ou porta-bandeira. Várias delas tiveram filhos aos quinze ou dezesseis anos e passaram a ralar para sustentá-los, em geral sozinhas. Algumas se tornaram evangélicas e se afastaram do batuque. Uma delas diz que hoje só samba sozinha, em casa.

Mas o destino dos meninos não era muito mais róseo. Wesley, cujo pai, também mestre de bateria, virou traficante e teve morte violenta, relembra que muitos de seus companheiros de geração sucumbiram sob as balas do tráfico ou da polícia. Um deles, virtuose do repique, aparece tocando nas imagens de 1992, com um sorriso do tamanho do mundo. Morreu ainda adolescente. Como podes, Mangueira, cantar?

E no entanto canta, e esse canto é de uma riqueza sem par. Nesse lugar instável, entre a realidade dura e a arte popular mais sublime, é que se instala o comovente documentário de Ana Maria Magalhães.

Outra fronteira tênue que o filme retrata é aquela entre tradição e invenção. Nascido num dos berços mais esplêndidos do samba, Wesley passou pelo Funk’n’Lata, grupo formado por Ivo Meirelles nos anos 1990, e hoje, a par de ser mestre da bateria mangueirense, toca com músicos de vanguarda de primeira linha, como podemos constatar no documentário. Não há barreiras intransponíveis para a música.

O jogo entre tradição e invenção está presente na própria bateria da escola, conforme é explicado pelos músicos e demonstrado cabalmente na avenida, momento de apoteose em que vem à tona todo esse turbilhão de energias e saberes e, ao menos por um instante, a alegria vence a dor.

*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

Publicado originalmente no BLOG DO CINEMA

Referência

Mangueira em dois tempos

Brasil, 2019, documentário, 90 minutos

Direção: Ana Maria Magalhães

Trailer no youtube [https://www.youtube.com/watch?v=_TozFCTzElM&feature=youtu.be]

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES