Manifesto de um judeu ortodoxo rebelde

Imagem: Akın Akdağ
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Por ARI MARCELO SOLON*

Não houve derramamento de lágrimas pela katarsis promovida contra o povo judeu em oito de outubro

Quando estive na USP, com o material para a aula sobre Platão e Aristóteles do meu curso de Filosofia do Direito de 2024, perguntei-me: por que não aproveito e assino o manifesto dos intelectuais da USP sobre o conflito que está ocorrendo na região do Levante? Faria sentido que eu o fizesse, afinal sou filiado ao PSol – com atuação inequívoca, junto ao STF, em várias causas do interesse da população brasileira oprimida, como no AgR na ADPF 412 DF – e milito até na sua ala mais trotskista; além disso concordo integralmente com o que está expresso nos manifestos da esquerda sobre a guerra.

Não assino porque falta um parágrafo sobre Aristóteles: a tragédia causa lágrimas em todos. “La présentation du tragique repose principalement sur ceci que le monstrueux, comment Dieu-et-l’homme s’accouple, et comment, toute limite abolie, la puissance panique de la nature et le tréfonds de l’homme deviennent Un dans la fureur, se conçoit par ceci que le devenir-un illimité se purifie par une séparation illimitée“ [“A apresentação do trágico baseia-se principalmente sobre isto, que não o monstruoso, como o casal Deus-e-homem, e como, abolidos todos os limites, o poder do pânico da natureza e as profundezas do homem se tornam Um em fúria, por isso que se concebe o tornar-se-um ilimitado se purifica por uma separação ilimitada”].

Esse manifesto não cita as lágrimas causadas pelo choro das crianças em oito de outubro. Com razão, é falado sobre as lágrimas e a tragédia causada por Israel aos Palestinos desde oito de outubro e até antes desta data. Não se fala, porém, da tragédia das crianças indefesas em oito de outubro; crianças estas que são o grupo de maior vulnerabilidade neste conflito, assim como em todos os demais. Elas não dispõem de opções além de irromper em lágrimas, mas esse choro, que em condições normais quebraria o silêncio e até mesmo se sobreporia aos sons da vida civil, é abafado pelos ruídos ensurdecedores do confronto, assim como uma iluminação intensa ofusca a visão e a pimenta mascara até mesmo o gosto de alimentos putrefatos do paladar.

Voltamo-nos agora a Hegel. Influenciado pelo Romantismo alemão e sua visão sobre a obra de arte, além de seus vastos estudos sobre os autores gregos, a tragédia sempre ocupou na filosofia de Hegel um ponto central, vide suas considerações sobre a peça trágica Antígona de Sófocles e as peças de Shakespeare. O jovem Hegel pergunta: os judeus são incapazes de tragédia? “The tragedy of the Jewish people is not a Greek tragedy, it is incapable of provoking pity and fear, because these attach only to the fate of a beautiful creature who had committed an inevitable flaw; whereas the [Jewish tragedy] can only provoke revulsion (Absheu). The fate of the Jewish people is that of Macbeth who went out of the limits of nature, combined with alien creatures, and in their service destroyed and murdered everything that is sacred in human nature, and finally was abandoned by his Gods and necessarily crashed” [“A tragédia do povo judeu não é uma tragédia grega, é incapaz de provocar pena e medo, pois estes apenas se juntam ao destino da bela criatura que cometeu a falha inevitável, enquanto a [tragédia judaica] pode apenas provocar revulsão (Absheu). O destino do povo judeu é aquele de Macbeth que foi além dos limites da natureza, combinando com aliens, e em seu serviço destruiu e assassinou tudo que é sagrado na natureza humana, e por fim abandonado por seus Deuses… e necessariamente caiu”].

Exatamente por conta da falta da definição de tragédia de Aristóteles, não assino esse manifesto com o qual concordo completamente. Como diz Levinas ao discutir Husserl, em Humanismo do outro homem: “Faiblesse sans lâcheté comme l’incalescence d’une pitié. Décharge de l’être qui se déprend. Les larmes c’est peut-être cela. Défaillance de l’être tombant en humanité qui n’a pas été digne de retenir l’attention des philosophes. Mais la violence qui ne serait pas ce sanglot réprimé ou qui l’aurait étranglé pour toujours, n’est même pas de la race de Caïn ; elle est fille de Hitler ou sa fille adoptive” [“Fraqueza sem covardia como incalescência de uma pena. Descarga do ser que se desprende. As lágrimas talvez sejam isso. Falha do ser caindo em humanidade que não foi digna de reter a atenção dos filósofos. Mas a violência que não seria esse soluço reprimido ou que o haveria estrangulado para sempre, nem sequer é da raça de Caim; ela é filha de Hitler ou sua filha adotiva”].

Como dito antes e reitero agora: estou à disposição para discutir o antissemitismo da esquerda com qualquer subscritor ou apoiador desse manifesto. Não houve derramamento de lágrimas pela katarsis promovida contra o povo judeu em oito de outubro, só por isso, ainda que concorde com o manifesto, não o subscrevo.

*Ari Marcelo Solon é professor na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma). [https://amzn.to/3Plq3jT]


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