Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
Uma nota sobre o filme documentário “José Guilherme Merquior – Paixão pela Razão”
O diplomata, sociólogo e crítico literário se estivesse vivo faria 80 anos agora em 2021. Merquior nasceu no dia 22 de abril de 1941 – e faleceu, vítima de um câncer nefasto, em 07 de janeiro de 1991: tinha apenas 49 anos. (“A vida não é alegre” disse Dostoievski em Os Irmãos Karamazov.) Carioca de origem e formado em direito pela antiga Universidade do Brasil (hoje UFRJ) com doutorado na Sorbonne e na London School of Economics ele foi um debatedor à altura das ideais de esquerda.
Por parte dessa não é preciso por um lado, o elogio cínico acerca da erudição maciça e da magnitude da obra de Merquior; e por outro a recusa incauta no reconhecimento da grandeza do seu pensamento. Ora, é necessário no atual contexto da cultura e do debate público de ideais ler José Guilherme Merquior tal como ele, provavelmente, desejava ser lido – e discutido.
Merquior possuía posições intelectuais e políticas “bem” delineadas. E em um compartimento de sua mente, altamente, cultivada havia um lugar reservado para a cultura crítica de esquerda. Aqui – José Guilherme era um intelectual de direita intransigente como as três, dentre as muitas outras, estrelas guias que o conduziram ao universo intelectual e político do liberalismo: Raymond Aron, Friedrich von Hayek e Roberto Campos. (A melhor maneira de avaliar o pensamento de um intelectual e seu significado teórico e político é a crítica imanente às variações internas de suas considerações e formulações interpretativas e teórico-políticas. Abordar o panorama geral do fraseado não contempla as tensões e por vezes os desequilíbrios das formulações e argumentos presentes nas ideais dos autores e autoras. Além disso, ideais não são discursos atemporais – sobretudo na era moderna.)
Seria insano e nem essa é minha modesta pretensão – que seria tola mesma por assim dizer – comentar criticamente (da perspectiva de esquerda) certas ideias de José Guilherme Merquior a partir do belíssimo documentário produzido pela casa editorial É Realizações. Que se diga faz um trabalho esmerado na reedição das obras de Merquior, bem como na tradução de importantes teóricos políticos de direita (Leo Strauss, Eric Voegelin, Michael Oakeshott e Russell Kirk).
O documentário apresenta o depoimento de grandes intelectuais da cultura brasileira como Celso Lafer, Nélida Pinõn, João Cezar de Castro Rocha, Alberto Costa e Silva e José Mario Pereira. Fica a dúvida de por que o cientista política Bolívar Lamounier (de serviços prestados à profissionalização da disciplina) de verve golpista (não nos esquecemos de o que este senhor escreveu e falou de 2014 a 2018: anda sumido, inclusive…), está presente em homenagem tão importante?
Além de entrevistas quase que inéditas de Merquior. Destaco três momentos do documentário e que podem, eventualmente, dar o tom ou mesmo um fragmento apenas das ideais de Merquior. Dois dos momentos ocorrem na entrevista a Leandro Konder (filósofo marxista brasileiro) e um na conferência (um breve trecho na verdade) pronunciada no Encuentro Interacional de Intelectuais no México.
Questionado por Konder sobre porque era crítico (implacável) das ideais de esquerda e não apresentar a mesma disposição concernente às posições do pensamento de direita Merquior responde que: “por uma razão muito simples Leandro [Konder]. Com toda a sinceridade, reconheço que minhas críticas a maioria versam sobre a esquerda antiga e não sobre a direita antiga, mas a razão disso é muito simplesmente o seguinte: o objeto de minhas considerações críticas no jornal não é a sociedade brasileira no presente e no passado, salvo por exceção é verdade que no fim do ano escrevi um artigo procurando romper um pouco om o excesso de pessimismo, a visão francamente apocalíptica e catastrófica que de certa forma muitos estavam permitindo que se instalasse numa espécie de mentalidade nacional ou opinião nacional naquela altura. Agora isso é um artigo ocasional. Agora a linha sistemática dos artigos não é sobre Brasil, sociedade presente recém emergindo do autoritarismo, e sim sobre ideias; o que eu estou discutindo são determinadas feixes de ideias, o verdadeiro objeto dos artigos, a coluna chama-se a ‘Vida das Ideias’ e o verdadeiro objeto dos artigos são ideias que de resto tem evidentemente repercussão no Brasil, mas não é do ângulo brasileiro que eu necessariamente me ocupo delas, não é verdade, quando muito ocidental digamos mundial. E como eu estou me ocupando de ideias aí inevitavelmente ocorre o seguinte, é a esquerda e não a direita no Brasil que tem a hegemonia no terreno das ideias, e se essa esquerda tem hegemonia no terreno de ideias é mais antiguinha que moderna é natural que eu concentre meu fogo crítico em cima dela. A escolha me é ditada pela realidade das relações de poder no campo intelectual no Brasil, no campo intelectual no Brasil não é simplesmente verdade que a direita predomine (alias há muito tempo não predomina) o que predomina é a esquerda, então eu analiso criticamente as ideias de esquerda”.
No outro momento da entrevista, perguntado sobre o que ele distingue como esquerda antiguinha e a esquerda lúcida, Merquior diz que: “Bem basicamente por exemplo a grande questão da liberdade econômica, a grande questão, que eu ressuscitando uma velha palavra que Croce, o filósofo Benedetto Croce pôs em circulação nos anos 1930, 1940, 1950, chamo de liberismo, a grande questão do liberismo, que designa a liberdade econômica por oposição ao liberalismo que ´uma coisa mais ampla e mais completa; essa grande questão é um divisor de aguas, talvez até o principal, quer dizer, que a esquerda moderna, a esquerda lúcida, a esquerda crítica é a esquerda que fez essa reconversão mental – ela sabe primeiro que a falta excessiva de liberdade econômica é conducente ao autoritarismo além de ser naturalmente conducente [a liberdade econômica] à eficiência.”
Na conferência pronunciada no México ele faz a seguinte consideração: “eu diria na maioria dos casos, tanto a direita como a esquerda, nas nossas sociedades caem no erro de identificar alvos equivocados. A direita culpa o Estado por tudo o que não está bem E logicamente a esquerda continua a culpar o capitalismo. E sob essa óptica que sinteticamente, acabo de expor, não se trata de culpa do Estado ou do capitalismo, mas de superar o velho Estado patrimonial e clientelista e superar o velho capitalismo que também é clientelístico e protecionista, quer dizer, trata-se de reformar tanto o Estado quanto o capitalismo”.
Apesar da tolice, que de certo modo explica-se pelas circunstâncias históricas e políticas de época, de distinguir esquerda antiga e esquerda moderna baseando-se na maneira aos quais essas se posicionam concernente à liberdade econômica, o mercado – mas uma esquerda que não combata o capital, e suas relações sociais necessárias e determinadas como o são a liberdade econômica e o mercado, tem de se questionar sobre seu real estatuto intelectual, teórico e político –, Merquior era um personagem da cultura brasileira que prezava o debate intelectual, diferente dos escritores da direita de hoje (conservadores e certos liberais).
Que vê toda modalidade de discussão intelectual (e os próprios intelectuais, sobretudo os de esquerda; é certo que aqui há um eco do pensamento político de direita mesmo, desde os tempos de Edmund Burke até Roger Scruton passando por Strauss, Voegelin, Aron, Oakeshott, Kirk) como impulso para a transformação prática da sociedade e das instituições políticas.
Resta indagarmos, com alguma astúcia, a partir dos três trechos extraídos do documentário (que apresenta o seguinte núcleo do argumento de Merquior: a hegemonia das ideias de esquerda e o desprestigio da direita; a importância da liberdade do mercado – em si mesmo oposta ao autoritarismo e eficiente – e a necessidade de tornar o Estado e o capitalismo aberto, racional e novamente eficiente), bem entendidas as coisas sua obra não se restringe ao pequeníssimo fragmento comentado aqui, no arco de 2014 a 2021 quais seriam as posições da mente inquieta de Merquior?
Com efeito, efemérides mobilizadas não são ingênuas, de ambos os lados ou de variados lados – de minha parte, e sugiro que também o seja da esquerda, o elogio do pensamento e das ideias do ensaísta e diplomata fluminense não significa a ausência da crítica radical do ângulo da transformação e emancipação social. Ora; por vezes a “aprovação de adversários polêmicos só [ocorre] […] quando sua oposição [a nós] é muito fútil” (Perry Anderson). Muito pelo contrário o era – e ainda é a oposição de José Guilherme Merquior.
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.