Niède Guidon

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

A cientista que virou passarinho

Niède Guidon é um nome reconhecido mundialmente no campo da arqueologia. A paulista de Jaú, filha de pai francês e mãe brasileira, mudou a história das Américas através de suas pesquisas etnográficas na Serra da Capivara, no Piauí.

Formada em História Natural pela USP, Niède Guidon não teve vida fácil. Ameaçada pela ditadura militar, teve de se exilar. Em suas próprias palavras, “Eu era da Universidade de São Paulo. E tinha uma tia que tinha um amigo que era general. Um dia ele telefonou para ela e disse: ‘A Niède tem que ir embora hoje porque ela vai ser presa’. Minha tia foi ao meu apartamento, me botou no avião, e eu fui embora. Não foi só comigo que aconteceu. Na época, pessoas que não tinham passado no concurso para professor da USP, que tinham ficado em segundo ou terceiro lugar, denunciaram os colegas que tinham sido aprovados para ficar com o lugar deles. Foi isso que aconteceu.[1]

Na França, doutorou-se em Arqueologia Pré-histórica na Universidade Paris 1 Panthéon-Soubonne, especializando-se em arte rupestre. Depois de alguns anos lecionando na École des Hautes Études em Sciences Sociales, conseguiu apoio do governo francês para pesquisar a região de São Raimundo Nonato, no Piauí, retornando em 1973, e onde vive até hoje. Os primeiros estudos da Missão Arqueológica Franco-Brasileira foram organizados por ela, com a ajuda de Silvia Maranca e Luciana Pallestrini, da USP.

Até então a teoria mais aceita sobre o povoamento das Américas, e que provavelmente você aprendeu na escola, propunha que os pioneiros cruzaram o Estreito de Bhering, entre a Sibéria e o Alasca, e foram descendo até a América do Sul. Um dos argumentos é de que isso justificaria a semelhança fisionômica entre os povos asiáticos e os indígenas americanos.

Outra corrente acredita que a América foi povoada por navegadores que cruzaram o Pacífico – não se sabe se por acidente ou de forma intencional – e procuram estabelecer conexões com os malaios e polinésios.  Estas duas teorias trabalham com a hipótese de que isso ocorreu entre 20 mil e 35 mil anos atrás.

As pesquisas de Niède Guidon no Piauí chegaram a resultados surpreendentes. Documentando centenas de pinturas rupestres, artefatos e restos de fogueiras, e até fazendo contato com os últimos indígenas da região da Serra da Capivara, a cientista colocou no mundo científico, pela primeira vez, a hipótese de que navegadores africanos foram os primeiros a pisar nas Américas. As datações de suas descobertas chegam a 58 mil anos.

Um terremoto no meio acadêmico. Como uma mulher (uma mulher!) afirma que os primeiros americanos foram negros? Ou, no máximo, árabes? Ainda está para ser narrado de forma minuciosa os tipos de preconceito que Niède Guidon enfrentou para ser ouvida. Por mais de 50 anos ela fotografou, escavou, pesquisou, comparou e discutiu as suas descobertas com seus pares.

Os opositores argumentam que os artefatos encontrados por ela são na verdade geofatos (produtos de ação de forças naturais). Se pesquisarmos ainda hoje na internet sobre “povoamento das Américas”, veremos que o nome dela quase não é citado. O “homo sapiens academicus”, variedade alba, não admite concorrência feminina. E nem que africanos tenham chegado primeiro.

A brava guerreira não lutou só na Academia. Em 1979 conseguiu, junto com outros pesquisadores e com apoio da Unesco, que fosse criado o Parque Nacional da Serra da Capivara, no governo João Figueiredo. Em 1991, o parque foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade. Em São Raimundo Nonato (PI) ela criou a Fundação Museu do Homem Americano, do qual é presidente emérita.

Outras áreas da ciência, menos ciumentas, abraçaram a cientista. E vem de biólogos uma homenagem muito especial: esta semana (junho/2024) a revista Nature publicou artigo que reconhece uma nova espécie de ave, típica da caatinga, popularmente chamada de choca-do-nordeste. Seu nome científico passa a ser Sakesphoroides niedeguidonae.

Niède Guidon, do alto de seus 91 anos, pode sorrir e citar o conhecido verso de Mário Quintana de uma maneira absolutamente pessoal a partir de agora: “Eles passarão, eu passarinho!”

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Nota

[1] Cristina Serra, “Niède Guidon, Meio Século de Luta na Serra da Capivara”.

Apoie A Terra é Redonda

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.

CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
O pagador de promessas
Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Considerações sobre a peça teatral de Dias Gomes e o filme de Anselmo Duarte
Na escola ecomarxista
Por MICHAEL LÖWY: Considerações sobre três livros de Kohei Saito
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
Ainda estaremos aqui?
Por ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO: É preciso, com urgência, considerar a negligência com que temos tratado o conhecimento histórico nas escolas brasileiras, notadamente as públicas
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES