Niilismo negro

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Por LÁZARO VASCONCELOS OLIVEIRA*

A peça Otelo, de Shakespeare, é uma ótima ilustração que pode ser utilizada para entender a supressão do corpo negro em uma economia libidinal

1.

Calvin L. Warren é um filósofo contemporâneo que atua no campo da teoria crítica da raça. Em seu livro Ontological Terror: blackness, niihilism and emancipation (2018), ele desenvolve uma corrente chamada de niilismo negro (Black niihilism). Para ele, o humanismo negro “meramente proporciona um alivio temporário, pelo fato de que negros não estão seguros em um mundo antinegro” (Warren, 2018, p. 6).

Foi Cornel West, em seu livro Race Matters de 1993, que cunhou o termo niilismo negro para designar a falta de potências politicas como resultado de uma crise espiritual e cultural na comunidade negra. Em Black Nihilism and the Politics of Hope (2015), Calvin L. Warren retoma a categoria de niilismo negro como uma resposta crítica à crise do existencialismo humanista em face da violência incessante contra às comunidades negras.

No contexto do black studies norte-americano a categoria de antinegritude aparece em meio a esse debate como uma tentativa de construção de uma gramática da qual se possa falar sobre o sofrimento da existência do corpo negro.

Uma problemática é colocada em jogo, pois se somente a categoria de “racismo” não é suficiente para entender as relações de violência racial, ou ao menos, está delimitada pela sua construção social do século XIX (Vargas, 2020, p. 85), a morte social da qual assume o corpo negro na modernidade exigiu de teóricos como Orlando Patterson, uma arqueologia ainda mais profunda no que ele denominou de relações internas da escravidão. Assim podemos entender as raízes do que os afropessimistas têm chamado de “morte social” ou como pontua o niilismo negro de Calvin L. Warren, um “terror ontológico”.

2.

A peça Otelo, de Shakespeare, é uma ótima ilustração que pode ser utilizada para entender a supressão do corpo negro em uma economia libidinal, ou como sugere o afropessimismo de Wilderson (2021, p. 26): “um genoma de renovação da humanidade”. Os personagens são frequentemente interpretados por uma dicotomia moral cristã, corporificando em Otelo, por exemplo, em uma representação passiva da bondade enquanto em Iago, seu antagonista, uma representação ativa da maldade.

Entretanto, a inquirição das motivações de Iago leva a uma falha genericamente interpretativa, onde as motivações próprias apresentadas pelo personagem são muitas vezes, como subterfúgios, ou reforçadas, convencendo-se dos ciúmes, ojeriza e repulsa direcionados ao Mouro. Não se trata de uma disputa dos egos freudianos, mas numa encenação nuclear da ontoepistemologia da modernidade. Nisso reside o drama central de Otelo em relação às outras tragédias de Shakespeare, ao seu redor e tramando contra sua saúde não estavam seus inimigos, mas toda a comunidade humana.

O pênis negro como um “nada anatomizado” é resultado de um corpo desprovido de significado ou poder. Os rituais antinegros como o linchamento e castração, encenam fisicamente essa abstração, produzindo um resultado brutal onde a anatomia negra é despojada de sua significância: a sexualidade negra, sem a figura do humano.

O personagem é tragado por uma redução à sub humanidade em comparações animalescas, instrumentos narrativos próprios da hierarquia gestada pelo Outro da Europa, somado a isso, os ritos “civilizatórios” que concentram em sua condição, negra, a razão do infortúnio e catástrofe, uma maldição dérmica sem causa divina explícita, ou até mesmo sem causa alguma, constituindo nele um inimigo interno que é apreendido unicamente por elementos extratextuais contingentes à época.

O pênis negro de Otelo é suprimido por todas as frechas possíveis, por todos personagens da trama, inconscientemente, pelo seu autor e grande parte dos leitores. Esse produto da genialidade literária shakespeariana, somente é compreensível numa ordem que pressupõe a alteridade no corpo negro. Otelo, portanto, pode ser interpretado como um meta-comentário que desempenha a mesma negação da “analogia” do sofrimento negro nos afropessimistas: em relação à supressão do corpo negro, nenhum outro corpo é findado em um holocausto metafísico (Warren, 2021).

Somos levados a não perceber o que se esconde por detrás das motivações dos personagens, em uma leitura que privilegia a razão do realismo transcendental kantiano, fruto da necessidade emergencial da qual necessitava a burguesia ascendente em elaborar uma noção espaço-temporal para estruturação universalista da modernidade, do sujeito moderno, que na contemporaneidade camufla-se de transparência, mas operacionaliza o escravo como necessidade própria da modernidade.

É explícito em como as ideologias burguesas do liberalismo iluminista e suas subversões nas teorias revolucionárias, mas ainda eurocêntricas em que “o tempo é o campo de desenvolvimento humano” (Marx, 1953, p. 26), não ultrapassaram essa figura universalista do “humano” que ainda permanece como um repositório de práticas e tecnologias violentas que se cristalizaram ao longo do tempo.

*Lázaro Vasconcelos Oliveira é graduando em ciências sociais pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Bahia.

Referências:


MARX, Karl. Salário, preço e lucro. Disponível em: https://www.unirio.br/cchs/ess/Members/renata.gomes/2020.1/servico-social-e-processos-de-trabalho/Bibliografia/basica/Marx-%20Karl.%20Salario-%20preco%20e%20lucro.pdf.

VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, [S. l.], v. 18, n. 45, 2020. DOI: 10.12957/rep.2020.47201. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaempauta/article/view/47201

WARREN, Calvin. Onticídio: Afropessimismo, Teoria Queer e Ética. Revista Periódicus, [S. l.], v. 2, n. 16, p. 172-191, 2021. DOI: 10.9771/peri.v2i16.42790.

WAREN, Calvin. Ontological Terror: Blackness, Nihilism, and Emancipation. Durham: Duke University Press.

WILDERSON III, Frank. Afropessimismo. São Paulo: Todavia, 2021.


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