Por JOÃO LANARI BO*
Nikita trafegou com desenvoltura entre o establishment e a dissidência, entre ambições estéticas e políticas, entre ser um profeta moralista e um artista dramático
Caminhando para completar o segundo ano, a guerra da Ucrânia se afigura com o fenômeno disruptivo de maior impacto nesse milênio que se inicia. À parte os inevitáveis parti pris ideológicos, a percepção de que a propalada ordem internacional está sendo submetida a um esgarçamento impetuoso é cada vez mais nítida. Naturalmente, não é apenas a guerra que contribui para tal percepção, mas ela é a ponta de lança que rompe consensos e construções normativas: o Direito internacional balizado pela ONU e suas atualizações, como o Tribunal Penal Internacional, com jurisdição para investigar e julgar indivíduos acusados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.
O Brasil e mais 122 países ratificaram o tratado que rege o TPI, mas atores decisivos – EUA e Rússia, também China, Índia e Israel – não o fizeram. Vladimir Putin tem mandado de prisão emitido pelo tribunal por crimes de guerra, incluindo a deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia. Se pisar em um dos 123 países e não for preso, é mais um esgarçamento legal – e um atraso institucional.
Nikita Mikhálkov é um dos artífices, no plano simbólico, da atual emergência desafiadora da Rússia na cena internacional. Ator e cineasta de destaque, realizou, em 1994, O sol enganador, marco indiscutível no cenário pós-comunista. Para além do cinema, é personalidade de considerável influência na vida nacional, por meio da TV e instituições culturais que preside. E não hesita em exercê-la: seu apoio à invasão e a Vladimir Putin, por exemplo, é visceral.
A historiadora Birgit Beumers resume dessa forma a linha do tempo visionária de Mikhálkov: “Mikhálkov realiza o deslocamento da nostalgia por um passado, abertamente construído como mito, à nostalgia por um passado que pretende ser autêntico. Esse movimento é resultado do colapso do sistema de valores soviético – sistema que encorajou a construção de mitos – e a incapacidade do diretor de enfrentar a realidade da década de 1990, quando transformou o passado e o presente em um mito que ele confundiu por real e autêntico”.
Melodrama e gangsterismo
Aleksei Balabanov é talvez o realizador cinematográfico mais contundente da modernidade russa. Sua morte prematura, em 2013 aos 54 anos, isentou-o de testemunhar a virada de seu país depois da anexação da Crimeia, em 2014. Sua carreira transitou do arthouse – filmes inspirados em Beckett e Kafka – para um gênero extremamente popular, gangsterismo paródico.
O blefe do homem morto, que Aleksei Balabanov completou em 2005 – no pico do “milagre” putiniano – tem Nikita Mikhálkov no papel de gangster caricato e cruel.
Irmão, de 1997, narra os percalços de um veterano da Chechênia na São Petersburgo neocapitalista em meio ao conflito entre gangues, inclusive chechenos, em doses calibradas de humor, terror e personagens entediados. Conseguiu a proeza de não apenas revigorar a frequência das salas de cinema, mas também – o que é notável – vender 400 mil cópias “legais” de vídeo nos primeiros cinco meses de lançamento.
A continuação, Irmão 2, finalizado no ano 2000, foi mais bem sucedido ainda. Numa época em que o dinheiro trocava de mãos a uma velocidade inaudita, a sensação é que não havia limites éticos ou morais que pusessem ordem na casa. Sujeitos violentos não eram exceção, eram tipos como outro qualquer. O que sobrava disso tudo? A construção de uma identidade russa? Ou pelo menos um dos polos dessa identidade?
A pesquisadora Susan Larsen enxergou uma sintonia nessa pulsão estética de Aleksei Balabanov com outro movimento igualmente voltado à reconstrução da audiência nessa era turbulenta: o cinema blockbuster-melodramático de Nikita Mikhálkov. O sol enganador, filme que conferiu enorme prestígio ao diretor, sobretudo internacional, revisitou o passado perverso do stalinismo e alavancou a ambiciosa produção de O barbeiro da Sibéria, rodado em 1998 ao custo de 45 milhões de dólares.
Sucesso estrondoso no mercado interno – competindo com Irmão – não funcionou no externo: explicitamente nacionalista, o enredo é de difícil assimilação, idas e vindas em torno do personagem principal, cadete na Rússia imperial obcecado por Mozart. Mais da metade do filme é falada em inglês. Sua paixão é uma americana de Chicago, assistente de um inventor determinado a vender uma colossal máquina de cortar árvores.
Mesmo distintos na origem e na estratégia narrativa, para Larsen os paralelos continuam valendo: os heróis de Mikhálkov e Balabanov parecem calçados em um “magnetismo sexual derivado da lealdade a um código moral masculino” próximo a um “nacionalismo xenófobo”, que sugere “inseguranças de seus criadores sobre a… autoridade cultural da nação e da indústria cinematográfica que representam”.
Roleta russa
Em O blefe do homem morto as linhas paralelas de Mikhálkov e Balabanov se encontram. Em um ambiente de total devassidão criminológica, na era Yeltsin, um dos personagens que comanda a farsa é interpretado por Nikita Mikhálkov – nada poderia ser mais antitético em relação à utopia redentora da grande e única Rússia que jazia na mente do ator (em O Barbeiro da Sibéria atribuiu-se o papel de Czar Alexandre III).
Quem move a narrativa são dois irmãos-capangas que não se cansam de promover, grotescamente, o conflito Rússia x Ocidente: Sergei é cristão-ortodoxo, faz o sinal da cruz antes da próxima execução e sonha em construir uma Igreja; Simon, irmão e cúmplice, lê história-em-quadrinhos, não dispensa o McDonalds e tortura suas vítimas embalado por “Look at me now”, sucesso da Eletric Light Orchestra. O big boss é Sergei Mikhalych, tatuado no peito, em alfabeto cirílico, com as iniciais URSS – numa mistura de bonomia e resolução sanguinária. Na cena, o versátil Mikhálkov.
A sucessão de trapalhadas – trata-se de uma comédia – é pontuada por 50 litros de sangue fake, de acordo com o press release da produtora. Não é pouca coisa. Trata-se também de recuperar uma mala cheia de heroína, surrupiada por rivais. A desconstrução satírica do mundo do crime leva a dupla a uma rotatória de assassinatos, culminando com a roleta russa, metáfora que sintetiza o espírito do tempo – o filme é dedicado “àqueles que sobreviveram aos anos 1990”.
Na abertura, uma professora de economia recomenda aos alunos: o que vale é o capital inicial. Ela fala nos anos 2000, e refere-se à turbulência da formação de capital após a queda do comunismo. Na sequência, O blefe do homem morto se move em flashbacks, em uma cidade não nomeada, tartamudeando entre ineptitudes e (des)lealdades, signos da fragmentação do mercado de trabalho socialista.
O fim é transparente: alguns anos depois em Moscou, com vista para o Kremlin e a Catedral de São Basílio – erguida por Ivã, o Terrível, para celebrar a conquista de Kazan – Sergei se compraz como membro eleito do Parlamento, e Simon como assessor. O ex-chefe, Sergei Mikhalych, agora trabalha como recepcionista no gabinete. Bem vindos a era Putin.
Profeta ou artista?
A personalidade de Nikita expandiu-se por vias aparentemente contraditórias após o período de Yeltsin na presidência, entre 1991 e 31 de dezembro de 1999. Na época dos soviéticos, seus filmes obtiveram reconhecimento artístico. Como ator, seu estilo excessivo e arrebatador garantiu-lhe participação em películas de alta bilheteria. Sempre desfrutou de relação privilegiada com o poder, graças sobretudo as conexões de seu pai, Sergei Mikhálkov, autor celebrado de livros infantis e da letra do hino nacional, em 1942, comissionada por Stalin.
A letra foi modificada pelo próprio Sergei Mikhálkov após a morte do líder – e finalmente adaptada no ano 2000 a pedido de Putin. Birgit Beumers salienta que Nikita nunca teve problemas com a censura: sempre trafegou com desenvoltura entre o establishment e a dissidência, entre ambições estéticas e políticas, entre ser um profeta moralista e um artista dramático.
Em 1997, foi eleito presidente do Sindicato dos Cineastas, cargo que havia tentado, sem sucesso, em 1986. Em 1998, durante a 5ª Plenária do Sindicato, criticou a preponderância de cenas de violência e assassinatos em filmes russos contemporâneos, afirmando que a representação da violência no cinema não era proporcional à realidade. A veia ortodoxa-cristã naturalmente se intensificou: em 1999, na tentativa de se eleger deputado, interrompeu um debate na TV para cantar o “Pai Nosso” – não deu certo, e não foi eleito.
Em 2007, Nikita Mikhálkov foi coautor de uma carta aberta apelando a Putin para que concorresse a um terceiro mandato presidencial, em violação à Constituição – além de produzir um documentário para TV celebrando os 55 anos do Presidente.
E foi também em 2007 que realizou um de seus melhores filmes, 12, adaptado de 12 homens e uma sentença, dirigido por Sidney Lumet, em 1957. Sem fugir do mainstream, e beneficiando-se de uma mise-en-scène teatral consistente, Mikhálkov logrou uma inserção bem sucedida em um tema altamente delicado: Chechênia e o conflito separatista. Doze jurados decidem sobre o destino de um jovem checheno, acusado de ter assassinado o pai adotivo, oficial do exército russo, expondo no processo suas visões enviesadas e seus dramas particulares. Ganhou prêmio em Veneza e a crítica apreciou.
Caros camaradas
As origens de Nikita excelem na veia artística. O célebre Vasili Surikov, considerado o pintor do “caráter nacional russo”, era avô de sua mãe, a escritora e poeta Natalia Konchalovskaya – e Natália era filha de outro artista plástico importante, Pyotr Konchalovsky. O cuidado com a designação do nome era uma preocupação: durante o longo intervalo comunista, a família trocou a tônica de Mikhálkov para Mikhalkóv, a fim de esconder a origem aristocrática.
Birgit Beumers informa ainda – depois do colapso da URSS, a tônica voltou e Nikita foi mais longe, produzindo uma árvore genealógica de 200 anos ligando a família aos escritores Pushkin, Tolstói e Gogol, até mesmo a Catarina II, a Grande.
O irmão, Andrei Konchalovsky, igualmente cineasta de prestígio, escolheu o matronímico como nome artístico. Ele e Nikita acumulam altos e baixos nas relações pessoais. Um dos pontos baixos deve ter sido o documentário “Batalha pela Ucrânia”, que Andrei dirigiu em 2012, entrevistando políticos e historiadores, a maioria ucraniana. A ideia foi mostrar a luta do vizinho para escapar do “abraço estreito do irmão mais velho”, a Rússia, e não se tornar um satélite americano.
Em 2020 Konchalovsky realizou Caros camaradas: Trabalhadores em luta, sobre a brutal repressão à greve dos trabalhadores da Fábrica de Locomotivas Elétricas, em 1962, na cidade de Novocherkassk – provocada pelo aumento do preço do leite e diminuição simultânea dos salários. Como é possível uma greve com sangue e mortes em um país comunista? E, para arrematar, ser elidida da história, com as testemunhas obrigadas a assinar acordo de confidencialidade prometendo silêncio sob pena de morte em caso de quebra do acordo?
Foi uma operação de apagamento cavalar, que funcionou até que rumores e protestos aflorassem, culminando com a menção feita por Solzhenitsyn no seu Arquipélago Gulag, em 1973. Uma presença resiliente, uma substância memorial que o filme de Konchalovsky atualiza e recupera, trazendo à tona a violência soterrada pela história oficial, em última análise uma contradição do sistema – greve e repressão – que o próprio sistema não tinha como absorver.
O exorcista
Em 2017 Nikita resolveu mirar sua artilharia para o Centro Presidencial Yeltsin – fundado em 2009 em Ecaterimburgo, com a missão de promover “a instituição da presidência russa e o desenvolvimento da sociedade civil, das instituições democráticas e do Estado de direito”. O alvo: um curta de animação produzido pelo Centro sobre o passado russo, que se limitaria a um desfile de tiranos sangrentos e miséria sem fim. Propôs o fechamento do local, ou pelo menos a revisão rigorosa de sua política educacional.
Não funcionou, ao que tudo indica por um erro de cálculo surpreendente: esqueceu-se ou ignorou o simples fato de Putin ser devedor de Yeltsin pela sua indicação para concorrer à Presidência, em 31 de dezembro de 1999. O Presidente desautorizou-o publicamente – no ano do centenário das revoluções de 1917, os russos deveriam orientar-se “pela reconciliação” e rejeitarem “o incitamento às paixões”, disse Vladimir Putin.
A ação foi um dos temas do programa de TV de Mikhálkov, Besogon TV – que pode ser traduzido por “O Exorcista TV”. Transmitido pelo canal Russia-24, foi suspenso em maio de 2020, após lançar suspeitas de ser a vacinação contra a Covid uma arma biológica de Bill Gates para inocular chips na população e destruí-la. Nikita protestou contra a “censura” do canal, e continuou seu apostolado pelo Youtube. Exatamente um ano depois, em 2021, O Exorcista TV voltou ao canal – Ucrânia e seus demônios, desnecessário sublinhar, pediam sua presença carismática. Guerra agora era real.
Um caso paradigmático: a língua ucraniana, segundo ele, é uma “catástrofe” para a Rússia; fomenta o ódio contra o país e espalha russofobia. Seu ensino é uma operação direcionada ao subconsciente infantil. Nikita não hesita em atribuir a perfídia a ninguém outro que o chefe dos anjos rebeldes, Satã.
Sentado numa cadeira forrada de couro em seu gabinete, cercado por ícones e uma coleção de estatuetas, Mikhálkov destila um variado conjunto de proposições como essa. Com voz suave e modulando gestos e expressões, em geral adornado por um cachecol acolhedor, o apresentador revisita a História sem pudores para corroborar – a Rússia é uma fortaleza sitiada sob constante ameaça de ataque. É um grande país, insiste, uma realidade que o mundo esquece por sua conta e risco.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]
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