Por JOÃO CARLOS BRUM TORRES*
A disparada do dólar é um ataque especulativo do mais poderoso dos atores políticos do Brasil, o partido do mercado, cujo objetivo é impedir que o atual governo venha a haurir qualquer reconhecimento pelo excelente momento da economia
Havia afirmado o propósito seguinte: não vou mais incomodar os leitores e os amigos com comentários sobre os impasses econômicos do Brasil. Voltei atrás, porém, ao ver a página de economia do jornal Zero Hora do dia 18 de dezembro de 2024, na qual se encontra não só a entrevista em que o professor Marcelo Portugal tem destacadamente registrada a opinião de que 2025 vai repetir o desastre de 2014, funesto resultado este que “decorre das incertezas acentuadas pelo insuficiente pacote fiscal do governo”, mas também os oportunos e precisos comentários do senhor Alex Agostini, “economista chefe da Austin Rating”.
Alex Agostini teve a honestidade de dizer o seguinte: “como a alta do dólar está relacionada à ‘perda de credibilidade’ da política fiscal, não entram na conta do mercado fundamentos macroeconômicos para formação do preço do dólar. O Brasil tem boa solvência e boa capacidade de pagamento em moeda estrangeira. Mas o que pesa mais agora são fatores subjetivos de perda profunda de credibilidade, de confiança.”
Pois, muito bem, permitam-me, contudo, a filosofada de quem é professor de filosofia.
Se acordo de manhã e vejo uma réstia de sol, formo uma crença: amanheceu e o tempo é bom. No vocabulário da filosofia analítica contemporânea, isso se chama uma “atitude proposicional” de caráter epistêmico, quer dizer, de caráter estritamente cognitivo, cujo fundamento é o registro simplesmente perceptivo de que amanheceu e o dia é claro. Ora, fora de trabalhos científicos de caráter estritamente teórico, atitudes proposicionais epistêmicas raramente vêm sozinhas, o mais comum sendo suas ligações com atitudes proposicionais práticas, como, para ficar com meu exemplo, “hoje vai dar para caminhar no Parcão”.
O ponto que distingue o comentário do Sr. Alex Agostini é a honesta franqueza de dizer claramente que estamos diante de um fenômeno econômico desligado de fundamentos macroeconômicos, que estamos diante de uma atitude proposicional de caráter subjetivo, quer dizer: algo cuja base não só não é o registro simples do fato de que o déficit primário não será eliminado rapidamente, mas que é a antecipação de uma deterioração da situação econômico financeira do país para a qual contribuirá, exata e muito potentemente, essa mesma antecipação subjetiva da deterioração das contas públicas. O que é dizer que o mercado trabalha, querendo ou não, para fazer acontecer o desastre.
Mas cabe perguntar: a atitude proposicional prática de antecipar o resultado fiscal de 2025 como equivalente ao de 2014 resulta simplesmente do medo de uma quebra da capacidade de pagamento da dívida por parte do governo federal? Ou de que em futuro próximo posições em real só trarão prejuízos?
Se as atitudes proposicionais práticas de (i) forçar a elevação da taxa de juros mediante a auto provocada desancoragem das expectativas dos agentes econômicos e (ii) de comprar dólares em grande escala expressassem simplesmente o medo de perda financeira dos detentores de grandes aplicações, deveríamos reconhecer que ela seria moralmente inocente, porque afinal ter medo não é algo que se possa censurar, mesmo quando esse sentimento seja infundado, caso em que o que cabe fazer são ponderações de que não há razão para tanto temor.
Ocorre, porém, que nossas condutas práticas não se tornam subjetivamente enviesadas somente em função de nossas emoções, como no exemplo, o medo. Elas se tornam subjetivamente práticas também em função de (i) nossos interesses e de (ii) intenções associadas tanto a (II.i) defesa de tais interesses, quanto a “(II.ii) a promoção de nossos ideais, religiosos, morais ou políticos.
É evidente, no entanto, que, no caso da conjuntura político-econômica presente no Brasil, a movimentação do Mercado nestes dias está dirigida em parte a obter ganhos ou evitar perdas financeiras com a instabilidade de preço dos ativos e, por outra parte, com o propósito político de desestabilizar o governo. Essa ação não é a mera agregação atomizada de condutas individuais, mas é estruturada com os grandes investidores dando o rumo dos movimentos de compra e venda de ativos seja por meio do mecanismo indireto e do efeito demonstração da compra de dólares em grande escala, seja de modo explícito por meio de telefonemas, falas de corretores e assessores com seus clientes, os quais, aliás, conforme pesquisa recente, são quase unanimemente posicionados politicamente contra o governo Lula.
A esses mecanismos de ordenação serial, próprios da ação de agentes dispersos e que se encontram no ponto exato da passagem das condutas serializadas à ação concertada própria dos grupos, para valer-me aqui das precisas e preciosíssmas análises de Jean-Paul Sartre, agregam-se ainda as entrevistas dadas aos muitos jornalistas que cobrem as ações e reações do mundo financeiro, cujo destaque na mídia é enorme, como se constata nos jornais impressos e televisivos, assim como nas redes sociais.
Em resumo, estamos diante de uma crise política criada pelo antagonismo entre o governo que se comprometeu com um ajuste fiscal mais lento e cujos ônus sejam melhor distribuídos e forças sociais hegemônicas que querem um governo menor e que não tenha compromisso com a redução de desigualdades, nem preocupação com o desenvolvimento econômico do país, e para o qual 40 anos de mediocridade de crescimento e desenvolvimento social é indiferente, ou, pelo menos, algo que, deixando o mercado funcionar, acabará ocorrendo, cabendo aos que enquanto isso e desde sempre não vão bem, ter o quê? Paciência, ora bolas, e esforçar-se por si mesmos para vencer suas limitações e carências, não importa com que capital pessoal e social tenham ou deixem de ter.
A verdade é que a disparada do dólar é um ataque especulativo do mais poderoso dos atores políticos do Brasil, o partido do mercado, cujo objetivo é impedir que o atual governo venha a haurir qualquer reconhecimento pelo excelente momento da economia – crescimento do PIB, depois de anos, finalmente além de 3%, redução do desemprego, diminuição da pobreza e mesmo aumento na taxa de formação de capital fixo –dados todos que refletem o anseio da sociedade brasileira de voltar a ter um país economicamente dinâmico e capaz de fazer disso o vetor e o motor de nossa passagem a uma fase de maior confiança em nós mesmos, de compromisso com retirar o Brasil do campeonato da maior desigualdade econômica do mundo, e nos devolver a esperança de que nosso país venha estar à altura de suas potencialidades, à altura de si mesmo.
*João Carlos Brum Torres é professor aposentado de filosofia na UFRGS. Autor, entre outros livros, de Transcendentalismo e dialética (L&PM). [https://amzn.to/47RXe61]
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