Nota sobre o leninismo hoje

Imagem: Irina Kapustina
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Por DYLAN RILEY*

A esquerda que idolatra Lênin sem gramscianizar seu método repete os erros da Internacional; a direita que o plagia para fins reacionários prova que não entendeu nada

Como se relacionar com a tradição leninista? Como extrair sua verdade? A base do sucesso de Vladímir Lênin foi a adaptação perfeita de sua estratégia política ao terreno histórico do fim da Rússia tsarista, com sua estrutura agrária ainda quase feudal, seu estado absolutista e sua burguesia passiva.

Mas os bolcheviques equivocadamente concluíram dessa experiência que eles haviam descoberto uma fórmula geral de transformação revolucionária: um partido de quadros formado por revolucionários em tempo integral, voltado para a tomada do poder estatal.

Essa generalização era uma distorção óbvia, já que Vladímir Lênin era um pensador político altamente sofisticado, que compreendia a importância de juntar o projeto socialista ao movimento democrático, contra a autocracia tsarista. Mas, depois da revolução, um certo esquematismo se instaurou, especialmente na formação da Internacional Comunista, com a demanda de que todos os partidos afiliados aderissem às 21 condições.

Isso forçou um processo prejudicial de cisão, que enfraqueceu gravemente o movimento socialista internacional. (Essa não foi a única razão de sua fraqueza: a invasão do Estado socialista nascente pelas forças armadas do imperialismo o colocou na defensiva; a social-democracia antibolchevique também desempenhou seu próprio papel negativo.)

Podemos tratar da questão de como nos relacionar com o leninismo considerando a forma como Antonio Gramsci o fazia. Gramsci era um leninista convicto, mas ele saudou famosamente a vitória bolchevique como uma revolução não apenas contra o capital, mas contra O capital. Nos Cadernos do Cárcere, ele superou a involução tecnocrática do leninismo, no sentido de que compreendeu sua verdade mais profunda ao descartar sua carapaça histórica contingente.

Para tanto, ele partiu de um código construído como uma série de alusões a Nicolau Maquiavel e Jean Bodin. Jean Bodin, Gramsci pontua, só era superficialmente anti-maquiavélico; na realidade, assim como o florentino, foi o fundador da scienza politica, mas na França, onde a questão não era a fundação do Estado, e sim as condições de consentimento a uma ordem política já existente.

Tanto Nicolau Maquiavel como Jean Bodin foram maquiavélicos no sentido de que cada um buscava executar uma estratégia política gerada para o terreno histórico em que lutavam. Praticar uma política abertamente ‘maquiavélica’ na França do século XVI seria um anacronismo histórico.

Ou, para usar os termos de outra das aludidas favoritas de Antonio Gramsci, um maquiavelismo explícito na França do século XVI levaria a um desastre ‘cadornista’: um desperdício de tropas num ataque direto às trincheiras.

Antonio Gramsci refletia sobre o problema fundamental de todo o seu pensamento desenvolvido no cárcere: qual era a estratégia revolucionária adequada para o Ocidente? Para Antonio Gramsci, seguir o exemplo de Vladímir Lênin no Ocidente era precisamente romper com o leninismo no sentido fetichizado; partido de massas, não partido de quadros, e, acima de tudo, uma relação produtiva e criativa com a cultura política revolucionária nacional-democrática específica em que se atua.

A direita americana não aprendeu essa lição. A moda atual entre figuras como Steve Bannon, Rufo, etc., de empregar as ferramentas do leninismo na busca de suas fantasias reacionárias baseia-se em uma compreensão grosseira e superficial das ideias de Vladímir Lênin. Eles são como Malaparte de Tecnica del colpo di Stato; eles enxergam o leninismo como uma tecnologia política atemporal e, portanto, não conseguem entender que uma estratégia propriamente leninista desenvolvida em uma democracia capitalista deve romper com o próprio leninismo.

Eles não enxergam que o leninismo na América aparecerá de uma forma jeffersoniana. O Vladímir Lênin dos Estados Unidos empregará as ideias de autodeterminação, liberdade e independência. Ele atacará o Estado hamiltoniano subordinado às finanças e, cada vez mais, ao entorno de Donald Trump.

Louvará a dignidade do trabalho independente, de algum modo fundindo uma ideologia de produção mercantil simples a um projeto socialista. Acima de tudo, ele irá desmascarar a “corrupção”, que, no entanto, deverá ser transformada em um conceito social, e não apenas em um slogan jornalístico. Será que a esquerda é capaz de enxergar isso? Mais coisas dependem dessa pergunta do que de praticamente qualquer outra neste momento histórico.

*Dylan Riley é professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor, entre outros livros, de Microverses: observations from a shattered present (Verso).

Tradução: Julio Tude d’Avila.

Publicado originalmente no blog Sidecar, da New Left Review.


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