Por MICHEL GOULART DA SILVA*
Na esquerda houve um profundo retrocesso teórico, com o abandono da estratégia da revolução socialista e até mesmo do marxismo e sua adaptação política às regras da democracia burguesa
Quando se olha para as organizações esquerdas, elas mais parecem um amontoado de fragmentos minúsculos e dispersos. Em um primeiro olhar, é praticamente impossível identificar as diferenças que justificam a existência de tantos grupos, afinal, no geral, as posições defendidas por essas organizações são sempre muito parecidas. Normalmente esses grupos possuem algum grau de parentesco, direto ou indireto, sendo produtos de numerosas rupturas ou, em raros casos, de fusões.
Muitos dos dirigentes dessas organizações estiveram juntos em algum momento de sua militância, tendo rompido e dado origem a dois ou mais grupos. Essas rupturas normalmente se dão a partir de alguma divergência tática em uma conjuntura específica, por desavenças pessoais ou, em poucos casos, por divergências teóricas substanciais.
Como muitas organizações têm a tendência de dar maior importância às questões conjunturais, a maior parte das rupturas não se dão a partir de um debate teórico e programático realizado de forma cuidadosa. Pelo contrário, “verifica-se que o princípio do constante apelo às massas foi cada vez mais abandonado e que a burocratização se instalou com a imitação das formas burguesas de política dentro e fora do partido. Em vez da democratização no interior do partido, a política de bastidores, a intriga e formação de camarilhas fizeram a sua aparição”.[i]
São possíveis várias hipóteses para explicar essa extrema fragmentação, ainda que o fator determinante tenha relação com a situação econômica e política. Essa hipótese parte da caracterização de que há cerca de trinta ou quarenta anos percebe-se um profundo refluxo na luta dos trabalhadores, em âmbito internacional. Embora tenham se observado momentos de avanço em algumas lutas ou em organizações de trabalhadores, esses são fatos episódicos ou mesmo isolados se observados em uma perspectiva estrutural e de longa duração.
Portanto, pode-se afirmar que, no cenário posterior ao colapso da Uniao Soviética e dos países do chamado Leste Europeu, não houve mobilizações de trabalhadores que tenham superado a luta imediata e apontado para formas estratégicas organizativas da classe trabalhadora. Observa-se que o “período está marcado por um avanço brutal do capitalismo, que, por meio de seus organismos internacionais e governos nacionais, impõe um modelo econômico de aprofundamento da dominação dos países, pela privatização de serviços e empresas públicas e pela flexibilização de direitos dos trabalhadores, em especial daqueles associados ao welfare state, como os trabalhistas e previdenciários. Em diversos países foram realizadas reformas dos mais variados tipos, buscando reduzir o gasto com serviços e ampliar o apoio financeiro a empresas e bancos”.[ii]
Observa-se, também, que na esquerda houve um profundo retrocesso teórico, com o abandono da estratégia da revolução socialista e até mesmo do marxismo e sua adaptação política às regras da democracia burguesa. Os casos mais evidentes desse processo são os partidos comunistas e social-democratas, que inclusive chegaram ao governo de importantes países, nas últimas décadas.
Contudo, esse recuo teórico e político se aplica não apenas aos comunistas e social-democratas, mas também às organizações que se pretendem revolucionárias, afinal esses grupos, sem ter inserção social para disputar governos e parlamentos, acabam sendo cooptados pela estrutura sindical ou por outros movimentos sociais, adaptando suas ações ao imediatismo corporativo das categorias de trabalhadores onde sua militância está inserida.
No âmbito da esquerda, desde o começo da década de 1990, o cenário que se mostra é o das principais direções assumindo a gestão do Estado e o dos setores pretensamente revolucionários se limitando à contenção das crises do capital por meio da intervenção nos sindicatos ou em movimentos sociais. Em âmbito internacional, a classe trabalhadora vem sendo sistemática e duramente atacada, conseguindo apenas organizar resistências episódicas e fragmentadas. O contexto das últimas décadas abriu espaço para uma maior fragmentação das esquerdas, a partir da cooptação dos principais partidos de base operária e da cisão dos pequenas grupos existentes. Essas crises e rupturas estão diretamente relacionadas ao recuo teórico e político ou mesmo às traições das organizações existentes.
Se antes do fim dos países do chamado Leste Europeu a esquerda girava em torno da União Soviética, seja apoiando o regime stalinista ou se posicionando criticamente frente à burocracia, havendo em diferentes países partidos comunistas e social-democratas, além de grupos maoistas e trotskistas com alguma expressão na vanguarda dos trabalhadores, passou-se a um cenário em que praticamente todas as organizações, inclusive os grupos menores, passaram por crises e ruptura. Embora anteriormente existissem outros grupos minúsculos, sua aparição era limitada e em muitos casos pouco percebida.
Diante da entrada dos partidos reformistas em governos ou de suas guinadas políticas e teóricas, setores que atuavam nessas organizações criaram grupos separados, em alguns casos até mesmo usando a legalidade eleitoral, mas sem inserção na luta de classes concreta. Essas pequenas organizações normalmente giram em torno de um grupo dirigente principal, que centraliza toda sua elaboração política e controla as suas ações, supostamente garantindo que não haja desvios tanto oportunistas como sectários. Essas organizações, com seu grupo dirigente centralizador, que supostamente encarna o melhor do legado revolucionário, mas que em realidade são profissionais políticos afastado da luta cotidiana dos trabalhadores, obviamente não possuem, em sua esmagadora maioria, qualquer consistência teórica e política.
Na segunda metade do século XX, os grandes aparatos reformistas e até mesmo os grupos com influência na vanguarda se fortaleceram diante do crescimento das lutas, tendo talvez como marco simbólico o ano de 1968. Os desdobramentos dessas lutas, que acabaram desviadas para a disputa institucional, fizeram com que partidos reformistas chegassem ao governo de seus países, como na Alemanha e na França, a partir da década de 1970.
Na América Latina, tomada por governos ditatoriais, também houve um crescimento das lutas sociais, tendo possivelmente como principal exemplo as greves no Brasil. Esse processo de lutas, em grande medida, foi o responsável pela convergência de setores da esquerda em uma organização de base operária, ainda que controlada por uma burocracia sindical e setores oriundos do stalinismo, o que se materializou no Partido dos Trabalhadores (PT).
O projeto do PT reunia um conjunto de setores socialistas, tanto reformistas como revolucionários, que se organizam em defesa de uma estratégia de transformação social sob a hegemonia dos trabalhadores. Essa experiência parte da ideia de um movimento socialista, visto como “uma confluência das forças anticapitalistas”.[iii] Neste caso, os partidos, absorvendo a confluência das forças que se voltam contra a ordem existente, se expressam como sua “forma de organização institucional”, ou seja, “essas forças sociais se organizam institucionalmente e é através dos partidos que se realiza a aglutinação de forças”.[iv]
No final da década de 1980, com a crise do bloco soviético e o crescimento de um projeto eleitoral de gestão do Estado, o PT passou cada vez mais a buscar espaço dentro da institucionalidade e abandonou até mesmo sua perspectiva genérica e imprecisa de socialismo. Esse processo levou à saída de vários grupos do partido, como a Causa Operária e a Convergência Socialista. Entre outras rupturas, individuais ou em grupo, o processo político mais importante foi o da expulsão dos chamados “parlamentares radicais” do PT, que vieram a fundar o Partido Socialista e Liberdade (PSOL), como resposta aos ataques impostos pelo governo Lula aos trabalhadores, a partir de 2003.
O PT, como outros partidos operários ao longo dos últimos séculos, foi expressão do processo de organização dos trabalhadores. Os processos de crescimento das lutas normalmente levam à construção ou ao crescimento de uma direção política onde convergem os interesses da classe. Em grande medida essa organização ganha influência na vanguarda, incorporando em suas fileiras amplos setores dos trabalhadores ou, pelo menos, assumindo uma influência em setores da classe. O exemplo mais claro disso foi a convergência da vanguarda e das massas na direção do Partido Bolchevique, no processo político que redundou na Revolução de Outubro, em 1917.
Esse exemplo, bem como outros que poderiam ser citados, mostram que os trabalhadores procuram a direção política mais consciente do processo, seja se colocando sob seu programa, seja fortalecendo organizativamente essa direção. Não se trata aqui de apontar os erros táticos e estratégicos de quaisquer dessas direções, mas de destacar que os setores de massas acabam por se colocar em torno daquelas organizações que apontem, ainda que de forma confusa, para a transformação social.
Esse processo também pode levar à construção de sínteses políticas, que normalmente expressam certa pluralidade de estratégias, socialistas ou de outros tipos. Contudo, o mais importante a se destacar passa pelo fato de que essas organizações expressam a consciência de amplos setores da classe trabalhadora, mostrando organizativa e estrategicamente os limites e possibilidades da conjuntura.
Se esses processos permitiram, em diferentes tempos e lugares, a construção de sínteses estratégicas na luta dos trabalhadores, na medida em que amplos setores da classe se colocaram sob uma direção política, deve-se analisar o que pode acontecer em um cenário em que há uma completa fragmentação da esquerda, com o aparato reformista representando uma alternativa eleitoral e os revolucionários espalhados em dezenas de minúsculas siglas. O que garantiu que em um cenário de ascenso, como o do Brasil no final da década de 1970, algumas organizações construíssem sínteses, foi justamente o fato de reunirem de forma mais ampla possível segmentos da classe trabalhadora. Essas direções foram a expressão do nível de consciência da classe, expressando suas contradições e inclusive suas limitações.
Embora comumente se analise a consciência da classe a partir da vanguarda, ela não pode ser considerada como único parâmetro. Deve-se, como ponto de partida, compreender que “a consciência humana em geral é extraordinariamente conservadora e sempre tende a ficar para trás no desenvolvimento da sociedade, da tecnologia e das forças produtivas”.[v]
Em última instância, a consciência é produto das condições materiais da sociedade. Portanto, “consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente; ela é, ao mesmo tempo, consciência da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e diante do qual se deixam impressionar como o gado”.[vi]
O nível de consciência da classe mais geral concretiza-se, normalmente, em uma organização política de massas com características reformistas. Neste caso, cabe aos revolucionários proporcionar aos trabalhadores o avanço em seu processo de organização, tendo em mente que “a consciência das massas operárias não pode ser uma verdadeira consciência de classe se os operários não aprenderem, com base em fatos e acontecimentos políticos concretos e atuais, a observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações da vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar na prática a análise e a apreciação materialista de todos os aspectos da vida atividade e da vida de todas as classes, categorias e grupos da população”.[vii]
Esse é o caminho da construção e do fortalecimento dessas organizações, na medida em que a consciência dos trabalhadores se coloque para além da percepção imediata de seu cotidiano. Deve-se compreender que “o partido revolucionário forma-se não só pela elaboração clara de uma teoria e de uma prática que correspondam à realidade, mas também, e em primeiro lugar, pelo tratamento das questões que interessam as diferentes camadas da população. Só depois as massas fornecerão ao partido os quadros de que necessita. Isto permite um melhor enraizamento nas massas, que por sua vez melhor atuarão, e vice-versa. O partido e as massas progridem pelas recíprocas contribuições; só desta íntima fusão e, ao mesmo tempo, desta seleção de quadros dirigentes a partir das massas, se cria o partido de massas, quer dizer, o partido, definido em qualidade e não em quantidade, que orienta as massas”.[viii]
Em meio a à fragmentação das últimas décadas, é óbvio que cada sigla pretensamente revolucionária não possua um efetivo enraizamento na classe. São pequenos grupos que ou possuem militantes espalhados em diversas categorias profissionais ou possuem um relativo peso político em uma única categoria. São grupos pequenos, em sua esmagadora maioria com poucas centenas de membros. Normalmente possuem uma estrutura financeira limitada, mantendo-se principalmente a partir da contribuição de seus militantes e apoiadores, tendo uma imprensa com uma pequena inserção entre os trabalhadores. Portanto, cada organização possui uma base social limitada, centrada em algum setor bem específico da população ou mesmo com uma inserção apenas regional.
Expressam, assim, apenas fragmentos de consciência da classe, o que leva a dois desvios principais. O primeiro, o impressionismo, tem relação com o fato de se deixar influenciar pela consciência imediata da categoria que constitui a base social em que está prioritariamente inserida. Com isso, o conjunto das táticas está voltado unicamente para dar resposta aos interesses desses limitados segmentos. Além disso, as respostas que se dão aos problemas da conjuntura visam uma ação imediatista, minimizando a importância de uma estratégia de longo prazo. O segundo desvio, o parcialismo, está relacionado ao fato de considerar o nível de consciência da categoria específica como se fosse o todo da classe trabalhadora. Neste caso, a conjuntura não é pensada em seu sentido amplo, mas a partir de um pequeno fragmento. Com isso, se a categoria está em avanço ou refluxo, mobilizada ou inerte, a avaliação geral da conjuntura será dada somente pela percepção desse limitado segmento.
Esses problemas fazem com que os grupos pareçam cultos ou seitas descoladas da realidade mais geral. Como sua visão é parcial e baseada apenas na visão da base social onde estão inseridos, interpretam que as posições das outras organizações, que também expressam outros fragmentos de classe, é equivocada. Como cada qual está isolado em se ponto de vista particular, começam a criar teorias e interpretações e a centrar seu combate contra as outras organizações, construindo-se uma disputa de intepretação de textos clássicos e críticas mútuas impossíveis de serem interpretadas por quem não participa desses grupos.
Essa disputa fraticida, onde cada grupo afirma estar correto e todos os demais estão errados, leva à completa incapacidade de diálogo entre os grupos para além das táticas mais imediatas. Compreende-se que “o vazio, a escolástica, o imobilismo, o afastamento das massas, são o resultado, precisamente, de cada organização existente se considerar como a eleita dos Deuses para dirigir a revolução próxima, e nesta base cada uma tenta estigmatizar as outras como contrarrevolucionarias”.[ix]
Pode-se afirmar, dentro do cenário de crise exposto, que todas as organizações que se dizem revolucionários não passam de grupos que pregam o marxismo para uma base social ínfima dentro do conjunto da classe. Nenhuma delas, tem o monopólio de uma verdade dos trabalhadores. Na medida em que se mantenham isolados de um debate programático, tático e estratégico com outras organizações, se limitando a contendas que servem apenas para que cada grupo marque posição e não se abra realmente a um efetivo debate, essas organizações estão fadadas a nunca vir a ter qualquer relevância política para a luta de classes, mantendo-se isoladas ou mesmo vindo a desaparecer.
Embora muitos grupos achem que sua vontade subjetiva e seu programa de boas intenções resolverão os problemas da classe trabalhadora, a solução será dada apenas pela luta objetiva do conjunto da classe. Enquanto os trabalhadores não se colocarem numa ampla ofensiva e construírem um instrumento de organização e luta de massas, que abranja os mais amplos setores da classe trabalhadora, estará muito longe de superar sua extrema fragmentação.
Sem essa organização, portanto sem um espaço onde se possa discutir e construir sínteses programáticas, continuará a existir um mosaico de posições espalhadas por centenas de grupos minúsculos irrelevantes para a luta de classes.
*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).
Notas
[i] REICH, Wilhelm. O que é consciência de classe? São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 62.
[ii] SILVA, Michel Goulart da. O fim da União Soviética e seu impacto na esquerda latino-americana. Boletim de Conjuntura (BOCA), nº 22, p. 1-6, 2021, p. 2.
[iii] FERNANDES, Florestan. Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 6 (https://amzn.to/3qFyheq).
[iv] FERNANDES, Florestan. Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 7.
[v] WOODS, Alan & GRANT, Ted. Razão e revolução: filosofia marxista e ciência moderna. São Paulo: Luta de Classes, 2007, p. 4.
[vi] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 35 (https://amzn.to/3YKTxMA).
[vii] LENIN, Vladimir. Que fazer?. São Paulo: Martins, 2006, p. 181.
[viii] REICH, Wilhelm. O que é consciência de classe? São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 66.
[ix] REICH, Wilhelm. O que é consciência de classe? São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 72.
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