Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*
Os estragos da irracionalidade populista fazem necessário repensar nossa racionalidade, inclusive a que chamamos de democracia
A afirmação acima não é uma sentença definitiva. O dito popular é sábio quando diz que “a vida é vivida”. Qualquer conclusão agora é mero chute para o que virá nas eleições majoritárias em 2022. Porém, na história existe tendências, ainda que nem todas sejam confirmadas, e, a longo prazo, tudo mude. Infelizmente, não é o nosso caso agora. Estamos a pouco mais de 18 meses para novas eleições.
E o atual mandatário já se pavoneia com frases assustadoras: como a que recentemente deu na posse de seus capachos no Congresso Nacional. De fato, ao ser chamado de assassino, genocida, entre outros impropérios, limitou-se a dizer: “Nos vemos em 2022”. Nesse sentido, a frase em si contém dois assombros: o primeiro é a resposta calculada e fria para uma personalidade deturpada; a segunda é constatar que, do ponto de vista dele, 2022 são favas contadas.
Partindo desse primeiro parágrafo, é possível fazer duas análises distintas: uma com um verbo tão na moda nesses tempos estranhos, qual seja, “esperançar”; a outra análise, não tão motivadora assim, tem como base um recente artigo do filósofo Jacques Rancière. Nesse sentido, para Rancière (1), o problema maior não está nas hordas “trumpistas” (e aqui “bolsonaristas”) acreditarem em tudo que seus líderes falam, ou negam, ainda que o mundo esteja inundado de notícias que, pretensamente “decifram” seus conteúdos. Ainda para esse filósofo, não é a estupidez que os fazem rejeitarem o óbvio. Em verdade, é a pseudo-lógica da inteligência de se questionar tudo. É o argumento da verdade virado ao avesso.
Mas Rancière(2) pergunta, parecendo perplexo: “Como deveríamos compreender essa comunidade e esse desejo negacionista?”. A conclusão assusta pela verdade factual. A sociedade moderna passou a valorizar um tipo de racionalidade que vê tudo como consequência da ordem global vigente, mesmo que determinados acontecimentos só possam ser explicados pelo viés regional/local. É a forma capitalista de adentrar no imaginário popular. Basta ver quantas situações de barbárie foram e continuam sendo explicadas com a lógica do sistema produtor de mercadorias. Como os campos de concentração (não importa a ideologia), as tecnologias como salvadoras do planeta, os vírus como meros conluios das elites globais para dominarem o mundo.
É verdade que estamos todos, ou quase todos, frustrados, temerosos e invejosos. O perigo é que justamente nesse momento a irracionalidade populista pode fazer estragos. Como tem feito em várias partes do mundo, apenas sendo as mais visíveis para nós, brasileiros, o governo do ex-presidente Donald Trump e o atual governo neofascista de Jair Bolsonaro. Realmente, se Trump primou pelo discurso da desigualdade salvadora americana (lembram-se do slogan “America´s First”?,o qual poderia ser destrinchado em “Yankee´s First”), o nosso atual governante esforça-se pela desinformação mantenedora do nosso centenário “status quo”. Ou não surgimos como República através de um golpe militar? Ou não tivemos um “pai” dos pobres de origem militar? Ou, ainda, não vivemos um falso milagre econômico na ditadura mais recente? É por acaso estarmos no apogeu do desmantelamento das instituições democráticas, além das reformas privatizantes, nesse momento?
Nessa toada, deixei para fazer uma breve análise mais otimista da nossa realidade “esperançosa” de propósito. Não por acreditar nela, mas porque é necessário. Um povo não sobrevive sem “esperançar”. Seja nos afazeres banais da vida cotidiana, seja no desejo de dias melhores. Como disse Rancière:
“Um povo político não é a expressão de um povo sociológico pré-existente. É uma criação específica: é produto de uma série de instituições, procedimentos e formas de ação, mas também de palavras, frases, imagens e representações que não expressam os sentimentos de um povo antes existente, mas que criam um povo particular, ao inventar um regime de afetos para ele.” (3)
Assim, precisamos reaprender a “esperançar”. De alguma maneira, nesses últimos anos pós-golpe parlamentar, com a consequência nefasta do bolsonarismo, perdemos essa cognição. Mesmo para uma sociedade republicana que se criou mantendo a base colonial entre seus filhos, de alguma forma evoluímos como nação independente. Não por acaso, o ápice da nossa melhor musculatura como sociedade veio com o slogan vencedor da “esperança perdeu o medo” nos governos do PT. Sim, houve erros. Erros gritantes, em demasia até. Mas éramos uma nação esperançosa. Uma nação que viu seus líderes máximos protagonistas em diversos assuntos mundiais, para além das melhorias sociais internas alcançadas.
Todavia, uma sociedade de classes como a nossa, e não vou entrar na celeuma sociológica agora, só pode continuar a sonhar quando as classes, de alguma maneira, estão interconectadas. Em outras palavras, quando a mobilidade social é factível aos olhos e sentimentos dos menos favorecidos. É por isso que os Estados Unidos estão tão fragmentados hoje em dia. Assim como estivera a União Soviética. Ou mesmo a república romana, se quisermos voltar no tempo. As camadas sociais estão cada vez mais sedimentadas, desde que neoliberalismo impôs um valor abstrato para toda a sociedade, de um jeito desmesurado.
Infelizmente, o estado catatônico da sociedade brasileira desde 2016 não foi obra do acaso. Hoje em dia é amplamente sabido as tramoias subterrâneas entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional para forjar uma nova República “bestializada”. A divulgação, ainda que parcimoniosa, da “LAMA JATO” seria de estarrecer os velhos coronéis do Império. Engana-se quem pensa que a recente perda de apoio popular se deve a algum tipo de reestabelecimento dos ideais democráticos pelos poderes da República. Não existe ideal democrático. A democracia foi inventada por homens. Por isso mesmo não passa de uma espécie de mito ou de paixão, se preferirem. A perda do apoio popular, pelo menos nesse momento, veio da pior forma: a fome. Daí o corre-corre nos corredores do poder para voltar a dar alguma gorjeta a uma parte menor da população. Um troco de 200 ou 300 reais para alguns, uma minoria dos que tiveram direito ao auxílio emergencial nessa pandemia.
Volto a Rancière para corroborar com o alerta dele de que precisamos repensar nossa racionalidade, inclusive a que chamamos de democracia. Se ela pareceu um regime de governo promissor de tempos em tempos, apesar de ter sido subsumida, gradualmente, nos últimos dois séculos pelo grande capital, hoje algo ainda pior está tomando forma dentro do corpo democrático. Talvez estejamos passando para o verdadeiro estágio superior do capitalismo. Não aquele escrito por Lênin, mas o esboço do que já tinha imaginado o pensador francês Joseph Jacotot, qual seja, a loucura anti-igualitária como base de uma sociedade em que todo inferior era capaz de encontrar alguém inferior a ele e desfrutar dessa superioridade. Rancière traduz isso dizendo: “da minha parte, há apenas um quarto deséculo, eu sugeria que a identificação da democracia com o consenso produzia, no lugar de um povo de divisão social, agora declarado arcaico, um povo ainda mais arcaico baseado apenas nos afetos do ódio e da exclusão”.(4)
Quanto a nós, brasileiros, bem … estivemos sempre na periferia dos diversos tipos de sistemas globais de dominação. Mereceríamos um ano de 2022, com novas eleições majoritárias, mais “esperançoso”. Mas, o continuar desse acorde levará a banda inteira (nossa sociedade) para o desafino e o desatino. Teremos pesadelos!
*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
Notas
[1] https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/ranciere-ve-crise-da-democracia-e-da-razao.
[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.