O antigo jogo

Rosa Luxemburgo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ROSA LUXEMBURGO*

“Faremos nossa voz ressoar alto, as massas nos entenderão, e aí elas se voltarão tanto mais impetuosamente contra esses fabricantes de boatos e provocadores de pogroms”

“Liebknecht assassinou 200 oficiais em Spandau. Liebknecht foi assassinado em Spandau. Os spartakistas tomaram de assalto o Marstall.[i]

Os spartakistas queriam invadir o Berliner Tageblatt[ii] armados de metralhadoras. Liebknecht saqueia as lojas. Liebknecht distribui dinheiro aos soldados para incitá-los à contrarrevolução”.

“Os spartakistas avançam contra o Parlamento”. A esta notícia, a bancada do Partido Popular Progressista ali reunida entrou em pânico e a digna assembleia se dispersou deixando atrás de si, sobre o palco onde horríveis delitos eram aguardados, chapéus, guarda-chuvas e outros objetos preciosos, quase insubstituíveis nos dias de hoje.

É assim que há uma semana circulam os boatos mais estúpidos sobre a nossa tendência. Que em algum lugar uma janela se estilhace na rua, que um pneu estoure na esquina com grande estrondo e logo algum idiota, olhando em volta com os cabelos eriçados e a espinha arrepiada, exclama: “Aha! são com certeza os spartakistas!”

Várias pessoas fizeram a Karl Liebknecht um tocante pedido pessoal: que por favor excluísse o marido, o sobrinho ou a tia do massacre planejado pelos spartakistas. Eis o que se passou, em verdade vos digo, no primeiro ano, no primeiro mês da gloriosa revolução alemã.

Vendo isso quem não pensa na cena da Flauta mágica em que o pequeno malandro Monostatos, apavorado com a sombra de Papageno, tremendo de medo, canta:

Acredito que seja o diabo,
Sim, sim, é o diabo,
Ah! se eu fosse um camundongo,
Como me esconderia,
Ah! se eu fosse um caracol,
Logo entraria em minha casa.[iii]

Mas por trás desses rumores confusos, dessas fantasias ridículas, dessas absurdas histórias de bandidos e dessas mentiras desavergonhadas acontece algo muito sério: há sistema nisso. A campanha é conduzida de maneira planejada. Os rumores são fabricados deliberadamente e lançados em público: essas histórias da carochinha servem para lançar os idiotas num clima de pânico, para confundir a opinião pública, intimidar e desorientar os trabalhadores e soldados, para criar uma atmosfera de pogrom e apunhalar politicamente a tendência spartakista, antes que ela tenha a possibilidade de levar sua política e seus objetivos ao conhecimento das grandes massas.

O jogo é antigo. Basta lembrar como há quatro anos, quando a guerra foi deflagrada, os promotores de guerra puseram em circulação, por meio de seus agentes, os boatos mais extravagantes: automóveis de ouro, aviadores franceses, fontes envenenadas, olhos furados – tudo isso para provocar um furor bélico cego e utilizar os trabalhadores como carne de canhão.[iv] Hoje procede-se da mesma maneira, visando a desorientar as massas populares, a semear entre elas o ódio cego para que se deixem utilizar, inconsciente e acriticamente, contra a tendência spartakista.

Nós conhecemos a melodia, conhecemos a letra e inclusive os autores. São os círculos dos social-democratas dependentes,[v] dos Scheidemann, Ebert, Otto Braun, dos Bauer, Legien e Baumeister[vi] que envenenam deliberadamente a opinião pública com mentiras desavergonhadas e instigam o povo contra nós porque temem nossa crítica e têm todas as razões para temê-la.

Essa gente, que ainda uma semana antes de a revolução eclodir denunciava como crime, “golpismo”, aventura qualquer ideia de revolução na Alemanha, que declarava que a democracia já estava realizada na Alemanha pois o príncipe Max[vii] era chanceler e Scheidemann e Erzberger andavam para lá e para cá de casaca de ministro, essa gente quer hoje persuadir o povo de que a revolução já está feita e que os objetivos principais já foram atingidos. “Eles querem retardar a continuidade da revolução, querem salvar a propriedade capitalista, a exploração capitalista!” Esta é a “ordem” e a “calma” que se quer proteger contra nós.

Aí é que está a dificuldade. E também a razão pela qual esses senhores alimentam contra nós um medo e um ódio mortais. Eles sabem perfeitamente que não saqueamos lojas, embora desejemos abolir a propriedade privada; que não nos lançamos ao assalto do Marstall nem do Parlamento, embora desejemos destruir a dominação de classe da burguesia; que não assassinamos ninguém, embora desejemos intransigentemente fazer avançar a revolução no interesse dos trabalhadores.

Com toda consciência e claras intenções eles desfiguram nossos objetivos socialistas em aventura lumpenproletária para desorientar as massas. Grita-se contra os golpes, os assassinatos e outros absurdos semelhantes, mas é o socialismo que se tem em mente. Procurando apunhalar a tendência spartakista, é o coração da própria revolução proletária que se quer atingir!

Mas o jogo não terá êxito. Não nos farão calar. Camadas pouco lúcidas de trabalhadores e soldados podem ainda momentaneamente deixar-se instigar contra nós. Um retorno momentâneo da vaga contrarrevolucionária pode levar-nos de volta a uma dessas prisões que acabamos de deixar – não se pode parar a marcha férrea da revolução. Faremos nossa voz ressoar alto, as massas nos entenderão, e aí elas se voltarão tanto mais impetuosamente contra esses fabricantes de boatos e provocadores de pogroms.

E então a tempestade destruirá, não o Marstall, as padarias ou os idiotas medrosos, mas ela varrerá vocês, vocês que ontem eram cúmplices da reação burguesa e do príncipe Max, vocês, tropas protetoras da exploração capitalista, vocês, patrulhas da contrarrevolução à espreita, vocês, lobos em pele de cordeiro!

*Rosa Luxemburgo (1871-1919), economista e filósofa, foi dirigente do SPD e líder do movimento espartaquista. Autora, entre outros livros, de Reforma ou revolução? (Expressão Popular).

Tradução: Isabel Loureiro.

Publicado originalmente em Die Rote Fahne, no. 3, 18 de novembro de 1918.

À medida que se aproxima o 15 de janeiro – dia em que, em 1919, foram assassinados Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht por policiais do governo social-democrata alemão –, publicamos textos que recuperam o legado desses importantes revolucionários.

Notas da tradutora


[i] Marstall: edifício militar onde fica acantonada uma unidade de marinheiros revolucionários.

[ii] Berliner Tageblatt: jornal da grande imprensa berlinense.

[iii] Ich glaub’, das ist der Teufel,/ Ja, ja, das ist der Teufel,/ Ach, wär’ ich eine Maus,/ Wie wollt’ ich mich verstecken,/ Ach, wär’ ich eine Schnecken,/ Gleich kröch’ ich in mein Haus.

[iv] Cf. o começo de A crise da social-democracia.

[v] Rosa Luxemburgo refere-se aos social-democratas majoritários, opondo-os aos independentes.

[vi] Albert Baumeister: dirigente sindical; em 1919 contribuiu para armar um regimento de voluntários para apoiar o partido e o governo social-democratas contra os revolucionários.

[vii] Max von Baden, primo do imperador Guilherme, foi nomeado chanceler do império alemão em 3 de outubro de 1918. Formou um gabinete com Erzberger, do partido do Centro, dois social-democratas, Scheidemann e Bauer, e os liberais. A Alemanha se tornou uma monarquia parlamentar, até que no dia 9 de novembro o imperador foi forçado a renunciar devido à onda revolucionária que tomou conta do país derrotado na guerra.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A crítica sociológica de Florestan Fernandes

A crítica sociológica de Florestan Fernandes

Por LINCOLN SECCO: Comentário sobre o livro de Diogo Valença de Azevedo Costa & Eliane ...
E. P. Thompson e a historiografia brasileira

E. P. Thompson e a historiografia brasileira

Por ERIK CHICONELLI GOMES: A obra do historiador britânico representa uma verdadeira revolução metodológica nas ...
O quarto ao lado

O quarto ao lado

Por JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO: Considerações sobre o filme dirigido por Pedro Almodóvar ...
A desqualificação da filosofia brasileira

A desqualificação da filosofia brasileira

Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: Em nenhum momento a ideia dos criadores do Departamento ...
Ainda estou aqui – uma surpresa revigorante

Ainda estou aqui – uma surpresa revigorante

Por ISAÍAS ALBERTIN DE MORAES: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles ...
Narcisistas por todo lado?

Narcisistas por todo lado?

Por ANSELM JAPPE: O narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para ...
As big techs e o fascismo

As big techs e o fascismo

Por EUGÊNIO BUCCI: Zuckerberg subiu na carroceria do caminhão extremista do trumpismo, sem pejo, sem ...
Freud – vida e obra

Freud – vida e obra

Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Considerações sobre o livro de Carlos Estevam: Freud, Vida e ...
15 anos de ajuste fiscal

15 anos de ajuste fiscal

Por GILBERTO MARINGONI: Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na correlação de forças da ...
23 de dezembro de 2084

23 de dezembro de 2084

Por MICHAEL LÖWY: Na minha juventude, durante as décadas de 2020 e 2030, ainda era ...
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!