O autor desconfiado

Imagem: Andrés Sandoval / Jornal de Resenhas
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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

Comentário do livro “O autor no cinema”, de Jean-Claude Bernardet

A questão autoral na produção fílmica possui particularidades que a singularizam no campo das artes. Com O autor no cinema, Jean-Claude Bernardet situa-se de maneira convincente em uma das encruzilhadas do pensamento contemporâneo, explorando sua significação para o horizonte cinematográfico. Sente-se no autor (e a palavra não é aqui um trocadilho) uma proximidade com a reflexão de cinema que gratifica a leitura e dá ao ensaio uma interação dinâmica com o universo abordado.

A questão da autoria relaciona-se com um tema candente da filosofia e da estética contemporânea, que adquire força redobrada a partir dos anos 60: o do estatuto da subjetividade. Em função da dimensão histórica que possui o tema “autoria” para a produção de filmes, muitas vezes estabelecem-se pontes e relações sem o devido domínio dos horizontes da bibliografia cinematográfica. Este absolutamente não é o caso do livro de Bernardet em que efetivamente respira-se cinema e sente-se, na própria escritura, a convivência de décadas que dedicou a este campo.

Dentro da boa tradição acadêmica, em um texto no qual está presente de maneira evidente sua origem (o que absolutamente não é um handicap), Jean-Claude realiza uma pesquisa exaustiva da questão autoral conforme surge no discurso da crítica e dos diretores, brasileiros e franceses, nos anos 1950/1960. A parte francesa, embora não seja por inteiro inédita, destaca-se pelo recorte preciso de uma época densa da produção cinematográfica, em que não é muito fácil locomover-se. Os anos 1950 e 1960 na França são de abordagem delicada em função de uma completa guinada ideológica e estética ocorrida no espaço de poucos anos.

A relação entre o quadro que encontram os chamados “jovens turcos” (Truffaut, Rohmer, Rivette, Godard, Chabrol) no início de sua carreira como comentaristas de cinema e o horizonte no qual iniciam e posteriormente desenvolvem sua produção cinematográfica é bastante complexa. Na análise desta conjuntura, muitas vezes o discurso uniformizador das rupturas próprias à dimensão moderna da arte une-se ao desconhecimento do horizonte particular da cinematografia, levando ao estabelecimento de várias imprecisões sobre o período.

Desta armadilha Bernardet escapa com agilidade. O quadro que traça do aparecimento da questão autoral na França e dos primórdios da atividade crítica e cinematográfica da primeira “nouvelle vague” é preciso. O que dá densidade para a exposição é a correta percepção do relativo isolamento deste grupo para com as tradições modernas de vanguarda que tiveram tanta força no cinema dito impressionista dos anos 20 (Epstein, Dulac, Delluc, Gance), e sua singular vinculação com um humanismo um pouco piegas, carregado de cristianismo. Vínculo este inconcebível para nossos olhos excessivamente viciados pelas análises da modernidade na literatura e nas artes plásticas, mas que surge como indispensável para a correta compreensão da “nouvelle vague”, movimento que abre espaço para os diversos “cinemas novos” dos anos 60 e para uma real adequação da cinematografia aos postulados de uma arte em sintonia com a sensibilidade estética do século XX.

É da confluência entre a ética cristã e o cinema industrial hollywoodiano que nasce a madura modernidade cinematográfica. O trabalho do surrealismo e das vanguardas tradicionais surge no pós-guerra em artigos exaltados da revista L’Âge du Cinéma, e posteriormente na revista Positif, mas não é aí que emerge o caldo que irá sedimentarizar modernidade cinematográfica. Os críticos ao Cahiers du Cinéma abominavam o surrealismo e Bazin escreveu um artigo bastante icônico sobre o espírito das vanguardas.

No bojo da emergência da “nouvelle vague”, dentro da produção crítica do primeiro Cahiers, encontram-se elementos estranhos para a arte moderna como a convicção na representação realista, uma presença parte da ética cristã e um diálogo deslumbrado com uma forma narrativa bem tradicional entre os anos 20/50. Embora queira pensar que esta é uma análise pessoal, não presente como tal no livro resenhado, é extremamente estimulante encontrar na obra de Jean-Claude Bernardet uma percepção não (…) e delicada deste momento e de implicações para a reflexão sobre o auto cinematográfico. Novamente sentimos a importância de se pensar o horizonte cinematográfico de dentro, e não a partir de uma visão superficial guiada pelo conhecimento denso de outras áreas.

A maior contribuição de O autor no cinema está no interessante recorte realizado no discurso autoral dos anos 1950 e 1960, possuindo a dupla dimensão de revelar a presença desta discussão entre nós e situar seus limites e imprecisões. Se na primeira parte do livro podemos desejar, a partir do material coletado, voos mais ambiciosos em torno da questão autorial na crítica francesa, o levantamento da discussão sobre o assunto no Brasil nos mostra um material inédito.

Mesmo textos mais conhecidos (como o discurso glauberiano sobre o assunto) adquirem outra consistência ao serem situados no contexto que, como traço central, esteve no âmago de sua origem. A disposição da exposição é interessante, permitindo-nos o contato com amplos trechos dos originais. Aqui se situa, no entanto, um dos principais problemas do livro: a falta de referências bibliográficas precisas que possibilitem a localização das citações. Em um livro que tem como estrutura básica o recorte de citações (estrutura que em si mesma, volto a insistir, é bastante dinâmica), a ausência das referências é um pecado capital.

Ausência que se torna mais grave tendo em vista a origem acadêmica do autor. Temos um excelente trabalho de levantamento bibliográfico que inexplicavelmente não é aproveitado nem exposto como tal. Efetivamente, não há padrão de referência bibliográfica das fontes utilizadas. Os abundantes trechos citados são localizados de maneira vaga (em tal artigo, em tal livro), sem coordenadas precisas, o que dificulta bastante uma eventual conferência, ou um trabalho de pesquisa que queira utilizar o levantamento como material original.

Este interessante levantamento de fontes sobre a questão do autor no cinema é perpassado por uma visão pessoal que, embora subterrânea, é sempre presente, emergindo como evidência na última parte do livro, intitulada “O Declínio do Autor”. Neste fio subterrâneo que articula a exposição do conceito de autoria no cinema está uma visão que sofre uma nítida influência de um discurso que já foi taxado de “anti-humanista”, e no qual encontramos a marca difusa do time “clássico” dos anos 60: Foucault, Derrida, Lyotard, Baudrillard etc.

Esse recorte, se não prejudica a exposição horizontal dos capítulos anteriores, empobrece, às vezes de modo redutor, a crítica que se pretendeu autoral. Querer identificar e sobrepor o conceito de autor com o de unidade de obra (e o caso Rohmer/Chabrol/Hitchcock é então explorado repetidamente como paradigma) é ser injusto com o conceito que se critica. Não é evidentemente sobre a unidade estilística, além do mais pensada de maneira redutora, que o trabalho mais produtivo que se utiliza da noção de autor irá se centrar.

Da mesma maneira, demonstrar a abundância e indeterminação de um conceito como “estilo” em um ambiente tradicionalmente pouco rigoroso como o da crítica cinematográfica pode não significar muita coisa. O que dizer então de conceitos como realismo, representação, estrutura, significação etc.? Partindo deste princípio deixaríamos pouca coisa de pé. A noção de estilo, como traço pessoal de uso dos recursos da narrativa em sua forma fílmica, é um conceito forte e já tematizado de uma maneira bem mais complexa daquela que deixa entrever o texto.

Há aí, como em outros pontos, um movimento duplo que às vezes compromete a análise: à ilustração da utilização frágil de uma construção analítica particular, ligada à tradição autorial em um determinado período histórico, se sobrepõe uma crítica ampla e generalizadora. O recorte crítico adquire então sempre mais bateria do que o movimento de exposição histórica da produção autorial, que na contraposição surge fragilizada. Há que se admitir que a tradição que balizou a dimensão autoral no cinema produziu uma reflexão mais consistente da que exposta no livro. Quando não mais, pela inauguração de um gosto crítico, um gosto cinematográfico, que finalmente compôs a escala pela qual vimos o cinema neste século (Hitchcock, Welles, Renoir, Rosselini, Bresson, Lang etc.). A crítica autoral nos deu a medida e a linha do horizonte. Linha que talvez seja outra daqui a cem anos, mas que ainda não conseguimos enxergar hoje para além dela, por estarmos mergulhados neste recorte.

O problema da bibliografia que tematiza a questão da subjetividade nos anos 60, buscando diluí-la e descentrá-la, é não oferecer ferramentas concretas ao trabalho de análise fílmica, para além de exaltação do inefável e da elegia das singularidades. Esta ideologia quando aproximada às particularidades da produção fílmica proporciona um campo particular para a afirmação de um discurso que em outras artes é mais difuso. A negação da dimensão autoral e estilística de um Proust, de um Dostoiévski, de um Cézanne, de um Thomas Mann pode parecer descabida ou pelo menos exigir um pouco mais de atenção daquela dedicada pela análise que se dirige aos diretores cinematográficos.

E, no entanto, a dimensão autoral é extremamente profícua para a análise da obra de diretores como Godard, Fellini, Lang, Welles, Buñuel, Bergman etc. Neste campo os ensaios mais interessantes são justamente os que se debruçam de uma maneira arguta sobre as recorrências estruturais destas obras, muitas vezes relacionando-as à vida pessoal do diretor. Em outras palavras, quando se evita a transposição mecânica de sistemas desconstrutivistas da noção de sujeito autoral.

Para termos uma visualização mais ampla da problemática autoral ficou faltando no livro de Jean-Claude o complexo horizonte bibliográfico norte-americano que trabalha sobre o assunto (entre outros: Peter Wollen, Brian Handerson, John Hess, Stephen Heath, Edward Buscombe, Pauline Kael, Andre Sarris, para além da antologia organizada por John Caughie). A discussão sobre a questão do autor no cinema transfere-se nos anos 1970 da França para os Estados Unidos, onde este conceito é elaborado a partir de um ponto de vista que se distancia da ruptura mais radical com a temática, havida no contexto francês.

Embora o recorte a que a pesquisa se propõe seja especificamente “França, Brasil, nos anos 50 e 60”, para se traçar um quadro mais preciso do assunto é indispensável o diálogo com a produção estadunidense da década seguinte. Houve efetivamente nesta época um deslocamento da questão para os Estados Unidos, deslocamento este que os franceses, às vezes excessivamente sensíveis à pecha de trabalharem um tema “ultrapassado”, não acompanharam.

No mais, o “autor” Jean-Claude Bernardet ilustra com sua própria produção crítica a pertinência da noção de autoria. Talvez desta proximidade nasça sua desconfiança para com o conceito como ferramenta metodológica. Embora não estejamos falando de uma obra cinematográfica, sente-se neste livro seu estilo particular de escritura e a costura do Brasil – do cinema e da crítica brasileira – que compõe seu horizonte. Horizonte no qual podemos vislumbrar, sem esforço, constantes e evoluções temáticas já esboçadas em Brasil em tempo de cinema. Elementos estes que adquirem uma dimensão mais precisa ao serem adicionados dados biográficos: trata-se de uma visão da sociedade e do cinema brasileiro marcada pela experiência de Brasil de um autor (um sujeito humano) que teve essa vivência a partir da decalagem com um horizonte que é o horizonte europeu/francês onde passou sua infância.

Se esta dimensão pessoal é indispensável à compreensão da obra do crítico (que inclusive tem um livro sobre o personalíssimo complexo paterno no cinema brasileiro), por que negá-la ao universo da cinematografia? Será possível admiti-la em outros campos artísticos e negá-la no cinema em função de peculiaridades  que envolvem sua produção? Ela é tão evidente na estrutura das obras dos grandes “autores”, das grandes personalidades cinematográficas, que não vejo efetivamente como questioná-la na raiz.

O que não deve significar a aceitação de unidades apressadas e definições estilísticas sem consistência, nem muito menos sua centralização na figura individual do diretor. Responsabilidade criativa e autoria são coisas que não devem ser misturadas. O discurso que afirma a noção de autor como algo “déjà-vu” e ultrapassado é extremamente pernicioso para  arte e, em particular, para o estudo da obra cinematográfica. Como boa parte da herança que nos vem de 30 anos atrás, na ânsia de radicalizar o discurso libertário, acaba por nos negar a possibilidade de afirmar essa mesma liberdade face à criação artística como alteridade, diluindo a dimensão pessoal do espectador e a do artista como intenção e vontade de sujeito debruçando-se sobre a matéria.

*Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de Mas afinal… o que é mesmo documentário? (Senac-SP).

Publicado originalmente na revista Imagens, no. 5, em 1995 (Unicamp).

 

Referência


Jean-Claude Bernardet. O Autor no Cinema – A Política dos Autores: França, Brasil anos 50 e 60. 2ª. Edição. São Paulo, Sesc, 2018.

 

 

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