Por HERIK RAFAEL DE OLIVEIRA, MARCOS NATANAEL FARIA RIBEIRO, MARIAN DIAS & PATRÍCIA ANDRADE*
Psicanálise e Escola de Frankfurt para entender a violência escolar
A partir do artigo intitulado “É neonazismo, estúpido!”, de Leonardo Sacramento, publicado no site A Terra é Redonda, nos sentimos convocados a entrar no debate e ponderar sobre alguns pontos relativos à análise e tomada de posição frente os episódios de extrema violência ocorridos dentro de instituições escolares.
Temos trabalhado como grupo de estudos e pesquisas há quase uma década com os temas da inclusão e da violência escolar, sobretudo sob as formas de discriminação e de bullying.[i] Sustentados pelos conceitos da psicanálise freudiana e por reflexões de Adorno, Horkheimer e Marcuse, temos tentado contribuir no sentido de pôr em marcha uma psicologia social analiticamente orientada; ou seja: nossas pesquisas tentam investigar tanto o clima cultural que permite a eclosão da violência de um indivíduo sobre o outro como também as configurações psíquicas que têm sido geradas a partir dessa sociedade.
De alguns anos para cá, temos investigado a hipótese de que as tendências narcísicas de personalidade dos indivíduos têm se acentuado. Uma das consequências dessa acentuação seria a busca de alívio e satisfação por meio da aniquilação do outro, que é coisificado.
Isso tem nos ajudado a pensar não apenas nos horrores do nazismo e na sua permanência como ameaça constante mesmo nas democracias – que têm se mostrado, sobremaneira, meramente formais – mas também, infelizmente, na estrutura psíquica preponderante em estudantes que praticam o bullying. Semelhante organização psíquica também estaria presente naqueles que praticam feminicídios e estupros. A lógica nociva, em todas estas situações seria a de que o outro ‘não vale nada’, ou, como os nazistas diziam, seriam uma ‘sub-raça’.
Portanto, o que é terrificante é que um tipo de violência disseminada há mais de seis décadas parece ter sim uma relação com o bullying, não no sentido de que este a justifica, mas no sentido de que, em ambos os casos (e nos outros mencionados) ocorre a liberação de um impulso de destruição que não conhece nenhum limite e prossegue até eliminar a vontade do outro, o que coincide, muitas vezes, com a sua eliminação física, e, ao que tudo indica, prescinde de qualquer justificativa, por mais fajuta que ela possa ser e tenda a ser.
Fizemos essa breve explanação para expor que nosso ponto de vista diverge do apresentado no artigo de Leonardo Sacramento. Ali se afirma, por exemplo, que: “Bullying não provoca os ataques. Quem acha isso, é porque se identifica com os autores, identificando-se socialmente e racialmente – uma espécie de supremacismo velado.” Talvez o texto tenha querido expressar que quem sofre o bullying não provoca os ataques, no que temos total concordância. De fato, a hipótese de um ‘transbordamento’, de um ‘surto’ por parte de alguém que é constante vítima de humilhações não tem o menor lastro com os perpetradores dos ataques recentemente ocorridos em nosso país.
Também recusamos qualquer “casuísmo da psiquê”, mas lembramos que a pressão do clima cultural, a regressão política e a coerção econômica são experimentadas, objetivamente, na carne e no espírito das pessoas e dos grupos sociais. Nossas pesquisas têm indicado que estudantes que não se saem bem no desempenho acadêmico e que têm destaque na sociabilidade, em especial nos atributos de destreza física, estão mais envolvidos com a prática de violência contra seus colegas.
Nunca é demais lembrar que a exaltação social da força física e de determinados padrões corporais – característica dos contextos sociais autoritários e de inspiração totalitária, tais como nas grandes demonstrações de desfiles e acrobacias sincronizadas exaltadas como eventos de massa no nazismo e no fascismo – ainda se configura como prática em muitas escolas. A tendência ao totalitarismo também presente na instituição escolar precisa ser enfrentada a partir da reflexão crítica dos seus profissionais.
Vivemos sob o imperativo da adaptação ao que não é natural nem tolerável: desde que na presidência, FHC chancelou, com fria resignação política, que o destino social de alguns seria o de se tornarem inimpregáveis, até o terrível metralhar a petralhada, há um clima de maior permissividade para partir para o ataque e a agressão sem uma justificativa mais elaborada, apenas porque o outro pareceu ser mais frágil, mais vulnerável e, portanto, merecedor de humilhações, já que agora sequer se sustenta a falácia do tal bolo que num futuro distante seria repartido com todos.[ii] Passou a parecer ‘natural’ alguém ser ‘eliminado’.[iii] E esta é exatamente a lógica do bullying: trata-se de uma forma de poder em que um se sente no direito de dilacerar, de estraçalhar o outro. O bullying não é uma violência menor. Se a falta de tato com o outro passa a ser contabilizada em graus supostamente toleráveis de violência, já perdemos o horizonte de seu combate.
Com veemência, o texto alude aos “grupos neonazistas” que aliciam os jovens e estão articulados em redes nem tão ocultas assim, mas que instituições de mediação dominantes se esforçam para não ver e não deixar ver. Como Freud[iv] nos lembra, ao cedermos nos nomes cedemos nas próprias coisas. Devemos, como o texto o faz, chamar aquilo que é pelo seu próprio nome e, infelizmente, sob o verniz de certo rigor conceitual, mesmo a academia tem hesitado demais a chamar de fascismo as suas mais ostensivas manifestações. Tristemente atual é a formulação de Max Horkheimer e Theodor Adorno alertando sobre “como é estúpido ser inteligente”, aludindo aos argumentos bem fundamentados, manifestação de uma “superioridade bem-informada”, com que os ditos inteligentes contradisseram “as chances de Hitler chegar ao poder, quando sua ascensão estava clara como o dia!”.[v]
Neste sentido, estamos de acordo com a necessidade de assinalar a atuação sistemática e impune de grupos neonazistas, bem como com a urgência de atuar para desmobilizá-los; lembramos apenas que não cabe fazer hipóstase de organizações como essas, acentuando seu caráter de seita e insuflando-as. O incremento no poder desse tipo de organização decorre justamente do fato de que a destrutividade que encampam não é monopólio delas, nem o são seus ideais, seus métodos, seus alvos. Elas estão em fina sintonia com o desenvolvimento da própria lógica da sociedade industrial no capitalismo tardio. Isso parece ser o que melhor explica certa aliança identificada pelo texto entre essa rede que não tem “medo de aparecer” e a “polícia, a mídia, os governos, a burguesia e a classe média, inclusive a progressiva”.
Os fios que tecem aquela rede são os mesmos que tramam, de maneira claustrofóbica, o tecido social. Amparados, uma vez mais, em Adorno[vi], sublinhamos a compreensão de que, se é ameaçadora a sobrevivência de tendências fascistas (na forma de organizações neonazistas) contra a democracia, potencialmente mais ameaçadora é a sobrevivência dessas tendências no âmago da própria democracia. Possivelmente por esse motivo é que, por exemplo, são encontrados com frequência traços de supremacismo nos jovens autores desses atos, “mesmo que não militem formalmente em uma célula nazista”, como afirma o artigo. Não é esta uma ideologia muito afeita à ignomínia da luta de todos contra todos imperante, e cada vez mais premente, no capitalismo que, desde há muito, tem sido usada para justificar sua expansão?
Essa relação de determinação material entre a racionalidade social dominante e formas de violência, como os massacres, é explicitada por Sacramento — em bases distintas das evocadas por nós — na importante formulação que relaciona o neonazismo ao ordenamento neoliberal da sociedade. Contudo, emaranhado a tal formulação, identificamos o risco argumentativo de transformar o problema dessas manifestações de violência numa questão geracional, como ressoa na proposição do texto segundo a qual “essa geração [nos parece que se refere à mais recente geração, nativa do ambiente das redes sociais e seus símiles, enfatizados em seu texto] é mais afeita ao neonazismo porque ela é o produto mais bem-acabado do neoliberalismo”.
Sim, há a necessidade de compreender como esferas de mediação cujo avanço notável nos anos mais recentes operam na promoção de um clima cultural cada vez mais propício à barbárie e como essa geração a leva à cabo, mas talvez não haja nenhuma predileção particular por escolher nas fileiras dessa geração os herdeiros testamentários do espólio do nazifascismo (que sequer morreu). Nesse sentido, lembramos que já houve a recaída na barbárie e ela aconteceu antes do que se nomeia como era neoliberal, embora já no âmbito da sociedade administrada e do capitalismo monopolista.
Contemporaneamente, não são poucas as manifestações congêneres de violência cujos algozes não pertencem a “essa geração” e o ovo que eclode com os golpes dos neófitos foi chocado no silêncio (e silenciamento) político das gerações anteriores, pelo fracasso em enfrentar as condições sociais e econômicas que permitiram Auschwitz e outras incontáveis barbáries. Sob a pressão que, realmente, se acirra — e na deterioração do trabalho isso é particularmente visível, como apontado por Leonardo Sacramento — testemunhamos mais e mais explosões de barbárie, mas não podemos esquecer que seus determinantes estão entrelaçados à própria cultura e isso não é algo recente, como não é a perseguição das minorias, nem mesmo sob a alegação de que o grupo perseguido está “ocupando o lugar que tradicionalmente lhe seria cativo” — o que na perseguição aos judeus já estava posto. Não ressaltamos os traços arcaicos da barbárie para negar o surgimento de novos elementos, mas para chamar a atenção para a persistência dos antigos; o que apenas torna ainda mais difícil a tarefa de seu enfrentamento.
Em um contexto no qual avolumam-se os desafios decorrentes do retrocesso nas políticas de educação inclusiva, do avanço do ensino tecnicista, da amputação de conteúdos críticos, dentre outras regressões, parece arriscado demais afirmar tão taxativamente que a escalada da violência sob a forma de ataques brutais em escolas “não é problema de estrutura escolar”, como descrito no texto com o qual aqui dialogamos.
A ressalva sobre a carência real de investimento acaba tornando-se insuficiente, pois, lembremos, embora experimentemos com muito mais frequência cortes do que subsídios, estes podem ser (e foram) injetados no fortalecimento de medidas avessas à educação inclusiva, alinhadas à fetichização da técnica, à valorização da meritocracia e alheias aos conteúdos críticos. Em resumo, fazer investimento na educação escolar sem qualquer compromisso com a emancipação não é uma novidade e toda denúncia de cortes orçamentários precisa se fazer acompanhar da enfática defesa da educação comprometida com a emancipação.
Para além disso, é possível que, sob a formulação que rejeita que “há relação de causa e efeito entre estrutura escolar” e manifestações de fascismo e neonazismo, encontre-se a tendência a subestimar o quanto a escola e sua estrutura foi visada no passado, e ainda o é, por todos os setores sociais conservadores do status quo de dominação e por aqueles francamente reacionários (também aqui divergimos do texto, uma vez que não se trata de causa e efeito, mas de mútuas determinações). Não devemos abandonar o interesse pela estrutura escolar àqueles que querem assegurar a manutenção e garantir o avanço de sua dominação contando com os aspectos da realidade escolar que já os favorecem, fomentando as tendências que se mostram proveitosas e ceifando os potenciais de resistência existentes.
Ao minimizar a importância de uma constante atenção à uma estrutura escolar orientada por princípios democráticos, minimiza-se também o alcance dos determinantes sociais mais amplos, como se estes não fossem operados com afinco para se presentificar nas diversas instâncias de mediação social, dentre elas, a escola. Mesmo por dentro das bases conceituais do autor, deve-se ressaltar a existência de vigorosas denúncias e rigorosas análises da hegemonia do neoliberalismo na estrutura escolar.
Concordamos com a insuficiência do slogan da cultura de paz que, a despeito de sua impotência diante da realidade da violência e seu agravo, segue sendo a débil resposta confundida com política educacional. Estamos de acordo também quanto à necessidade de impor limites bem claros no combate a esses ataques brutais, os quais a sociedade não pode relativizar. Essas pessoas e grupos devem ser identificados e responsabilizados, sofrendo as consequências tanto dentro das instituições bem como civil e criminalmente, compreendendo que já há dispositivos legais suficientes para isso.
Contudo, divergimos quanto à forma que esses limites devem ser impostos. Constatar a ínfima possibilidade de diálogo com pessoas cuja personalidade coincide com aquilo que Adorno denominou “tipo manipulador” – aquele que concebe os outros e as relações como simples coisas sobre as quais se impõe a própria vontade[vii] – não nos autoriza a tratar tais pessoas igualmente como objetos manipuláveis e elimináveis. Enquanto educadores, não nos é facultado suspender os pressupostos culturais e democráticos que defendemos, que objetivam resguardar a dignidade e a integridade de cada um, porque assim julgamos ser justo e necessário em dada circunstância – por mais custoso que isso seja.
Do contrário, não existirão mais obstáculos teóricos para converter tais pressupostos em seu oposto, tal como discutiu Max Horkheimer a respeito da distinção entre democracia e ditadura.[viii] Se há atualmente um clima mais propício à vazão dos impulsos narcísicos destruindo aqueles identificados como pertencentes a grupos minoritários, nossa posição não deve ser a de igualmente destruir os agressores, pois isso apenas reforçaria a tendência de nos guiarmos pela lei do mais forte, o retrocesso ao ‘olho por olho, dente por dente’, o que é exatamente o que esse grupo deseja e, por essa razão, está tão dedicado a atacar e destruir as instituições e meios democráticos.
O incentivo e/ou a tolerância ao uso da agressividade como forma primordial e definitiva de resolução de conflitos (inclusive os internos) impede a elaboração de nossas questões e frustrações e dá sobrevida à frieza que fomenta a reposição de agressores e agredidos numa ordem destrutiva. Como é nessa arena que se sobressaem os que se atormentam com a possibilidade de uma vida democrática, é a prevalência daquela que precisamos combater.
Não é um acaso, por exemplo, que as escolas, locais de formação cultural e diálogo, e, por isso, de oposição à barbárie, têm sido o cenário dos ataques feitos sobretudo contra aquelas e aqueles que simbolizam a força da cultura e do conhecimento que contestam o machismo, o racismo, a misoginia, a lgbtfobia, o capacitismo etc. O desafio, portanto, é convocar, em meio a tanta ameaça, tristeza e desolação, as forças de Eros para criar, como coletividade, tempos e espaços que se contraponham radicalmente às formas brutalizadas de existência e, principalmente, às forças sociais que as geram e as mantêm.
*Herik Rafael de Oliveira é mestrando em psicologia na USP.
*Marcos Natanael Faria Ribeiro é Técnico em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
*Marian Dias é professora do Departamento de Educação da Unifesp
*Patrícia Andrade é doutoranda em psicologia na USP.
Notas
[i] Mais recentemente, em 2017, formamos o Observatório da Educação: violência, inclusão e direitos humanos, que congrega pesquisadores da Unifesp, USP e profissionais das escolas públicas da região de Guarulhos, SP.
[ii] A lógica do “repartir o bolo” foi amplamente usada no processo de redemocratização do país, e ficou conhecida na voz de Delfim Netto. https://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/personas/delfimNetto.html
[iii] Silvia Viana, na obra Rituais de sofrimento (Boitempo, 2013), aborda contundentemente mais este aspecto destrutivo da vida social,
[iv] FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[v] HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
[vi] ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Tradução de Woolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
[vii] ADORNO, T. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. Tradução de Virgínia Helena Ferreira da Costa, Francisco López Toledo Corrêa, Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
[viii] HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Unesp, 2015.
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