O cinema escrito de Eduardo Coutinho

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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

Considerações sobre o diálogo cinematográfico entre Glauber Rocha e Eduardo Coutinho

“Colocado diante do compromisso de escrever (…) sinto-me angustiado além da medida. No meu caso, independente de neuroses temporárias ou permanentes, esta dificuldade tem a ver com a escolha do documentário” (Eduardo Coutinho).

“Sócrates, aquele que não escrevia” (Friedrich Nietzsche)

1.

Podemos notar uma ambigüidade na relação de Eduardo Coutinho com a escrita, manifesta em diversos momentos de sua vida. Seria por isso que seu cinema parece se basear na fala, na expressão de afetos pela entonação da palavra, em oposição ao modo da escrita? O dilema possui uma irônica referência no início de sua carreira: a participação no longa-metragem Câncer, de Glauber Rocha.

Câncer, rodado em 16 mm, agosto de 1968, em apenas quatro dias, é obra feita no sopro estilístico do cinema direto, dirigido num momento de encruzilhada, quando a geração mais velha do Cinema Novo encontra a contracultura. Drogas, racismo, a posição da mulher, a militância de esquerda, os dilemas com a representação do popular, são temas presentes nas improvisações de Câncer, sempre através de personagens e situações ficcionais. A narrativa desenvolve personagens construídos na tensão entre personalidades tipificadas artificiais e personalidades concretas, no meio da experiência de vida de cada um dos atores e amigos que participam do filme de Glauber.

Eduardo Coutinho foi uma dos não atores convidados para encenar sua personalidade natural, a ser distendida na mise-en-scène da tomada. Antônio Pitanga, Odete Lara, Hugo Carvana, atores centrais do Cinema Novo, desenvolvem personagens no filme. Estão cercados de ‘pessoas artistas’, ou artistas amigos, não atores, interpretando na cena um misto de personalidade natural e personagem: além de Eduardo Coutinho, os ‘amigos’ José Medeiros, Luiz Carlos Saldanha, Hélio Oiticica, Rogerio Duarte, Zelito Viana, Tineca e Bidu (da Mangueira) encenam no filme. Algumas tomadas foram feitas na própria casa de Hélio Oiticica.

Em pleno ano icônico de 1968, Glauber estica ao máximo os desafios da nova estilística do som direto e da imagem-câmera leve, solta na “mão”, com experiências diversas nos dois longas que realiza: Câncer e, logo em seguida, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, em outro esquema de produção. Em Câncer, Glauber permite-se dar vazão a experiências narrativas e de mise-en-scène mais radicais daquelas encontradas em O Dragão da Maldade, vistas pelo grande público nacional e internacional.

A sequência de Glauber dirigindo Coutinho em Câncer não é aleatória. Reúne dois dos principais diretores do Cinema Brasileiro do século XX, um dirigindo e outro sendo dirigido. Câncer embaralha de forma provocativa níveis de encenação (‘construída’ e ‘direta’) fazendo uma mistura em que todos os personagens aparecem puxados na fala (improvisada a partir de um tema, ou traço de personalidade). Atores e não-atores ficam numa espécie de presente torcido pela tomada que depois será picotado em planos longos e sugado no funil temporal do filme. Todos são atores de si, pois os tipos se abrem nessa maneira. Eduardo Coutinho vai interpretar em Câncer um personagem que mistura o que Glauber, de alguma forma, acredita ser a personalidade de Coutinho na época, definida no filme como ‘o homem do caderninho’, aquele que escreve. Em seu personagem, Coutinho fala sem parar durante a cena sobre um caderninho e seu conteúdo, a forma escrita.

Temos no filme outros “amigos”, figuras chaves do Tropicalismo como Rogério Duarte (recém-saído da prisão) e Hélio Oiticica, numa parceria inédita com Glauber que foi além da atuação cênica do artista plástico. Câncer é um momento singular de encontro entre Oiticica e Glauber, duas personalidades fortes, centrais nas artes plásticas e cinematográficas do Brasil na segunda metade do século XX. Mostra o diálogo da obra, e da pessoa, de Glauber com o horizonte do tropicalismo que Oiticica e Duarte encarnam. Inicia-se, inclusive, com imagens de um debate no MAM-RJ, em agosto 1968, sobre “artes revolucionárias” e “tropicalismo”, segundo a voz over de Glauber que aproveita para enunciar oralmente alguns créditos (sem mencionar Coutinho).

Ao lado dos amigos, o filme traz tipos-atores, também pela “amizade”,mas encorpando a diferente encenação atorial: Antônio Pitanga faz o homem-do-povo; Odete Lara encarna a mulher-de-classe-média; Hugo Carvana oscila em seu tipo-personagem, com caída para o boçal-marginal-brasileiro. Artistas-amigos e atores-amigos (a ‘amizade’ carrega uma forma de encenação) são‘puxados’ em cena para mesclar a personalidade cotidiana ao tipo-personagem, sob olhos da implacável ironia de um Glauber diretor de cena. No lado não-atores, Coutinho faz o intelectual comunista às voltas com a expressão escrita no caderninho e sua ordenação contra a práxis; Oiticica contracena um tipo de elite, arrogante, mas tímido, tendo ao fundo um Rogério Duarte, também arrogante, racista, que interfere mais em cena (ambos contracenam com o Pitanga popular, revoltado e humilde, que naturalmente, com seu talento de ator, domina a encenação nas sequências que participa); José Medeiros faz o intermediário de mercadorias roubadas; Saldanha faz o rapaz que traiu o marido Carvana com Lara. No final, Rogério Duarte e Hélio Oiticica, são mortos por Pitanga, após reiteradamente humilharem o homem do povo, negro, que este representa. Carvana também é assassinado pelo personagem de Pitanga.

No plano-sequência de seu personagem Coutinho aparece como um tipo meio oprimido, precisando se justificar por ser mentor da ordem e do registro escrito, face a um Hugo Carvana avassalador, tipo investigador, agressivo e debochado. Um ‘naif’ personagem popular a tudo assiste com olhos arregalados e doces, tomados em primeiro plano, segurando um bule com as mãos. Uma cruz sustentada ao fundo completa o enquadramento. Em parte da sequência, Coutinho é tomado sentado com câmera ligeiramente em plongée, de cima para baixo. Também seu rosto é explorado com grande aproximação em primeiro plano.

2.

O que a sensibilidade, meio brincalhona, meio algoz – o olho ciclope do Glauber-profeta – traz para a cena de Câncer, quando nos apresenta o personagem-personalidade ‘Eduardo Coutinho’? O que este olho-autor, o sujeito-Glauber, vê pela personalidade ‘Coutinho’, ou vê na cena que o faz encontrar um personagem? Coutinho, apesar de seis anos mais velho que Glauber, irá desenvolver (visto de 1968) uma carreira tardia, atingindo seu auge só na virada do século XX, já com mais de sessenta anos. Glauber sempre foi muito precoce e morreu cedo, aos 42 anos. Na época de Câncer, Coutinho era apenas um cineasta periférico no grupo nuclear do Cinema Novo.

Possuía vínculos oscilantes com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e foi atuante, na cola de Leon Hirszman, nos Centros Populares de Cultura da UNE, antes de serem dissolvidos pelo golpe militar de 1964. Era também o diretor de um longa-metragem do CPC não finalizado (a primeira versão de Cabra Marcado para Morrer é de 1964) e costumava ser chamado para trabalhar em roteiros da turma cinemanovista. Na época, 1968, esteve envolvido na direção e roteiro de O Homem que Comprou o Mundo (provavelmente um dos motivos para estar no set de Câncer), iniciativa do novo cinema (pelo lado Zelito Viana/Mapa Filmes – Zelito também faz ponta em Câncer e produziu O Dragão da Maldade), para atingir o grande público. Inicialmente, a direção desta comédia seria destinada a Luís Carlos Maciel, mas acabou nas mãos de Coutinho que, como diretor substituto em O Homem…, num trabalho de encomenda, nunca gostou do resultado – embora tivesse assim dirigido seu primeiro longa-metragem completo.

De toda maneira, é estranho ver Coutinho, em 1968, sendo submetido (é a palavra certa, para o tipo de encenação que sofre) em Câncer, pelo grande diretor de sua geração, a um procedimento similar (o entrelaçamento da personalidade na tomada) ao que, no futuro, submeterá alguns de seus personagens documentários e que atinge seu paroxismo em Jogo de Cena. Neste sentido, talvez não seja forçar a ‘trouvaille’ dizer que Câncer e Jogo de Cena são duas faces da mesma moeda. Ambos possuem em sua forma este modo centrifugar personalidades reais pelo voo livre de personagens, abrindo uma espécie de rompimento que faz a fissura da cena. Coutinho é torcido em Câncer no personagem do militante ortodoxo comunista que se nega (“não sou militante”), experiência singular da situação ‘para-si’, papel de si com sua personalidade esticada/criada por outrem (Glauber). Nos longas posteriores que dirigiu desempenha sempre na cena o papel ‘de-si’, ou o de ‘si-mesmo’, Eduardo Coutinho documentarista. Câncer, neste sentido, como filme de ficção, é exceção. É significativo que a brincadeira de Glauber, de recortá-lo no modo de militante comunista mais tacanho, seja talvez lembrança dos tempos dos embates CPC/Cinema Novo, brincadeira também com a figura do ‘pai espiritual’ próximo de Coutinho, Leon Hirszman.

Mais ainda, o Coutinho personagem de Câncer, além de militante prolixo, é um intelectual (um ‘teórico’) que anota tudo em seu ‘caderninho’ e nega a práxis (“sou teórico e tenho um caderninho”). É obcecado por seguir regras e tem como projeto um Brasil transformado não pela revolução social, mas pela preocupação com a ordem (“eu não quero anarquizar, quero as coisas sejam feitas com ordem”), em seguir horários na organização rígida da práxis (“tem que ter os horários… três e quinze é três e quinze… a polícia também tinha que ter um caderninho, tem que ter uma repressão organizada e uma revolução organizada”). É por aí que caminha o norte da improvisação livre de Coutinho como o militante que é teórico e que tudo escreve, registra, ordena e classifica enquanto o ‘homem do caderninho’, estimulado pelo diretor de cena Glauber Rocha.

‘Teórico do caderninho’, Coutinho está efetivamente oprimido na contra-cena com Hugo Carvana. Esse trabalha uma interpretação carregada pelo lado boçal, fazendo um tipo autoritário-agressivo. Carvana encarna bem o tom agressivo, com tonalidades machistas e racistas, diluídas pela sombra do deboche, tão comum em filmes do Cinema Novo e também no Cinema Marginal. Coutinho responde com o tipo característico que carregaria na vida, olhando para dentro, para baixo, falando entre os dentes, com frases curtas e sincopadas, querendo avançar o sinal do discurso por ele mesmo, sem interrupção. Olha seu interlocutor, mas não enxerga realmente, não está dentro do modo dialógico.

Enquanto Carvana incorpora o personagem glauberiano, Coutinho é o ponto fora da curva, o freio de mão puxado. O resultado é um Coutinho atropelado, acuado, jogado às cordas, ridicularizado ao tentar afirmar e recorrer a lógica do caderninho que, em suas mãos, é a lógica da escritura. Perde-se face à exuberância desenfreada da expressão fonocêntrica de Carvana, coincidência no jorro da fala como gesto, pelo corpo, no modo fílmico de enunciação. Não há redução, ou diferença, que introduz a fissura, ou recuo, na vigência verborrágica de Carvana. Apenas seu discurso preponderando na experiência narcisa da palavra própria (‘própria’ na definição mesma da coincidência de presença no ser que profere). O freio de Coutinho é o freio do caderninho e sua escritura é ordenação de fora.

Coutinho, de certo modo, será quem, mais tarde, irá saber como fazer valer a ordenação e o freio de mão, sem comprometer o jorro da coincidência com este ‘outrem’ popular que Pitanga encarna tão bem em Câncer. E o fará desafiando afirmativamente o conceito, figura de caderno, sem cair na pegada (ao menos em seus filmes mais sucedidos) a favor do encontro na espontaneidade, da intuição e da sensação, que tanto valoriza sua geração. Em Câncer o‘outro’ encarnado pelo personagem de Pitanga apanha muito ao tentar fazer valer a expressão popular, expressão que na cena é reduzida pela frieza (Lara), pela agressividade violenta (Oiticica e Duarte), ou pela boçalidade (Carvana).

É interessante, igualmente, notar o personagem tipicamente popular, em segundo plano, que assiste com expressão abismada a sequência entre Coutinho e Carvana, segurando um bule de café, pronto para cumprir o papel de servi-lo, como subalterno, ao lado de uma grande cruz que é empunhada pelo ‘delegado’. Tem posição simultaneamente serviçal e um olhar carregado de doçura cativante, com uma ponta inocente de curiosidade para a cena. Expressa espontaneamente uma composição de imagem-câmera fílmica que só a direção de um grande artista, como Glauber, consegue extrair da interpretação do ator natural (Coutinho irá mostrar também este talento em sua carreira).

A câmera percorre a expressão do outro-popular com evidente prazer da descoberta e pousa com suavidade, compondo o quadro. Assim como outros personagens ‘populares’ no cinema de Glauber, aqui o ator-popular tudo assiste, pairando no ar com a inocência do ser que basta a si-mesmo, existência de um em-si original que não necessita do dobrar reflexivo sobre a experiência vivida do evento para fazer valer. Mostra a vontade de instaurar, sem peias, a decalagem da diferença pela expressão que coincide, sem necessitar da designação carregada pela ênfase, que traz, por exemplo, o personagem de Hugo Carvana.

Coutinho, ao encarnar no recuo de seu personagem a lógica da escrita e da gramática (que se debruça e reflete), mostra por que é figura paralela e tardia no Cinema Novo e por que teve de esperar quase meio século para encontrar a veia boa em seu cinema. Uma veia que tem sua configuração num modo‘pós-cinema novo’, um modo‘pós-moderno’, de dialogar com o outro-popular. Uma estética que, ao carregar o dispositivo para disparar na tomada e furar a identidade da fala no corpo da voz, expressão fonética, faz jus ao caráter tardio. Traz o recuo implantado por um dispositivo que, reiteradamente esboçado, é, afinal, descoberto (desvelado) numa espécie de maneirismo que vai mostrar o artista em pleno domínio de sua arte no final da década de2000.

Assim, Coutinho dialoga com a perspectiva glauberiana numa posição inédita, pois este também é um artista que no final se cansa – e por isso mesmo pôde ser visto como líder e profeta. Algo que seus colegas de geração não souberam, ou necessitaram, estabelecer, por terem encerrado antes a carreira – ou por terem tido tempo para se repetir amadurecendo, numa conformidade que nem Glauber nem Coutinho possuem. Em Câncer, a imagem do popular empático (aquela imagem que será também a do primeiro fôlego no cinema de Coutinho) está lá, segurando um bule e olhando a vida como pássaro que paira e passa. Ele, homem-do-caderninho, está mergulhado, quase de olhos fechados, afundado cegamente para dentro, nas elucubrações das asserções propositivas do pensamento em cascata dedutiva.

A improvisação de Coutinho que Câncer promove intuitivamente (pois é assim ela que pode ser pensada), e destaca como o pulso de sua arte futura, é simultaneamente estética (no sentido literal do termo) e cercada por preparações, finalidades e intencionalidade, pronta para conquistar uma identidade que sabe não existir, mas que vislumbra, exatamente por poder negar a regra que necessita para assim se impor.

3.

O ‘caderninho’ é a lógica da medida que faz o valor do diferente, a estratégia do acuado. Restringe Eduardo Coutinho para poder escapar do suplemento, engordando pela coincidência a expressão. Escapa para não ficar grudada no jorro da retroatividade ressentida que vibra na fala de Hugo Carvana. É por ele, jorro, e apesar dele, que vai se vingar e desconstruir a diferença que, com o tempo e os anos, faz-se estabelecer como necessária.

Glauber, aparentemente, também se dá conta disso, como podemos sentir depois nas improvisações de Claro. O caderninho é a contraproposta ao desbunde contracultural que cerca Câncer e que transpira pelos poros da narrativa. A desmesura, o absoluto reinado das emoções fartas, gordas de espírito no encontro com o si-mesmo, ecoa nos personagens mais completos do filme e o de Carvana não é exceção. Eles carregam o excesso da desmedida e a degustam com inegável prazer no reino da autoridade que a coincidência com o si-mesmo, liberto pela exaltação da fala, concede. É complemento da expressão, estabilizando e satisfazendo a presença como identidade.

O personagem de Coutinho seria representante da visão que Glauber possui, naquele momento, da parcela de sua geração que abandonou o ‘desbunde’ (local em que, de certa forma, está se situando) e aderiu à disciplina da luta armada, ao seu ‘caderninho’ com horários, regras e pontos de encontro? Que aderiu aos rígidos códigos de conduta, regidos pelo caderninho da vida clandestina e as também estruturas partidárias do centralismo democrático? Duas metades ficam assim colocadas de maneira um tanto simplista: de um lado, no qual tudo é anotado, sistematizado, cumprido com responsabilidade e a práxis da política engajada impera; de outro, o espaço da vida à descoberto, em que experiência e expressão são oscilantes e sem rumo, gritadas, avacalhadas, desbundadas.

Nós estamos querendo acionar a posição de uma terceira metade da representação, o que acaba por desfazê-la fazendo com que a conta não feche. Ela aponta e descobre um primeiro evento (anterior, mas não original), que repete e desvenda furando a dualidade, e aponta a restringência da demanda como algo afirmativo. Metade da infinidade que traz consigo, ao se revelar, as oposições entre o de-dentro e o de-fora, entre identidade e alteridade, entre suplemento e diferença, entre presença e diferimento, entre fala e escrita, entre ‘caderninho’ e o livro do texto-porvir (Blanchot, O Livro por vir).E parece ser lá que Coutinho acaba. Ao se deslocar do local de encontro na comunhão, previsto inicialmente na junção das duas metades, esta última parte ascende à desconstrução. Nosso ponto é que os lados não se misturam em oposição simples, em negação ou reconciliação de uma tese que o filme nunca expõe.

Na expressão livre da cena (que concentra o esforço de Glauber neste filme) situam-se os campos que o profeta-diretor se coloca: o da pulsão livre que leva as metades simples para um buraco em que podem vibrar entre si, sem resolução, até que a diferença as faça retornar, para fazer valer a potência de um novo iniciar. Coutinho-restringente está como a metade que decompõe, como a diferença de raiz, aquela que valora pela força da afirmação restringente a pulsão desenfreada. Este lado é o ‘outro’ do próprio sistema e que tem potência para se negar em-si. O ‘outro’ ainda irá retornar no campo do mesmo até que o Glauber-empático do suplemento – que certamente quer para si a voz ressonante – descubra, em sua vez de profeta,o intervalo como pura intensidade e vida.

Coutinho, o mais esforçado e compenetrado dos dois, também dará sua volta para chegar lá – volta que não caberá a Glauber ser espectador, pois antes disso saiu de cena. Por ser tardia, a volta coutiniana corre em dupla direção: está lá desde o início, mas faz às vezes de voltar pelo mesmo percurso, quando já tem claramente para si que o caminho está destruído à frente. É o Coutinho maneirista. Para se recuperar da potência esvaziada da empatia em sua carreira tardia terá de modular pacientemente, desconstruir sem edificar, e recuperar no movimento a diferença que em Câncer se respira no primeiro turno, tão naturalmente.

O singular é que, ao caracterizar assim seu colega cineasta, a intuição glauberiana (como as intuições daqueles que podem profetizar) acerta na mosca pelo inverso, acerta na distensão pela ironia. Pois Coutinho passará o resto da vida a edificar seu cinema futuro, negando, no que mais tarde chamará de ‘dispositivo’, a lógica do ‘caderninho’. ‘Intelectual comunista’, teórico que possui ‘caderninho’, Coutinho demora para aprender a levar o caderno no bolso sem culpa, sem precisar recitar as categorias no modo que faz em Câncer. Talvez seja castigo de profeta, a maldição do caderno. Ela já está na cena de Câncer, é aquela que “para sempre te acompanhará”, cajado que só quem carrega consegue bramir, praguejando imprecações.

4.

Há uma dicotomia em Câncer que, em certa medida, é a mesma do discurso disperso, em declarações, de Coutinho sobre sua própria obra. Glauber e Coutinho coincidem na desconfiança da escrita e da teoria-pensamento, e na afirmação da expressão como identidade-de-si na plenitude do gesto e da voz, reino da fala fonocêntrica. A escrita é matéria fria da ausência, da substituição, do parasitismo da citação, da falta e da inscrição do de-fora. Nela, o campo do emissor que expressa é dilatado até a ausência e o repique da expressão – fundado na presença – é minado.

É dito, no filme, que o caderninho do militante Coutinho não tem nomes, nem notas, portanto não ‘nomeia-designa’, nem ‘anota-registra’, numa similitude da função referencial vazia, mas organizadora e modular, que se distancia da expressão fonocêntrica na designação da identidade na ilocução. É a escrita que funda o campo da diferença ao inscrever a reiteração como repetição infinita do significado, lugar anterior da presença pelo corpo voz/fala que enuncia no leque da performance ilocutória.O modelo finalista do livro-caderno, como aparato ordenador e deslocador da presença enunciativa (no regime citação/arquivo, por exemplo), parece fechar e diluir a tensão mais anárquica e aberta da vida na expressão –‘carne’ do corpo na voz,‘quiasma’ ou ‘entrelaçamento’ na dialética da alteridade, como quer certa fenomenologia (Merleau-Ponty, O visível e o invisível).

Mas, nesta coincidência, a expressão supõe ao menos uma camada de identidade e cedo Glauber percebe as agruras do caminho – um pouco mais tarde Coutinho segue. É uma identidade pressuposta com o outro que incomoda, assim como o pensamento no regime estreito da própria pressuposição. O discurso dominante do Coutinho maduro sobre os dilemas com a escrita reflete a percepção do esgotamento da identidade a que esteve preso no passado. As algemas da escritura são necessárias para enfrentá-la e ele se debate. De certo modo, o homem-do-caderninho glauberiano é o resumo disto, oscilando para lá e cá, antevendo o dilema crucial no qual ambos, Glauber e Coutinho, vão cair ao refletirem sobre a própria obra. Pois o movimento é esse, não se escapa: o reflexivo é uma consciência-de-si que se esvai na direção de um encontro fraturado, revelando a impossibilidade da comunhão e sempre mais um degrau, mais um degrau – aquele que não fecha e instaura o intervalo da fratura, da consciência sem remitências, caminhando pela diferença-negação do outro/outrem, espécie inarredável no sem-fim da dialética senhor-escravo. Tem potência para fazer a hélice girar e o espírito do tempo mover-sena história, mas ainda assim, para nossa tristeza, rateia no engate. Coutinho precisa da escritura que ‘modula’, pois é o que sabe fazer para conseguir oscilar e desafiar a congregação na alteridade – e assim introduzir a decalagem. Detonando pela valoração radical da diferença impede a estagnação cristalizada da consciência, como a coincidência do eu na analogia e nos afetos da compaixão.

A escritura coutiniana conseguiria então descolar, pelo mecanismo do dispositivo da encenação, sentido e fala – ou, mais precisamente, se descolar da ação, da práxis que encarna o corpo-voz. Faz-se como fissura, como ‘sopro’ (Derrida, A palavra soprada). Descolada ela não afirma – e fica aquém da experiência deliberação da fala na coincidência exaltativa do corpo, que se precisa empático. Dessa sensação de ‘liberação’ pela exaltação (que também traz as formas falsas da modéstia), vemos afetos com os quais se comunga. Mas, simultaneamente, e principalmente em sua obra tardia pelo modo do dispositivo, a coincidência na expressão do eu que ‘fala’ em Coutinho recebe esta espécie de capa fria do ser que é sua marca.

A capa da escrita pelo dispositivo, reincidente e minucioso, evita cristalizar. Enquanto técnica exterior ela faz o mesmo-uno se retrair pela ausência e pelo diferir, e só no intervalo ela consegue fulgurar. A reiteração, agora intercambiável e citável, corta ao meio a redenção pelo foco intersubjetivo como uma recorrência prevista e segura. Desloca-se sempre dali em diante, sob a forma de um mecanismo cênico pensado. No módulo dispositivo, uma fala originária, em si mesma molecular, fica atrás e encosta, ou então acopla, já na da frente. É escudada num detalhado planejamento da cena e da interpretação que, se não fecha‘ele’(o ‘eu’ da fala-do-outro), consegue ao menos liberar a crosta da identidade da redenção catártica exaltadora. Instaura-se assim o modo articulador que, contra a falsa espontaneidade, tenciona e se presta à fissura da comunhão na catarse.

5.

Na arte do filme as imagens-câmera tem a forma do que transcorre caminhando para o fim (The End), na medida desta coisa tão humana que é perder, ganhar, ou dar um tempo (dar o tempo): decupagem e encenação. E a forma-filme Coutinho conhece bem, pois roteirista experiente, embora engane, não parecendo exercer seu talento a todo vapor em sua obra de cineasta documentarista. A transcrição da fala, no entanto, não existe aí, engolida que é pela pressão da voz como fenômeno, mas a forma está lá. Coutinho busca a epifania, e nesse momento se descobre autor. A ordem da cena (pois de ordenação se trata) não é natureza pura ou expressão espontânea. É precisão do dispositivo, escandido, e assim se abre pela memória que fala em modalidades diversas que exploram até o limite das ênfases e tonalidades da canção (As Canções), fluxo de enunciação desabrochando na forma melódica.

No auge do domínio estilístico de sua arte, primeira metade da década de 2000, amadurece o procedimento (a partir de Santa Marta/1987 e, já maduro, em Santo Forte/1999; Edifício Master/2002; Peões/2004 e O Fim e o Princípio/2005) e depois o desmonta num modo maneirista, como fica claro na trilogia Jogo de Cena/2007, Moscou/2009 e Um Dia na Vida/2010. Assim a fala do corpo é preparada, bem dobrada, torcida, para entrar na caixa na qual fica e abre-se só no espetáculo propriamente, no esplendor do momento da cena quando ele, Coutinho, entra em campo desconhecido e imprevisto, e quando se inicia a tomada da duração que se encena. Depois (mas ela está sempre lá, como forma, desde a cena), será polida e comprimida em filme. Se há um dispositivo para tal Coutinho o criou, embora o fantasma do sistema, da gramática e da escrita sempre o assole. Por isso a negação, as ‘neuroses temporárias ou permanentes’, ou sua afirmação na elegia dos procedimentos menores da imagem do imponderável contingente.

Inicialmente, ficaram para trás as articulações das asserções propositivas da voz documentária que justificam a montagem da imagem fílmica no documentário clássico. Depois abandona, num regime econômico rigoroso, os ‘inserts’, os contra-campos, os ping-pongs, consolidando sua narrativa característica na gramática cinematográfica. Quer assim se liberar para atingir a coincidência plena do ser no aleatório da cena. Nada deixa sobrar no filme, que não sejam restos mínimos necessários para articular o garimpo da pureza – filme-dispositivo sempre negado, mas sempre realizado, em toda a espessura necessária para o efeito desejado. Se Coutinho quer escapar de uma categorização exterior, seu cinema só a aprofunda, inclusive para negar o que é do mesmo. Para conseguir alcançar, na cambalhota, a vereda da empatia começa então por ser-o-outro: Coutinho, o mesmo, e sua voz, a ‘voz do povo’.

É o que de melhor ele, Coutinho, vê‘neste seu olhar’, visão radiante da origem, outrem-popular que brilha no fundo do maquinismo-câmera, no fundo do dispositivo. É lá que ele descobre a alteridade e nela se encosta solidário, numa proximidade que quer máxima. E é só assim que admite lidar com o filme, armadura da duração, no qual a aproximação é armadilha do sistema e gramática agora da escritura, no modo de um dispositivo. Ele tem, no fundo do maquinismo, a imagem do ‘dele-outrem’ como pura ideia, pristina ou primeva originária. Algo que a multiplicidade empírica da ilocução da fala, marcada pela sujeição à alteridade, não macule! Quer o popular puro, o este-mesmo, que respira no nele-outro e que seja agora trazido para a cena, na plenitude de si, como ação coincidente, práxis fundadora no mundo na cena. Vê-se então de onde partiu e onde chegou o homem do caderninho, em sua ojeriza pela escrita. Será que o alcance da empatia plena, o afeto puro buscado, servirá para cicatrizar a alteridade?

Coutinho carrega sua marca e quer mostrá-la no filme como algo natural, embora esteja sempre um passo aquém e nunca alcance a coincidência do intrinsicamente próprio, experiência dele mesmo no contrapelo do ‘de-dentro-doutro’. Será que esta parte de si, forma de um movimento, torna seu cinema uma busca que não fecha? Se não nega o fosso entre voz e escritura, sempre quer trazê-lo para frente, acreditando na redução como negação consumada.

Mas Coutinho não se afunda aí, numa espécie de masoquismo mal digerido, decantando demanda e má-consciência. Nem se paralisa como Medusa, imobilizada na plenitude fixada do encontro com o‘outrem’ almejado. A negação vira pólo, afirma a diferença e paga o preço para ver, ativamente, indo fundo na composição exterior que quebra o feitiço hipnótico do suplemento. É assim que sua obra funda os parâmetros para engajar-se e tomar impulso em modalidades da representação que não se fecham no outro, em falsa plenitude. O personagem que se debate na cena de Câncer, encarnando o caderno que engole a força vital, dá o ‘pulo do gato’ no momento tardio de sua carreira. Enfrenta o encontro e assume, em modalidades diversas, a escrita como pensamento da cena.

*Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de Mas afinal… o que é mesmo documentário? (Senac).

 

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