Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO*
Sob o fascismo, não se trata de “mais um suicida”, mas de um suicidado, ou, mais precisamente, de um suicidário
Logo após o fatídico atentado a bomba na praça dos Três Poderes ocorrido no dia 13 de novembro, que resultou na morte do bolsonarista Francisco Wanderley Luiz, o governador do Distrito Federal – Ibaneis Rocha – deu a seguinte declaração: “Trata-se de um suicida”.
Apesar de aparentemente trivial, a afirmação de Ibaneis Rocha resgata uma tradição histórica do Brasil, a saber: a utilização do suicídio como estratégia de culpabilização do morto e desresponsabilização das forças de cooptação e gestão da morte produzidos pelo autoritarismo presente no interior da sociedade.
Em inúmeras passagens de nossa história recente, o suicídio foi racionalmente utilizado como recurso para anistiar algozes. Sem dúvida, um dos principais exemplos foi o forjado suicídio de Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-CODI em 25 de outubro de 1975. A utilização da justificativa de “suicídio” tornou-se estratégia cínica da ditadura militar brasileira para o ocultamento de seus assassinatos, ao atribuir toda a responsabilidade pela morte do indivíduo a seu suposto tresloucamento, à sua insanidade.
Entretanto, as palavras de Ibaneis são calculadas. Em outubro passado, a Polícia Federal concluiu o inquérito dos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023, apontando indícios de atuação criminosa do governador ao não coordenar ações efetivas de combate àquela tentativa de golpe. Sua conivência, assim como de Anderson Torres, foi um claro sinal de autorização à destruição promovida pela massa bolsonarista. A conivência foi, antes, estímulo.
Cabe lembrar que a escalada dos atos extremistas se situava já no ano anterior. Em outubro de 2022, após a insatisfação com o resultado das eleições para a presidência, protestos bolsonaristas bloquearam mais de uma centena de pontos em rodovias e, em dezembro de 2022, duas pessoas foram presas pela tentativa de atentado a bomba no aeroporto de Brasília.
Contudo, dentre esses e outros tantos atos, chamou a atenção aquele ocorrido no dia 31 de janeiro de 2023, em que um homem morreu após atear fogo em si, em protesto contra o Supremo Tribunal Federal. Antes de morrer, o homem de 58 anos gritava: “Morte ao Xandão”. Talvez este tenha sido o primeiro caso registrado de violência autodirigida como ato político do bolsonarismo, o qual, encontrou um muito similar no último 13 de novembro.
Se para uma parcela da esquerda o culto à violência, assim como a permanente insuflação das massas contra os direitos e as instituições democráticas, não foram elementos suficientes para a compreensão do governo de Jair Bolsonaro como a expressão contemporânea do fascismo, talvez o último atentado à Praça dos Três Poderes seja o ponto final para qualquer dúvida persistente.
Afinal, o que define a onda fascista não é apenas a escalada do autoritarismo na política e a violência contra grupos específicos no interior do corpo social, mas a violência autodirigida em nome do coletivo, ou seja, uma violência de natureza suicidária.
Como bem apontou Vladimir Safatle,[1] a partir da obra de Paul Virilio, uma característica fundamental da sociedade fascista é o fato de ela tornar indiferenciada a heterodestruição da autodestruição. A lógica de destruição do Estado fascista, por sua incontrolabilidade, converte-se em dinâmica pulsional de destruição de si-mesmo. A aniquilação de uma vítima externa internaliza-se em autovitimização, em autossacrifício em nome do todo.
Por tal condição, esse autossacrifício fascista precisa ser despolitizado pelos seus verdadeiros algozes. É nesse ponto que se inclui a fala de Ibaneis, para quem o atentado seria apenas a expressão tresloucada de um suicida solitário. Reduzir tal ato a uma patologia nada mais é do que a estratégia neoliberal calculada de particularizar uma violência que, em sua essência, é massificada e permanentemente agitada por Jair Bolsonaro e seus seguidores.
Se o ato promovido por Francisco Wanderley Luiz revela que o golpismo evidentemente não acabou no país, seu suicídio é o lembrete de que o fascismo, para além de um regime de destruição e administração da morte dos outros, também é um regime de produção de subjetividades dispostas à redenção pela autodestruição.
Sob o fascismo, não se trata de “mais um suicida”, mas de um suicidado, ou, mais precisamente, de um suicidário.
*Thiago Bloss de Araújo é psicólogo social e doutor pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.
Nota [1] https://aterraeredonda.com.br/estado-suicidario/
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