Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
A servidão vai novamente arcar com os custos, enquanto os oligarcas e homens do Estado não republicanizado administram a dependência do país
O pacote fiscal há algum tempo discutido pela equipe econômica do governo Lula foi anunciado no dia 27 último, quarta-feira, quando eu acabara de escrever o texto que seria publicado no dia seguinte. Não havia tempo para entrar no assunto. Contudo fiz algumas anotações! De fato, eram hipóteses por meio das quais eu gostaria de continuar o texto: (i) A escravidão tem outra forma. (ii) Os rentistas continuam dando as cartas sem Paulo Guedes e a terceira versava sobre a condição do Estado brasileiro que, mostrava de uma vez por todas que não fora republicanizado e, por último, o congresso é dominado pelos oligarcas de gerações atuais — do mesmo tronco daqueles que punham os escravos na tortura.
Abolição e a República brasileira
O movimento abolicionista, com origens europeias no final do século XVIII, ganhou impulso durante a Revolução Francesa. O Brasil, entretanto, foi o último país das Américas a abolir a escravatura, em 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea. Entre os principais intelectuais abolicionistas brasileiros, destaca-se André Rebouças, Rui Barbosa e José do Patrocínio, entre muitos outros. Foi um marco histórico que viria a delinear muito do que é a sociedade brasileira.
Havia duas linhas em defesa da abolição: a primeira lutava pela libertação e pela democratização rural. Uma segunda, conservadora, buscando manter o figurino escravocrata com nova roupagem. Buscavam a indenização dos oligarcas e a saída dos pretos e pardos sem qualquer preparação relativa aos escravos libertos. Quando libertos, os negros sofreram preconceitos, repressão e se refugiaram na periferia das grandes cidades, fato decisivo para a origem e a expansão das favelas atuais.
A abolição precisa ser entendida na sua relação com a Proclamação da República no Brasil. Os atores não se diferenciavam em muita coisa. Foi um levante de quem já estava em pé; fazendeiros escravagistas, no dia seguinte à abolição, juntamente com grupos antimonarquistas, se colocaram contra até consumar o golpe de 15 de novembro de 1889, quando os militares assumiram o Estado patrimonial e em seguida, passados quatro anos, transferiram o governo aos oligarcas cafeicultores a título de “indenização”.
A república no país foi o resultado do primeiro golpe militar para manter o pacto social com a supremacia oligarca, tendo como cão de guarda o exército brasileiro — sempre acionado para conter eventual quebra do pacto social realizado nesse momento da história.
Fernando Haddad (sim, ele mesmo, que negocia o pacote fiscal) complementa que, em outra direção, a tese que planeja desenvolver é a de que, com a Proclamação da República, o Estado patrimonial, embora tenha mudado de mãos, não se republicanizou. O patrimonialismo, nesse contexto, sofreu uma transformação, “modernizando-se”. Sob o manto do Exército, ocorreu uma significativa troca de comando: da monarquia constitucional para uma “oligarquia absoluta”. Essa transformação, paradoxalmente, foi impulsionada pela abolição da escravatura. A esse respeito, o movimento dos “republicanos de última hora” ou “republicanos de 14 de maio” é bastante revelador.
O feroz cão de guarda
Depreende-se, aqui, o peso que as Forças Armadas jogam na frágil democracia brasileira. São consequências da escravidão no Brasil, enraizadas no Estado, nas antigas oligarquias rurais e na sociedade como um todo. O país é o lugar de “oligarquia absoluta” e “Estado não republicanizado”. Francisco de Oliveira, em seus estudos, aprofundou a análise sobre essa herança, demonstrando como a Abolição, além de uma indenização aos antigos proprietários de escravos, configurou-se também como uma ação de despejo.
Libertados sem qualquer preparo ou suporte, os ex-escravos, majoritariamente pretos e pardos, migraram em massa para as cidades à procura de subsistência. As favelas cresceram e já abrigam mais de 50% da população brasileira. Lugar que algumas “esquerdas” evitam ou ignoram e que se tornou um território à margem do Estado. Um imenso quilombo maior que o país. Tais traços estão presentes até o momento.
O pacote fiscal que muitos entendem como afronta, para os militares e as corporações oligarcas associadas ao rentismo trata-se de um documento que precisa ser aprofundado. O texto apresentado vai para o plenário das duas casas legislativas com sinais concretos de que haverá mudanças para aumentar a arrecadação. Os sujeitos ligados ao Big Money expressaram preocupações sobre a eficácia das medidas, destacando que elas são insuficientes para enfrentar o problema fiscal brasileiro de forma significativa.
Economistas apontaram a ausência de cortes significativos em despesas e a manutenção de benefícios sociais como pontos fracos do pacote. Anúbis já rosnou e como resultado as mudanças anunciadas em relação aos militares têm um impacto mais simbólico do que efetivo no ajuste fiscal. As medidas incluem a implantação de uma idade mínima para aposentadoria, ajustes nas pensões e a padronização das contribuições ao Fundo de Saúde. No entanto, essas mudanças representam menos de 1% do total do pacote fiscal, com uma economia anual estimada em R$ 2 bilhões.
Oligarquia Internacionalizada
Já os rentistas ficaram descontentes com o pacote fiscal do governo por várias razões. Em primeiro lugar, foi considerado insuficiente para garantir a estabilidade econômica e controlar a inflação. Economistas apontam que as medidas anunciadas não alteram significativamente as projeções de despesa pública, o que pode levar a uma Selic (taxa de juros) mais alta do que o esperado.
Além disso, a falta de compromisso contínuo e de sinalizações claras do governo em relação ao controle fiscal gerou incertezas no mercado. Quanto ao dólar, ele subiu devido a uma combinação de fatores. As incertezas sobre a eficácia do pacote fiscal e acerca da possibilidade de uma Selic mais alta aumentaram o prêmio de risco, levando investidores a buscar segurança nos ativos em moeda forte. Além disso, a alta inflação e a desvalorização do real também contribuíram para a valorização do dólar.
Já os representantes da oligarquia expressaram-se favoráveis ao equilíbrio fiscal. Querem investimentos externos numa praça bursátil segura e garantida pelo Estado às custas dos trabalhadores. Rodrigo Pacheco e Arthur Lira mostraram suas posições com cautela e cálculo político. Disseram que apoiavam o pacote fiscal do Ministro da Economia. Contudo, reiteraram a necessidade do equilíbrio das contas públicas.
Rodrigo Pacheco afirmou que a isenção de imposto de renda para que recebe menos que R$5.000,00 não pode ser pauta do presente. Acentuou que o equilíbrio das contas públicas leva à impopularidade, mas são necessárias. Arthur Lira reforçou a iniciativa do governo, dizendo que a responsabilidade fiscal é inegociável.
A Conta é paga por quem trabalha.
Sindicatos e centrais sindicais argumentam que os trabalhadores em vasta forma de trabalho (informais, sem carteira assinada, microempreendedores, microempresas) preocupam-se, de forma significativa em relação ao pacote fiscal. A argumentação segue no que sempre tem acontecido aos trabalhadores: aumento da carga tributária sobre eles e a redução dos direitos sociais.
Ainda pior, segundo os seus representantes, poderá ocorrer demissão em massa e o desemprego atingir índices ainda não alcançados, estabelecendo intensa modificação na classe trabalhadora e nas suas formas de organização. O populismo de agregação dá sinais agudos de exaustão. Vejamos o que acontecerá nas próximas semanas.
Do redigido acima é possível prever quem pagará a conta. Água, luz (em algumas regiões), o aluguel, as tarifas de ônibus e metrô são ajustadas conforme o salário mínimo. Alguns programas de assistência social, preços de alimentos também são ajustados com base no salário mínimo. Muitas vezes, os salários desses trabalhadores são ajustados com base no salário mínimo.
Há um contingente grande de trabalhadores rurais cujo reajuste salarial se dá na relação com o salário mínimo. Os salários de trabalhadores informais e do precariado em geral tem ajustes com base no salário mínimo. A servidão vai novamente arcar com os custos, enquanto os oligarcas e homens do Estado não republicanizado administram a dependência do país em relação aos proprietários do óleo, das plataformas digitais e do capital fictício.
Tiro no pé
Nos dois dias após o discurso de Fernando Haddad, os juros subiram mais de uma unidade percentual e as expectativas já incorporam; a taxa Selic, determinada pelo Banco Central, poderá estar acima de 14% ao ano, num crescendo desde já. Lula dá um tiro no pé e alimentou o crescimento galopante da dívida pública, ao contrário do que buscava, colocando os brasileiros em situação difícil. O dólar bateu R$ 6,10 na sexta-feira (29/11) – recorde para o país semiperiférico. Há recusa em se realizar um ajuste radical; o que é esperado pelos países do centro da economia mundial.
Não é difícil vislumbrar para breve 5% no mínimo para o IPCA acima da meta do Banco Central. Assim se encarecem matérias-primas, alimentos e bens intermediários essenciais para a produção e o transporte de artigos de primeira necessidade. Retomando o que se escreveu sobre a oligarquia e a Proclamação da República, quando se realiza o primeiro golpe militar no país, o que se observa é uma história que vive aos solavancos. Um período de coalizão…
E quando aparece uma assombração qualquer, o cão feroz nos morde e temos um longo período autoritário. É bom lembrar que ainda não terminou o golpe de 2016. O populismo de agregação sem apoio do Congresso somente amargura perdas. Isso nos põe desde já preocupados com 2026. E o bolsonarismo, mesmo sem Jair Bolsonaro, é um movimento ainda forte capaz de arregimentar muitos messiânicos que amam um pneu.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, Sociedade de Classes e Reformas Universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]
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