O elogio da burrice

Imagem: João Nitsche
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Por DANIEL BRAZIL*

A mídia globalizada, aliada a interesses econômicos e políticos, passou a definir os gostos e escolhas

Assistir à série O Gambito da Rainha pode deixar quem tem mais de quarenta anos um tanto melancólico. Trata-se da história de uma garota que, no final dos anos 1950 e década de 1960, se destaca no xadrez, vencendo campeonatos importantes nos EUA e indo disputar torneios na Europa. A hegemonia da época era dos russos, considerados imbatíveis. A juventude dos anos 1960 se interessava pelo jogo, sabia o nome dos campeões mundiais, jornais e TVs relatavam as finais eletrizantes. Meio mundo acompanhou o match Fischer x Spassky, em 1972, com o cenário da Guerra Fria por trás. Aliás, havia coluna de xadrez nos jornais, e até revistas especializadas, como bem ilustra a série.

Saltemos para 2020. Os jovens de hoje acompanham e sabem os nomes de lutadores de MMA, aquela imbecilidade que alguém já definiu como dois homens de cueca se agarrando dentro de um galinheiro. Desapareceram as colunas de xadrez, e até mesmo as palavras cruzadas.

Claro, gostávamos (e aqui me incluo) também de esportes, Olimpíadas, futebol tricampeão, São Silvestre, vôlei e até boxe. Alguém sabe quem é o campeão mundial de boxe hoje? Nos anos 1960-70-80 todos sabiam. Mesmo sendo um esporte bruto, os homens vestiam luvas de couro estofadas para não ferir o rosto do opositor. E tínhamos Muhammad Ali, campeão inconformado, símbolo de resistência negra ao sistema. Quem é contra o status quo no UFC? Aliás, há algum jogador de futebol rebelde e politizado hoje, no Brasil? Só a jogadora de vôlei Carol Solberg esboça um solitário protesto, e será “cancelada” pela ditadura midiática por um largo tempo.

Não, a juventude de hoje não é culpada por não saber dessas coisas. É a mídia globalizada, aliada a interesses econômicos e políticos, que passou a definir os gostos e escolhas. Fez sumir o xadrez, as palavras cruzadas e desidratou os cadernos literários dos jornais. A imprensa atualé como um supermercado pobre, de um cafundó qualquer perdido no mundo, que só oferece uma marca de macarrão nas prateleiras. O consumidor sobrevive achando que só existe aquilo.

O esquema midiático contemporâneo guindou às manchetes o que, no século XX, era considerado o esgoto do jornalismo: a fofoca sobre a vida íntima de artistas e personalidades, a exaltação do físico em detrimento do intelecto, a manipulação de dados, a despolitização, a propaganda descarada dos interesses financeiros. Abra o portal de qualquer um dos maiores veículos da mídia contemporânea (G1, Uol, et caterva) e meça o espaço destinado à cultura, ao debate de ideias, à discussão dos problemas reais da nação, comparando com o espaço destinado à fofoca, aos vídeos idiotas, aos crimes mais banais. Há até colunas que se dedicam a comentar programas execráveis como BBB e A Fazenda, reality showsque fariam os criadores da televisão morrerem de vergonha, se é que tiveram alguma.

Nas faculdades de comunicação do século XX havia matérias como Deontologia e Ética. Parece que desapareceram nos cursos atuais. Perdeu-se algo no caminho, e isso é mais um dos sintomas da grave doença que acomete o jornalismo atual. Gerações sendo (de)formadas pela mídia mais mercenária, cultivando o individualismo, a arrogância e o desprezo por causas sociais. O (ou a) jornalista sai da faculdade sem saber quem foi John Reed, mas sonha em cobrir um desfile de moda ou festival de música com direito a lanche grátis.

O estrago é mundial, e não há como dissociar isso do avanço do conservadorismo, do totalitarismo, do fanatismo religioso no século XXI. No Brasil, o projeto de renovar os meios de comunicação do país, animado pelo avanço democrático da era Lula, foi enterrado junto com as conclusões da Conferência Nacional de Comunicação, em 2009. Depois de mobilizar dezenas de entidades, sindicatos, associações, universidades, patrões e empregados, engavetaram as indicações que iriam atualizar um marco regulatório vigente desde 1962. É esse que continua em vigor, em pleno ano de 2020, mantendo os privilégios da velha e oligárquica imprensa monopolista, colonizada e vil.

Entre outros pontos, a Confecom propunha cotas regionais de produção audiovisual, respeito à diversidade, direito de resposta, fim da propriedade cruzada de veículos (como nos EUA), criação de canais audiovisuais municipais, estaduais e federais com verba pública geridas por conselhos comunitários. Considerando que haverá eleições presidenciais em 2022, não seria o caso de recolocar, desde já, este tema na pauta de todos os candidatos de esquerda? A palavra de ordem já existe faz tempo: democratização dos meios de comunicação, já!

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

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